Fazer Cinema como extrapolação – transbordamento
– das relações entre amigos e com o mundo,
um cinema que é bem vindo, um cinema que não
deixa de ser necessário no cenário brasileiro
atual dos filmes universitários (e até
mesmo não-universitários). O que se tem
feito, em montes, são filmes engessados, sem
vida própria, sem frescor. Às vezes, até,
acreditem, declaradamente sem muita vontade.
A Estória da Figueira é um filme,
segundo a própria diretora, Julia Zakia, inscrito,
desde seu pensamento, sua feitura inicial, num universo
de fabulação infantil. Um filme feito
para crianças e para o que há de memória
e sensação infantis (não necessariamente
só o lirismo ou a inocência) em nós.
Filme de destaque nesse último Festival Brasileiro
de Cinema Universitário, A estória
da figueira é o resultado de um movimento
de mentes, espíritos e corpos que atuam em conjunto
numa mesma direção. O que afirmo aqui
não é mera impressão, é
um discurso que caminha junto ao filme quando a Julia
se coloca à frente, apresentando-o ou discutindo.
Declaradamente, A Figueira, mesmo guiado pela
Julia, é feito por um coletivo, um grupo de amigos
que sentem, pensam e põem a mão na massa
juntos, mesmo expostos às possíveis dissonâncias
que muitas vozes podem gerar. Acontece que mais vozes
também geram mais energia e é essa energia
que parece impulsionar a feitura dos filmes, unida a
uma gentileza que é necessária para o
trabalho em grupo. Cria-se com ânimo e crença
numa força que é gerada pelo coletivo.
E tem feito muita falta ver as pessoas, dentro ou fora
da universidade, criando com força, energia,
ânimo e gentileza.
No fim do mês de junho, o Cachaça Cinema
Clube exibiu em uma sessão seus premiados do
Festival Universitário: O Latido do Cachorro
Altera o Percurso das Nuvens, Luzia Passou por
Aqui e A Estória da Figueira. A Julia
Zakia, o Guilherme César (produtor do filme)
e a Heloísa Ururahy (fotógrafa), estiveram
no Rio para a sessão e tentamos organizar um
bate-papo. Mas a passagem pela cidade foi corrida, com
uma volta a São Paulo já no dia seguinte,
em dia de jogo do Brasil na Copa. Conversamos informalmente,
combinamos de trocar e-mails. Mandei um e-mail com algumas
considerações e questões envolvendo
o filme em si, o trabalho coletivo deles e como isso
reverberou nesse Festival, o olhar deles sobre um possível
diálogo entre o filme da Julia e do Guile (Sobre
a Maré, quarto filme do projeto Sal Grosso,
exibido no Festival do ano passado), sendo A Figueira
construído já imerso em seu argumento
num tom fabuloso, de historia contada a crianças
e o Maré também utilizando o tom
fabuloso, mas na exposição do interior
do personagem, em sua subjetividade ou loucura. Outra
questão colocada foi se eles sentem ou não
que seus filmes se relacionam com outros filmes exibidos
no Festival, e que diálogo há com as produções
atuais, mesmo fora do nicho do cinema universitário.
A Julia, o Guile e o Guilherme responderam, em textos
apaixonados, algumas dessas questões. Falaram
um pouco sobre as experiências e descobertas de
inícios de jornada cinematográfica, do
começo de fazer e pensar cinema e do espaço
que o Festival abre pra que se veja o que está
sendo feito nas universidades e pra que se debata e
se construa.
* * *
"No meu primeiro dia de aula na escola comunitária
de Campinas, aos cinco anos, eu vi o Guile e logo nos
tornamos amigos, foi o gosto bom em ser bem recebida,
pelo imediato encontro dos corpos e por sonhos possíveis.
Hoje temos de estar mais atentos, aos poucos cuidar
dos sonhos e de uma casa pra cuidar, dividir as contas
mês a mês, ver ou tirar o mato que cresce
e trabalhar para que filmes tomem forma em suas narrativas
próprias, diversas, através de todo o
resto das coisas que constrói nossas relações.
Os filmes são um pedaço do que dividimos
e cuidamos juntos deles, porque senão a casa
cai, como pirâmide mal construída.
Tenho aprendido e respeitado o estar sozinha e cuidar
da própria vida, ao lado desses amigos com os
quais moro e trabalho. Estudando e fazendo vídeos,
filmes, pensando em como declamar em luz, acariciar
em som, conduzir a harmonia e a rebeldia juntas, conhecendo
novos companheiros, olhares que também já
sabia serem de irmãos, dar um abraço e
sair sorrindo, um semestre, mais um, e, através
do trabalho, a caminho de alguma compreensão
e prazer ao exercer essa profissão, escolhida
por cada um por motivos mil, e embalada ano a ano em
muita conversa, aulas boas e ruins, dias da semana,
estratégias de produção e lindos
planos-sonhos-graça a serem filmados, juntos,
um pro outro, todos pro filme e pra quem o assistirá.
Começamos trabalhando para os alunos mais velhos,
nossos veteranos. Com eles vimos de perto as câmeras,
uns choques, o tempo gasto, a exaustão... Sentíamos
que haveria de chegar logo a nossa vez de usar aquilo
tudo, porque daria pra se concentrar e extrair de todos
nós força e convicção para
desenhar alguma história, se relacionar e oferecer
aos atores uma atmosfera completa ao seu encontro.
Conheci Gui, Hélio e Hêlo na USP mesmo,
todos nós somos da mesma turma, de 2001, e nos
aproximamos pelo trabalho e passamos a sair e conversar.
Nos conhecemos bem, gostamos de trabalhar juntos, e
sempre há um espaço desconhecido, um respeito
não falado, nem imposto, natural e equacionado
de acordo com cada dia, cada nova labuta ou festa.
A liderança de cada um, no momento de realização
dos filmes, é força geradora, entende-se
o que o amigo sente e aquilo passa a ser sentido junto,
e assim o filme dilata. Em O espetáculo democrático,
documentário do Gui César, fiz câmera
em entrevistas difíceis com alguns homens de
poder, homens de nossa política, entrevistas
que exigiram uma entrega ao meu ofício, sem disfarce,
câmera como olho, como poro, como guelra mesmo.
E no mesmo mês passávamos a entrevistar
alguns senhores chapeleiros, falando da vida, da labuta,
de velhos sonhos para o meu documentário O
chapéu do meu avô. Todo dia os dois
filmes, revezando as naturezas de encontro, e cada diretor
mantendo as rédeas de seu trajeto, permeável,
não fundível.
É bom demais, é louco e lindo demais,
trabalhando em grupo e na intensidade da liderança
do outro, fazendo o projeto com intensidade conjunta,
vive-se, ama-se, constrói-se em dobro, em triplo,
a cada vez, e com cada gesto, gostos diferentes, olhares
diferentes, e os músculos dos mesmos braços
erguendo a tapadeira do próximo filme.
No Suíte Anonimato foi a primeira vez
que formamos uma equipe maior, mais dividida e organizada,
a câmera 16mm trazendo a solenidade do momento.
Tivemos de pensar no set, em sua combinação,
o estúdio B abrigando nossa tentativa, propício
às intimidades, tendo-se noção
da criação, do falsear, da construção
da história, do embalo. Cada um na sua função,
a cada filme ou exercício revezando, sem especializar
ninguém em uma única coisa. Cada projeto
nasce para o outro quase ao mesmo tempo em que nasce
pra si. Moramos juntos, e a casa é um ambiente
dessa troca. Cada um trabalha por si, arranja suas moedas,
seus encontros, e novos planejamentos. Nós não
podemos pensar em ser uma casa rentável, uma
produtora, para não falirmos juntos. Criamos
juntos, mas nos sustentamos em separado até que
as próprias criações passem a nos
sustentar, se esse for o caminho, com o amadurecimento
da profissão e de sua possível inserção
no mercado ou/e no grupo, com dinheiro ou com pouco
dinheiro.
No Sobre a Maré, por exemplo, conheci
o Rio de Janeiro, nunca tinha ido pra lá pelo
medo do que via na infância pela televisão
quando morava em Campinas. Desafios foram e são
travados por aí, e o filme foi o primeiro deles.
Isso faz 1 ano e meio e de lá pra cá já
voltei mais 9 vezes ao rio. Aí trabalhei como
nunca antes e nem depois, e é um trabalho do
qual me orgulho muito, pela força física
exigida, pelos problemas solucionados e sempre baseado
no amor ao Guile, a priori, ao Ilo (ator), ao filme
se fazendo assim e, aos poucos pela cidade, pelo Rio
de Janeiro visto de perto, longe dos pais e da televisão.
Conquista imensa, emancipação dos órgãos,
trabalho como revolução constante. Me
emociono com o filme pelo que ficou e pelo que vivemos,
como em outros casos também, mas esse filme traz
o confronto e a alegria do encontro das escolas, das
maneiras de ver a câmera, de sentir a vida. O
Festival Universitário também é
isso, e por isso pode causar muito prazer, muita alegria,
vendo os filmes, falando e ouvindo nos debates, mas
também pode causar muita amargura, casca grossa.
Depende da condução das palavras, do tempo
disponível para se aprofundar e diversificar
a fala. Quando não se tem limite de tempo para
encerrar a conversa, tudo é mais agradável,
mesmo que ficando horas debatendo, são horas
de uma troca potente, importante, mas não pode
ser curto, porque senão acaba na hora do giro,
embora o giro também aconteça na rua,
nos bares, nas horas andando pelo Rio ou por Niterói,
conversando, vivendo uma outra geografia.
Escolhemos estrear a Estória da Figueira
e o Chorume (vídeo de Hélio Villela
Nunes) no Festival Universitário, mandando
à merda festivais que exigem que o filme seja
inédito. Não! Esses são nossos
últimos filmes universitários, quero primeiro
olhar nos olhos daqueles que estão cursando,
ou acabaram de terminar os cursos de cinema, pelo Brasil.
Debater o ensino, as formas de produção,
alguma coisa de cada filme. Quero primeiro sentir a
maresia tomando conta da primeira exibição
do filme, os conflitos, a febre, a juventude mesmo,
quero não esquecer tão rápido esse
começo, porque é onde estão as
bases de um acreditar nos filmes que fazemos, de prazer
e trabalho, esses sentimentos que vão ter que
estar presentes e atuais em cada novo projeto e com
qualquer idade.
O Chorume foi uma batalha sem fim, a cada dia
trabalhava com mais ânimo e prazer, mesmo doente
e acabada. A cada fita preenchida tinha certeza da materialização
daqueles mistos esforços e acasos que levaram
o personagem do lixeiro para dentro da festa e o filme
para fora da tela. Hélio nos encaminhando e dirigindo
o filme com determinação e carinho, firme,
contendo a nossa liga, exalando satisfação
em nossos esforços. Como não esquecer
uma certa magia e desenvoltura que parece brotar das
boas companhias, do prazer em suar a camisa, feder,
compartilhar dezenas de horas com as mesmas pessoas
e ver o fruto amadurecido, pronto pra ser saboreado,
sem pressa alguma. Eu acredito muito nesses amigos,
que também pensaram nesses temas, e pessoas da
equipe que não estavam no Festival, mas que poderiam
responder aqui com outras perspectivas e visões
da feitura destes curta-metragens. E acredito muito
em pessoas que eu não conheço, quando
vejo seus filmes, acredito muito mais do que quando
ouço os discursos. Os filmes contam segredos.
A Figueira foi pouco vista por enquanto, estreou
no Festival Universitário, passou na reprise
na cinemateca de São Paulo e depois no Odeon
(no Cachaça Cinema Clube), mas os festivais daqui
e de fora do país nos quais nos inscrevemos começam
agora no segundo semestre e eu aos poucos poderei perceber
e visualizar melhor a resposta de público e a
movimentação dos sentimentos em relação
ao filme. Sei que será uma luta constante produzir
ocasiões para que crianças o vejam. Dois
festivais de cinema infantil já recusaram A
Figueira, alegando ora sua suposta inadequação
temática ora sua linguagem "confusa"
para crianças. Penso nisso como um equívoco
tremendo, as crianças serão o melhor público,
o filme foi feito a cada passo pensando na Marina, a
atriz que faz a menina, aos olhos dela acionamos o motor
da câmera, com o mais profundo respeito à
infância, dela, nossa, e de quem quiser e puder
ver isso na tela. As crianças verão o
filme, essa história tem mais de 300 anos e não
é à toa que vem sendo contada. Mantive
os principais elementos da narrativa, adicionei uma
abertura de imagens para não trair nem a estória
e nem a mim. Nossas convicções não
poderiam travar o desenvolvimento das imagens e conexões
alheias, das outras pessoas que, quando crianças,
também tivessem ouvido a cantigas. No Rio, depois
da sessão do Odeon, conheci uma moça da
minha idade que também ouvia o disco na infância,
e ela gostou do filme, gostou mesmo, ela não
sentiu suas próprias imagens e lembranças
feridas, falseadas. Isso foi muito bom, eu vi que ela
falava sério, ela compartilhava a origem da vontade
de fazer o filme, a sensação de ouvir
a cantiga e ser ainda criança. Eu não
podia e não queria aprisionar a imaginação,
a oralidade, um alfabeto móvel, solto, em formação
constante. Eu pensava: eu posso fazer uso da força
dessa lenda nômade, mantendo-me fiel às
formações sensoriais que ela traz à
equipe, e principalmente atenta às respostas
da Marina, criança no set. Vou me esforçar
para além dos festivais e produzir sessões
para muitas e muitas crianças verem o filme.
Essa é a meta principal da Figueira, ser
visto por muitas crianças no cinema."
Júlia Zakia
* * *
"É sempre bom quando a gente abre uma janela
e se depara com algum território outro, paisagem
de árvores diferentes, mais secas ou alagadas,
floridas ou corcundinhas, apontando para cima, as raízes
pelo chão, espalhadas... Quando dessa janela
vem um cheiro que a gente reconhece, gosta, e que não
é o nosso. No Maternal I eu acho que entendi
que era por essas janelinhas que a gente podia fugir
da sala de aula, escorregar ao parquinho, cavar um buraco
até um riacho doce que de tão fininho
ficava quase invisível. A Julia, por exemplo,
eu conheci nessa época e os olhos dela foram
algumas dessas janelas por onde dava para ver territórios
arejados, paisagens possíveis, convites a certos
vôos. As bolinhas de gude também são
olhos de vidro que a gente rola na terra. E a jabuticaba,
um olho preto que nasce do pau.
Naquela época não havia cinema. Só
vontade de vida, gasolina de sonho e tempo presente.
Tudo isso que hoje a gente precisa fazer um esforço
imenso pra continuar vibrando e, mesmo assim, tem vezes
que não vai. É que às vezes o futuro
fica gordo de tanto mascar suposições
e pesa nas costas. Deixemos por enquanto o futuro um
pouco incerto... Naquela época ninguém
sabia que ia trabalhar junto. Ninguém sabia direito
que um dia ia trabalhar. Só que já era
bom olhar por umas certas aberturas, outras frestas,
sonhando (construindo?) mundos diferentes dos meus,
possíveis, transbordando, aquecendo. Seja pelo
calor das mãos dadas no coração
do instante ou na distância impenetrável
de um gelo de montanha, uma fuga, alguma caverna solitária.
É que me parece uma grande virtude (e essa eu
aprendi com o Hélio uns anos depois) saber estar
longe e perto ao mesmo tempo. Talvez seja esse um dos
segredos (a ser aprendido, reaprendido, desaprendido)
do trabalho coletivo. É claro que nos influenciamos,
soltamos ar pelas ventas, respiramos de novo, estamos
perto. Fazemos crochê com certos nós que
nos unem. Mas não podemos nos fundir, e isso
porque as madeiras das janelas são de naturezas
diferentes, as dobradiças de outras dobras, e
mesmo as traças que roem têm dentes desiguais.
Mas é próprio das janelas concordar no
movimento de abrir. Dar passagem, dar paisagem e trocar
sementes. E isso, meus amigos, com cada homem e mulher
de boca, ouvido, ou pele fértil, por cada cantinho
de terra aberta, com cada cinema, pela vida afora. Olhar
em espelhos que reflitam para além da vaidade.
O Gui e o Hélio eu conheci na faculdade, muito
tempo depois. Eles, como muita gente por esta estrada
afora, tiveram a generosidade de me arrebatar, me intrigar,
me duvidar ou me acalmar com suas paisagens possíveis.
Quando entro no quarto do Gui César, por exemplo,
sinto-me chegando num santuário alheio. Mundo
de amores, suores e revoluções que eu
quero entender, ajudar a construir, disponibilizar minhas
mãos, ouvidos e coração. E para
trabalhar junto a gente tem que saber ser peão
um do outro. Carregar peso, bater prego, resolver pepino.
Cuidar do jardim, escorar as paredes, abrir frestas,
se dividir, senão a casa cai. O filme é
de cada um, como a vida é de cada um. É
também de todo mundo que quiser, de todo mundo
que assistir, trocar. Quando a gente dá um presente
para alguém de quem gosta muito, sentimos um
duplo prazer: é delicioso saber que a escolha
deste presente vem da nossa vontade, das cores do nosso
bordado, das nossas partículas que se sentem
capazes de tocar o outro. E melhor ainda é saber
que este presente não é nosso, tem que
ser dado senão não serve. Saber que ele
só vai funcionar, ser presente mesmo, quando
passar de mão. Essa foi a sensação
que eu tive ao trabalhar no filme do Hélio, no
filme da Julia: presentear um querido, uma querida.
Presente com o suor do trabalho, não sem cansaço
ou mal-humores, mas alegrinho, porque o presente é
de graça, é graça, é agora,
agorinha.
Nós não somos diretores de cinema, ou
técnicos de som, montadores, fotógrafos,
muito menos uma produtora. Ninguém ainda tem
CNPJ. Somos seres viventes ávidos pelo revezamento,
dirigir um filme, colher uma fruta ou dar pézinho.
O que for mais urgente. Talvez para mim a força
deste trabalho coletivo esteja em enfrentar os combates
individuais no presente, acreditando com amor de janela
no tempo do outro, nos olhos do outro, queridos, longe
ou perto, trocando sementes nas esquinas do mundo, encorajados
pelas multidões intensivas que nos percorrem,
a cada gesto.
Quando tive o primeiro lampejo do que viria a ser o
roteiro do Sobre a Maré, eu passava por
um momento um pouco confuso. Precisava me libertar de
certas coleiras, reencontrar alguns sonhos, voltar a
acreditar no que acontece quando estamos de olhos fechados,
tatear o amor mesmo que fosse de plástico. Também
bebia além da conta e me abalava com pouco. Um
dia azul, o outro cinza. O Sobre a Maré
nasce cativo disso tudo. É prisioneiro pedindo
para sair, chamando ajuda do mar e dos marinheiros.
É vontade de lançar um barquinho na tempestade,
desejo de banho de sal grosso. É também
vontade de gritar do alto de um prédio "terra
à vista!" e enfrentar a vertigem. Penso
que o filme traz muito desta ânsia original, deste
desconforto com a realidade, daí a necessidade
de injetar sonho em cada pedacinho do real, forçar
a encenação, fazer transbordar o fantástico
por cada gesto do personagem, em cada objeto que compõe
seu universo. Procurar por uma salvação
possível em cada fresta que se abria com os elementos
que compõem o filme (som, fotografia, arte, atores).
É como se cada cena tivesse que ser intensa,
levada à exaustão, tudo ou nada, náufraga.
Meu coração encarava este primeiro filme
como se fosse o último e às vezes isso
ajuda, às vezes atrapalha. De tanta coisa que
eu quis dizer, alguns espectadores não conseguem
se envolver com o filme, se afastam. Já ouvi:
"é tudo tão fantástico, tão
quimérico, que vai ficando longe até que
não me diz mais respeito, fica ilhado..."
Acho que não poderia ter sido de outro jeito,
mas ainda sonho em ser capaz de construir uma ponte-pênsil...
É porque eu tive que dar uma certa volta ao mundo,
bem tumultuada, para descobrir que as coisas são
simples, que simplicidade faz sonhar, que os sonhos
de nada valem se não descerem dos prédios.
E não é tão difícil assim.
Para isso inventaram elevadores, escadas, asas... Porque
é aqui, neste chão, que eu desejo viver,
criar e construir. Pois a libertação tão
desejada só veio chegando, de mansinho, ao longo
do processo do filme, conforme outras pessoas foram
embalando o roteiro com o calor de suas mãos.
O amor, a alegria mesmo, não veio do grito e
muito menos da solidão. Chegou de fora, pelos
olhos cristalinos de um ator que gosta da vida, pelo
toque delicado e apaixonante de uma diretora de arte
e sua equipe, pela firmeza e pé no chão
do Vlad (Mancaro) e da Bia (Marques), que fotografaram.
Foram enfim todas estas frestas, poros, clarabóias,
que libertaram o prisioneiro e salvaram o filme de ser
uma condenação à realidade, à
vida.
Para mim a força do filme está nas invasões
sofridas (afinal de contas trata-se de um filme feito
por várias escolas, muitas mãos) e não
na fidelidade à idéia original. Foi a
prova viva, física, de que sem o calor do outro,
sem o vento forte que chega de fora para escancarar
as janelas, não podemos criar.
A Figueira não é fruto do desconforto,
mas de um respeito profundo à infância.
Sua semente, que deveria ser preservada até o
fim, era uma impressão infantil. As imagens suscitadas
por uma cantiga que muitas crianças ouviam antes
de dormir, de sonhar. Se em Sobre a Maré,
o fantástico teve de ser levado à exaustão,
vasculhado, potencializado, na Figueira ele é
natural, natureza, infância. A maior magia do
filme são os olhos de uma menina. E tudo que
existe de dor no filme (não é pouco) não
passa pelos olhos da menina. Está em nós,
nos espaços vazios, no jardineiro. O filme está
repleto de territórios sagrados que não
se deixam invadir, perturbar, como, por exemplo, a corrida
da menina com o fantasma da mãe. O Sobre a
Maré, penso eu, é quase todo invasão.
Para mim o Maré é uma pergunta
convulsa, quase incontrolável, um timoneiro ébrio
indo atrás da lucidez, enquanto A Figueira
é um sopro de liberdade, uma declaração
de amor à vida feita com muita calma, respeito,
simplicidade e uma gota de veneno de abelha.
A Figueira nasce simples. Nasce cantiga e cresce
criança num sonho adulto. E isso vale, penso
eu, para o que há de "fantástico"
no filme."
Guile Martins
* * *
"Nota sobre a produção de um curta metragem
na universidade pública:
É louco pensar que o coletivo se constrói
e ganha força, que a idéia de fazer um
filme vira uma missão amorosa e coletiva, de
utopia e de luta, que subvertemos no sentimento, na
intenção, na forma, mas principalmente
no modo de produção. Não digo que
o espírito burro e mesquinho da exploração
e do desrespeito ao trabalho não produza grandes
filmes, certamente produz e aprendemos muito com eles.
A questão é que a crocodilagem toda do
cinema também está no modo de produção,
no quanto vale cada um, na grandeza e importância
que se dá às personas em detrimento de
uma cadeia produtiva. É louco pensar em cadeia
como quem come o outro, como quem precisa do outro,
ou como quem harmoniza com o outro, pra poder existir.
Por isso é tão importante que a rapaziada
mantenha os cineclubes abertos e criem outros, criem
seus próprios festivais (e a impressão
que a gente tem é que esta articulação
em torno da exibição, da difusão
da galera que está começando é
mais forte aí no Rio). Por isso é tão
importante que a rapaziada quando ganhar edital ou receber
grana do governo pra poder filmar subverta na folha
de pagamento da produção, no modo de produzir
e de trabalhar. Não necessariamente por questão
ideológica, mas mais por questão de hombridade,
de natureza humana mesmo. E é por isso que produzir
um filme na universidade pode ser um espaço privilegiado
e radical de experimentação, mesmo quando
doce, suave e sussurrado, é um grito de construção
de utopia viva. A partir daí, os caminhos estão
traçados; ouse trilhar o que achar mais solo
firme, alguns depois dizem que ficam pra trás,
não dão certo, não ganham dinheiro,
mas nessa corrida é perigoso afirmar o que é
estar à frente, ou por cima de alguém.
Acho que o cinema no Brasil pode se modificar muito
quando um movimento de não tão exuberante
existência material, mas de espírito bem
mais forte e destrutivo, e com corpo mais calejado,
contaminar geral. Temo e desejo demais que isto aconteça,
quero trabalhar e estar vivo pra ver."
Guilherme César
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