ENTREVISTA COM PEDRO BUTCHER
Editor da empresa Filme B

Pedro Butcher é mais conhecido como crítico de cinema, tendo passado pelos jornais O Dia, Jornal do Brasil e O Globo, e hoje escrevendo para a Folha de São Paulo. Mas há alguns anos ele vem trabalhando em outra frente de cinema, editando o site e os boletins da Filme B, empresa especializada em pesquisa e análise do mercado de cinema. Viemos a ele, então, para tentar entender melhor o processo de distribuição e dos lançamentos de filmes no Brasil, em especial esse semestre tão controverso. Deve-se notar, portanto, que Pedro Butcher fala aqui não como crítico de cinema, mas como editor de uma publicação que versa sobre mercado exibidor. (RG)

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Estamos na primeira semana do segundo semestre, e nos deparamos que no primeiro semestre desse ano estrearam 30 filmes brasileiros. É um cenário bem desejável, e poderia ser considerado como um sinal de saúde do cinema brasileiro e sua relação com o público. Mas quando a gente vê os números, a gente percebe o contrário.

Esse ano está repetindo alguma coisa que aconteceu no ano passado, que foi exclusivamente um único filme ser sucesso de público e concentrar grande parte da bilheteria nacional. Sendo que no ano passado esse filme estreou no segundo semestre [Dois Filhos de Francisco, nde], e o panorama teve um equilíbrio um pouco maior. Na verdade, o problema da faixa média de público é um problema que existe desde 1995, desde o começo da retomada, e é uma faixa que é muito difícil de alcançar. Todo mundo fala que é um dos problemas dessa fase do cinema brasileiro, mas o que chama atenção de forma gritante é que você tem 30 filmes lançados nesses últimos seis meses e a grande maioria é abaixo de 50 mil espectadores.

Esse ano especificamente, por razões circunstanciais mas também por razões cumulativas, estamos vendo alguns fatores ficarem muito evidentes. Esse é um ano de Copa do Mundo e de eleição. E isso fez com que os distribuidores, junto com os produtores de filmes brasileiros, optassem por lançar seus filmes no primeiro semestre, fugindo da Copa – que foi um desastre para o cinema em geral, como era esperado e como evidentemente foi comprovado, porque o país se mobiliza todo para os jogos, não só os do Brasil. E a eleição também é um fator que dificulta, apesar de não ser de forma tão grave quanto a Copa. Esses são os dois fatores circunstanciais, mas temos também o fator estrutural que é o modo de funcionamento do cinema da Retomada, em que o cinema brasileiro tem um discurso mercadológico e industrialista muito forte, mas se você for ver, ele ainda é totalmente voltado para a produção e não vê a indústria como um conjunto que é a distribuição e a exibição. E eu iria até um pouco mais longe e diria que, de um ponto de vista político e cultural, ele tem um discurso de formação de platéia que não se sustenta, pois os filmes ocupam espaços nas salas de cinema quase que para tapar buraco, sem uma atenção maior ao lançamento, apenas com um esforçozinho ali na distribuição, um esforçozinho ali na exibição, mas sem uma dinâmica maior. São filmes que são produzidos mas que não hora de exibir são praticamente arremessados em cartaz, como se diz.

E na verdade esse é um problema que está diagnosticado lá atrás pelo Jean-Claude Bernardet, que é uma concentração na produção: o importante é fazer filmes, não importa se os filmes vão ser vistos ou não. O esquema de incentivo fiscal, da Lei do Audiovisual, contempla isso, porque não faz nenhum elo entre a produção e a futura exibição, uma vez que os filmes estão pagos já de início.

Você falava dos fatores circunstanciais e dos estruturais para essa concentração de filmes no primeiro semestre. Mas esses filmes acabaram encontrando outros rivais, que foram os outros filmes brasileiros, porque estreavam três por semana, e na semana seguinte estreavam outros dois ou três, que obrigavam os anteriores a sair de cartaz para dar lugar aos da frente. A gente fala de 30 filmes em um semestre e nem parece tão dramático assim, mas se a gente tomar o período entre meados de março e começo de maio, estrearam 17 filmes num período de 9 semanas no Rio de Janeiro.

É. Não sei se essa concentração se deu por igual em São Paulo, em Belo Horizonte, vários filmes estréiam com um mês ou duas semanas antes ou depois. Mas é como eu disse, os produtores fugiram do segundo semestre por causa da Copa do Mundo e da eleição, e acabaram migrando para o primeiro semestre. Esse número de filmes estreando em abril e maio é para tentar aproveitar os feriados de Semana Santa, Tiradentes e Dia do Trabalho, porque foi a maneira que eles viram para chamar a atenção dos filmes. Quanto a essa competição interna, realmente aconteceu. Se você pega um quadro de lançamento de uma produtora americana, você vê que os filmes são agendados com um, dois anos de antecedência, já sabendo o exato fim-de-semana, e da mesma forma você vê um calendário geral das outras produtoras, que é para não haver conflito entre datas.

De fato, você tem aqui, por exemplo, 3 documentários sendo lançados na mesma data: Meninas, Ginga e O Dia em Que o Brasil Esteve Aqui. É de se supor que, mesmo com as temáticas diversas, parte do público interessado ficou dividida e não conseguiu ver esses filmes.

Mas você veja. Esse é um caso interessante. Um filme como Ginga, por exemplo, só precisa entrar em cartaz para dar visibilidade para a Nike, e aí pouco importa quanto público vai dar, ele já teve seu destaque ao entrar nas estréias do cinema e poderá capitalizar isso nas vendas de dvd. Mas, quanto ao conflito de datas, você está certo.

E, no mais, temos nesse semestre uma série de filmes de autor, ou filmes considerados de pequeno ou médio interesse mercadologicamente falando, ou de forma mais geral filmes que deram muito pouco público, alguns não chegando a 5 mil.

Temos três coisas aí. Existe o problema do filme que não tem um público pela nulidade do projeto ou da realização, e existe o filme que não tem seu público de fato, e que precisaria de um amparo diferente. Ou seja, você tem aquele filme que pretendia ser alguma coisa e não é, e tem aquele filme que cumpre as suas propostas mas interessa a um público restrito. Esse último é um tipo de filme que vem sendo radicalmente negligenciado. E por fim você tem aquele filme do cara que fez em digital – é um pouco o resultado dessa democratização do cinema, em que todo mundo faz e quer ter o seu espacinho ali –, o cara vai em busca de um lugar para exibir. Ano passado tivemos dois filmes assim, Preto e Branco e Preto no Branco. Então temos esses três exemplos no circuito de filmes de pouco público.

No caso desses filmes em vídeo, ao qual eu acrescentaria o Sou Feia Mas Tô na Moda, no ano passado, e o Carnaval, Bexiga, Funk e Sombrinha, desse ano, acredito que esses filmes têm uma relação mais sadia entre o modo de produção empregado para realizá-lo, o orçamento gasto, e a divulgação, eu acho que existe uma certa compatibilidade entre produção e exibição que eu não vejo de forma alguma em filmes com orçamentos maiores, quase todos fracassos.

São casos. Como o Cama de Gato, que é um filme que eu não vi mas que alguns defendem, e é um filme feito com câmera de vídeo, não sei se ele captou mas ele chegou lá, fez seu filme e conseguiu um espaço.

E temos um caso de exceção em permanência de sala nesse semestre que é o Depois Daquele Baile, que está semanas e semanas no Museu da República, que é um lugar muito freqüentado pela terceira idade, que acaba sendo o público alvo mais direto do filme. É um filme que conseguiu ficar várias semanas em cartaz, em comparação com vários outros, que mal chegaram à terceira semana.

Não sei se é assim. Se você pega pela estatística, esses filmes vão cumprindo as carreiras de uma forma muito escalonada, Rio São Paulo, não é uma estréia nacional. É difícil analisar isso de fato. Entendo o que você quer dizer, ele é um filme que tem um nicho. Mas é um típico caso de filme que talvez tenha sofrido com essa urgência de entrar em cartaz. Um distribuidor importante é muito veemente numa opinião a respeito dessas formas de apoio à distribuição. Ele acha que isso é completamente engana-trouxa.

Que formas são essas?

O apoio da Petrobras à difusão, por exemplo. Para ele, isso é jogar dinheiro no lixo. Na verdade, a vida comercial de um filme ou não – e isso é que falta pensar – tem que ser pensada na gênese dele, quando o filme nasce. Aí você tem o filme pronto e aí dá uma graninha para distribuir, 99% dos casos é uma grana que vai ralo abaixo, que não vai adiantar nada. É um pouco como a Globo Filmes, que vem atendendo a filmes médios por conta do choro dos produtores menores. Na verdade, esse no fundo é um apoio que só vai corroborar a visão da Globo Filmes de que não adianta, só adianta quando a produtora está interferindo no projeto lá, desde o começo. No meu entender é uma atitude muito esperta. E as pessoas já sabem isso, o Antonio Carlos da Fontoura deu declaração no jornal que a parceria com a Globo Filmes significou prejuízo, uma vez que esse apoio não é totalmente de graça. E o que esses filmes menores não têm e que os filmes maiores têm é aquilo que é mais importante e faz toda a diferença que é a chamada cross-media, a circulação do nome do filme nos programas da TV Globo.

A minha impressão é que, à exceção dos filmes de criança, os filmes brasileiros não têm muita lógica de lançamento, ficando à mercê das lacunas das cadeias exibidoras de circuitinho, numa arrumação meio randômica de lançamento que naturalmente não pode fazer bem à divulgação do filme.

Você está mais ou menos certo. Qual foi o diferencial da Embrafilme? Foi uma concentração radical do planejamento. A Embrafilme tinha informação do filme estrangeiro porque ela controlava a venda de ingressos, e controlava toda a informação do filme brasileiro porque ela controlava desde a produção até a distribuição. Então isso era uma coisa hipercontrolada, os filmes de férias dos Trapalhões, os filmes que estreavam em julho, os filmes que estreavam em dezembro, eram dois filmes por ano, os Trapalhões garantiam renda, tinham um adicional de renda, era uma coisa que se azeitou, e funcionou durante um tempinho mas funcionou. Esse planejamento se perdeu por completo e não existe hoje. Mas nesses últimos dez anos, uma certa organização natural do mercado começou a aparecer, como por exemplo o filme de janeiro, como Se Eu Fosse Você, Sexo, Amor e Traição... O Casamento de Romeu e Julieta não ficou pronto para janeiro, estreou em março e perdeu a chance de alcançar um público maior. Ou seja, a data de janeiro já é uma data para comédias românticas alternativas aos filmes de Oscar. Então nas férias de dezembro você tem o filme para criança, animação, Xuxa entrando sempre 25 de dezembro, Renato Aragão entrando uma semana seguinte, na primeira semana de janeiro. E a Xuxa tem um dado curioso, que é o fato de que todas as primeiras semanas são muito ruins, porque é fim de mês e está todo mundo sem dinheiro por causa das compras de Natal, mas para a Xuxa é importante estrear nessa data, porque ela foge de outras determinadas datas e conflitos de filmes. Outra data importante é agosto. Depois de Cidade de Deus ter estreado em agosto e ter feito imenso sucesso, ano passado você teve Dois Filhos de Francisco e esse ano você vai ter o Anjos do Sol buscando um nicho ali. E agosto é pós-blockbuster de férias, então é uma brecha interessante. Nessa arrumação natural do mercado, os filmes que contam com uma estrutura de distribuição grande acabam se encaixando no plano das grandes distribuidoras. E quem determina essas datas são pessoas que têm extrema experiência no assunto e vêm todas da Embrafilme. Jorge Pelegrino na UIP, Rodrigo Saturnino Braga, Marco Aurélio Marcondes, Bruno Wainer (que não era da Embrafilme mas cresceu nessa época). Então são pessoas que entendem muito de mercado, ao contrário dos produtores, que não conhecem. O Data Base Brasil [banco de dados criado pela Filme B com dados e detalhes sobre salas de cinema], que é avidamente esperado pelos distribuidores e pelos exibidores, geralmente nem é aberto pelos produtores para ver onde é que tem sala de cinema no Brasil, onde é que é possível se encaixar, de que forma mais gente pode ir ao cinema. Ainda que falte uma pesquisa qualitativa, algo que a gente não tem ainda, é possível ter uma noção, e a partir daí você pode pensar um pouco mais, planejar um pouco mais.

Saindo dos filmes de grande público e indo para os filmes considerados de médio porte, ano passado tivemos uma situação de filmes, como Cidade Baixa e Cinema, Aspirinas e Urubus, que foram exibidos em festivais internacionais, fizeram o circuito de festivais nacionais e foram lançados logo depois, com um razoável sucesso.

Isso é complicado. Bom, vou fazer uma comparação entre filmes que não têm nada a ver um com o outro. Por exemplo, Tapete Vermelho. O filme do Luiz Alberto Pereira se encaixaria supostamente num projeto de cinema popular, mas que pega uma figura como o Mazzaropi, que se você for ver, já não diz mais nada para aquelas pessoas que pode ir a salas de cinema. Ou seja, Tapete Vermelho é um filme de mercado interno, e quem nunca ouviu falar de Mazzaropi não vai se relacionar com o filme.

Mesmo porque o público de cinema brasileiro hoje em dia é inteiramente diferente da faixa de público que via os filmes do Mazzaropi.

Exatamente. Uma coisa que eu gosto muito de diferenciar é que hoje em dia é impossível falar em cinema popular. Eu prefiro usar o termo "cinema hegemônico", sei lá, alguma coisa assim. A coisa que mais me irrita é "prêmio popular": pelo menos chama de "júri do público"! Não é júri popular. Imagina o Festival de Gramado e aquelas pessoas que pagam R$70 para ver os filmes e você chama de júri popular? Hoje em dia, o entretenimento popular está na televisão, não está no cinema. Hoje em dia, fazer um filme sobre Mazzaropi é fazer um filme para meia dúzia de espectadores jovens que vão ao cinema e conhecem Mazzaropi porque está passando no Canal Brasil. Eu odeio esse termo, mas o Mazzaropi agora é cult. É um nicho mínimo. E no entanto o projeto do filme Tapete Vermelho é o projeto de um filme direcionado a outra platéia.

E você acha que ele está falando para alguém que não está lá para ouvir?

Para ninguém, ele está falando para um vazio completo. Isso não é um juízo de valor estético, porque eu não estou falando como crítico, estou falando de mercado, até porque é um filme que eu não vi. Não consegui ver em festivais e quando entrou em cartaz eu estava viajando. Então falo das minhas impressões de profissional aqui da Filme B. E tendo ouvido várias pessoas, até mesmo o diretor, que fala muito disso – a maioria dos diretores de filmes que se querem populares –, de comunicação com o público, etc. Que comunicação com o público é essa? Porque se você quer se comunicar mesmo com o público, você tem que entender que público é esse, quem está indo ao cinema, esse público que muitas vezes tem o olhar completamente formado pela televisão. Então ele vai procurar um tipo de coisa que ele já espera.

Já o Cinema, Aspirinas e Urubus e o Cidade Baixa são projetos claramente formatados para ter uma repercussão internacional. Formatados mesmo, desde o começo, e eu não acho isso ruim, não. O que acontece é que esses filmes provavelmente têm um retorno comercial melhor, mesmo tendo um público nacional menor do que vários outros. Eu não tenho esses números, mas eu sei que o Cidade Baixa foi vendido para países estrangeiros, ele está estreando na Inglaterra com mais cópias do que estreou por aqui. E mesmo no mercado nacional, eles se inserem num perfil específico de mercado, num tipo de público que existe e vai ao cinema.

Agora, estamos aqui para falar de números, porque eles são importantes, decisivos no alcance comercial e na forma que os filmes alcançam o público. Mas nada disso tem a ver com a memória, com a maneira que esses filmes têm de ser lembrados e participar de um momento particular da História. Esse processo é muito mais complexo e rico, e eles acabam encontrando um jeito. Isso é o mais importante.


Entrevista concedida a Ruy Gardnier