Pedro
Butcher é mais conhecido como crítico
de cinema, tendo passado pelos jornais O Dia, Jornal
do Brasil e O Globo, e hoje escrevendo para a Folha
de São Paulo. Mas há alguns anos ele vem
trabalhando em outra frente de cinema, editando o site
e os boletins da Filme B, empresa especializada em pesquisa
e análise do mercado de cinema. Viemos a ele,
então, para tentar entender melhor o processo
de distribuição e dos lançamentos
de filmes no Brasil, em especial esse semestre tão
controverso. Deve-se notar, portanto, que Pedro Butcher
fala aqui não como crítico de cinema,
mas como editor de uma publicação que
versa sobre mercado exibidor. (RG)
* * *
Estamos na primeira semana do segundo semestre, e
nos deparamos que no primeiro semestre desse ano estrearam
30 filmes brasileiros. É um cenário bem
desejável, e poderia ser considerado como um
sinal de saúde do cinema brasileiro e sua relação
com o público. Mas quando a gente vê os
números, a gente percebe o contrário.
Esse ano está repetindo alguma coisa que
aconteceu no ano passado, que foi exclusivamente um
único filme ser sucesso de público e concentrar
grande parte da bilheteria nacional. Sendo que no ano
passado esse filme estreou no segundo semestre [Dois
Filhos de Francisco, nde], e o panorama teve um
equilíbrio um pouco maior. Na verdade, o problema
da faixa média de público é um
problema que existe desde 1995, desde o começo
da retomada, e é uma faixa que é muito
difícil de alcançar. Todo mundo fala que
é um dos problemas dessa fase do cinema brasileiro,
mas o que chama atenção de forma gritante
é que você tem 30 filmes lançados
nesses últimos seis meses e a grande maioria
é abaixo de 50 mil espectadores.
Esse ano especificamente, por razões circunstanciais
mas também por razões cumulativas, estamos
vendo alguns fatores ficarem muito evidentes. Esse é
um ano de Copa do Mundo e de eleição.
E isso fez com que os distribuidores, junto com os produtores
de filmes brasileiros, optassem por lançar seus
filmes no primeiro semestre, fugindo da Copa – que foi
um desastre para o cinema em geral, como era esperado
e como evidentemente foi comprovado, porque o país
se mobiliza todo para os jogos, não só
os do Brasil. E a eleição também
é um fator que dificulta, apesar de não
ser de forma tão grave quanto a Copa. Esses são
os dois fatores circunstanciais, mas temos também
o fator estrutural que é o modo de funcionamento
do cinema da Retomada, em que o cinema brasileiro tem
um discurso mercadológico e industrialista muito
forte, mas se você for ver, ele ainda é
totalmente voltado para a produção e não
vê a indústria como um conjunto que é
a distribuição e a exibição.
E eu iria até um pouco mais longe e diria que,
de um ponto de vista político e cultural, ele
tem um discurso de formação de platéia
que não se sustenta, pois os filmes ocupam espaços
nas salas de cinema quase que para tapar buraco, sem
uma atenção maior ao lançamento,
apenas com um esforçozinho ali na distribuição,
um esforçozinho ali na exibição,
mas sem uma dinâmica maior. São filmes
que são produzidos mas que não hora de
exibir são praticamente arremessados em cartaz,
como se diz.
E na verdade esse é um problema que está
diagnosticado lá atrás pelo Jean-Claude
Bernardet, que é uma concentração
na produção: o importante é fazer
filmes, não importa se os filmes vão ser
vistos ou não. O esquema de incentivo fiscal,
da Lei do Audiovisual, contempla isso, porque não
faz nenhum elo entre a produção e a futura
exibição, uma vez que os filmes estão
pagos já de início.
Você falava dos fatores circunstanciais e dos
estruturais para essa concentração de
filmes no primeiro semestre. Mas esses filmes acabaram
encontrando outros rivais, que foram os outros filmes
brasileiros, porque estreavam três por semana,
e na semana seguinte estreavam outros dois ou três,
que obrigavam os anteriores a sair de cartaz para dar
lugar aos da frente. A gente fala de 30 filmes em um
semestre e nem parece tão dramático assim,
mas se a gente tomar o período entre meados de
março e começo de maio, estrearam 17 filmes
num período de 9 semanas no Rio de Janeiro.
É. Não sei se essa concentração
se deu por igual em São Paulo, em Belo Horizonte,
vários filmes estréiam com um mês
ou duas semanas antes ou depois. Mas é como eu
disse, os produtores fugiram do segundo semestre por
causa da Copa do Mundo e da eleição, e
acabaram migrando para o primeiro semestre. Esse número
de filmes estreando em abril e maio é para tentar
aproveitar os feriados de Semana Santa, Tiradentes e
Dia do Trabalho, porque foi a maneira que eles viram
para chamar a atenção dos filmes. Quanto
a essa competição interna, realmente aconteceu.
Se você pega um quadro de lançamento de
uma produtora americana, você vê que os
filmes são agendados com um, dois anos de antecedência,
já sabendo o exato fim-de-semana, e da mesma
forma você vê um calendário geral
das outras produtoras, que é para não
haver conflito entre datas.
De fato, você tem aqui, por exemplo, 3 documentários
sendo lançados na mesma data: Meninas,
Ginga e O Dia em Que o Brasil Esteve Aqui.
É de se supor que, mesmo com as temáticas
diversas, parte do público interessado ficou
dividida e não conseguiu ver esses filmes.
Mas você veja. Esse é um caso interessante.
Um filme como Ginga, por exemplo, só precisa
entrar em cartaz para dar visibilidade para a Nike,
e aí pouco importa quanto público vai
dar, ele já teve seu destaque ao entrar nas estréias
do cinema e poderá capitalizar isso nas vendas
de dvd. Mas, quanto ao conflito de datas, você
está certo.
E, no mais, temos nesse semestre uma série
de filmes de autor, ou filmes considerados de pequeno
ou médio interesse mercadologicamente falando,
ou de forma mais geral filmes que deram muito pouco
público, alguns não chegando a 5 mil.
Temos três coisas aí. Existe o problema
do filme que não tem um público pela nulidade
do projeto ou da realização, e existe
o filme que não tem seu público de
fato, e que precisaria de um amparo diferente. Ou
seja, você tem aquele filme que pretendia ser
alguma coisa e não é, e tem aquele filme
que cumpre as suas propostas mas interessa a um público
restrito. Esse último é um tipo de filme
que vem sendo radicalmente negligenciado. E por fim
você tem aquele filme do cara que fez em digital
– é um pouco o resultado dessa democratização
do cinema, em que todo mundo faz e quer ter o seu espacinho
ali –, o cara vai em busca de um lugar para exibir.
Ano passado tivemos dois filmes assim, Preto e Branco
e Preto no Branco. Então temos esses três
exemplos no circuito de filmes de pouco público.
No caso desses filmes em vídeo, ao qual eu
acrescentaria o Sou Feia Mas Tô na Moda,
no ano passado, e o Carnaval, Bexiga, Funk e Sombrinha,
desse ano, acredito que esses filmes têm uma relação
mais sadia entre o modo de produção empregado
para realizá-lo, o orçamento gasto, e
a divulgação, eu acho que existe uma certa
compatibilidade entre produção e exibição
que eu não vejo de forma alguma em filmes com
orçamentos maiores, quase todos fracassos.
São casos. Como o Cama de Gato, que
é um filme que eu não vi mas que alguns
defendem, e é um filme feito com câmera
de vídeo, não sei se ele captou mas ele
chegou lá, fez seu filme e conseguiu um espaço.
E temos um caso de exceção em permanência
de sala nesse semestre que é o Depois Daquele
Baile, que está semanas e semanas no Museu
da República, que é um lugar muito freqüentado
pela terceira idade, que acaba sendo o público
alvo mais direto do filme. É um filme que conseguiu
ficar várias semanas em cartaz, em comparação
com vários outros, que mal chegaram à
terceira semana.
Não sei se é assim. Se você
pega pela estatística, esses filmes vão
cumprindo as carreiras de uma forma muito escalonada,
Rio São Paulo, não é uma estréia
nacional. É difícil analisar isso de fato.
Entendo o que você quer dizer, ele é um
filme que tem um nicho. Mas é um típico
caso de filme que talvez tenha sofrido com essa urgência
de entrar em cartaz. Um distribuidor importante é
muito veemente numa opinião a respeito dessas
formas de apoio à distribuição.
Ele acha que isso é completamente engana-trouxa.
Que formas são essas?
O apoio da Petrobras à difusão, por
exemplo. Para ele, isso é jogar dinheiro no lixo.
Na verdade, a vida comercial de um filme ou não
– e isso é que falta pensar – tem que ser pensada
na gênese dele, quando o filme nasce. Aí
você tem o filme pronto e aí dá
uma graninha para distribuir, 99% dos casos é
uma grana que vai ralo abaixo, que não vai adiantar
nada. É um pouco como a Globo Filmes, que vem
atendendo a filmes médios por conta do choro
dos produtores menores. Na verdade, esse no fundo é
um apoio que só vai corroborar a visão
da Globo Filmes de que não adianta, só
adianta quando a produtora está interferindo
no projeto lá, desde o começo. No meu
entender é uma atitude muito esperta. E as pessoas
já sabem isso, o Antonio Carlos da Fontoura deu
declaração no jornal que a parceria com
a Globo Filmes significou prejuízo, uma vez que
esse apoio não é totalmente de graça.
E o que esses filmes menores não têm e
que os filmes maiores têm é aquilo que
é mais importante e faz toda a diferença
que é a chamada cross-media, a circulação
do nome do filme nos programas da TV Globo.
A minha impressão é que, à exceção
dos filmes de criança, os filmes brasileiros
não têm muita lógica de lançamento,
ficando à mercê das lacunas das cadeias
exibidoras de circuitinho, numa arrumação
meio randômica de lançamento que naturalmente
não pode fazer bem à divulgação
do filme.
Você está mais ou menos certo. Qual
foi o diferencial da Embrafilme? Foi uma concentração
radical do planejamento. A Embrafilme tinha informação
do filme estrangeiro porque ela controlava a venda de
ingressos, e controlava toda a informação
do filme brasileiro porque ela controlava desde a produção
até a distribuição. Então
isso era uma coisa hipercontrolada, os filmes de férias
dos Trapalhões, os filmes que estreavam em julho,
os filmes que estreavam em dezembro, eram dois filmes
por ano, os Trapalhões garantiam renda, tinham
um adicional de renda, era uma coisa que se azeitou,
e funcionou durante um tempinho mas funcionou. Esse
planejamento se perdeu por completo e não existe
hoje. Mas nesses últimos dez anos, uma certa
organização natural do mercado começou
a aparecer, como por exemplo o filme de janeiro, como
Se Eu Fosse Você, Sexo, Amor e Traição...
O Casamento de Romeu e Julieta não ficou
pronto para janeiro, estreou em março e perdeu
a chance de alcançar um público maior.
Ou seja, a data de janeiro já é uma data
para comédias românticas alternativas aos
filmes de Oscar. Então nas férias de dezembro
você tem o filme para criança, animação,
Xuxa entrando sempre 25 de dezembro, Renato Aragão
entrando uma semana seguinte, na primeira semana de
janeiro. E a Xuxa tem um dado curioso, que é
o fato de que todas as primeiras semanas são
muito ruins, porque é fim de mês e está
todo mundo sem dinheiro por causa das compras de Natal,
mas para a Xuxa é importante estrear nessa data,
porque ela foge de outras determinadas datas e conflitos
de filmes. Outra data importante é agosto. Depois
de Cidade de Deus ter estreado em agosto e ter
feito imenso sucesso, ano passado você teve Dois
Filhos de Francisco e esse ano você vai ter
o Anjos do Sol buscando um nicho ali. E agosto
é pós-blockbuster de férias, então
é uma brecha interessante. Nessa arrumação
natural do mercado, os filmes que contam com uma estrutura
de distribuição grande acabam se encaixando
no plano das grandes distribuidoras. E quem determina
essas datas são pessoas que têm extrema
experiência no assunto e vêm todas da Embrafilme.
Jorge Pelegrino na UIP, Rodrigo Saturnino Braga, Marco
Aurélio Marcondes, Bruno Wainer (que não
era da Embrafilme mas cresceu nessa época). Então
são pessoas que entendem muito de mercado, ao
contrário dos produtores, que não conhecem.
O Data Base Brasil [banco de dados criado pela Filme
B com dados e detalhes sobre salas de cinema], que é
avidamente esperado pelos distribuidores e pelos exibidores,
geralmente nem é aberto pelos produtores para
ver onde é que tem sala de cinema no Brasil,
onde é que é possível se encaixar,
de que forma mais gente pode ir ao cinema. Ainda que
falte uma pesquisa qualitativa, algo que a gente não
tem ainda, é possível ter uma noção,
e a partir daí você pode pensar um pouco
mais, planejar um pouco mais.
Saindo dos filmes de grande público e indo
para os filmes considerados de médio porte, ano
passado tivemos uma situação de filmes,
como Cidade Baixa e Cinema, Aspirinas e Urubus,
que foram exibidos em festivais internacionais, fizeram
o circuito de festivais nacionais e foram lançados
logo depois, com um razoável sucesso.
Isso é complicado. Bom, vou fazer uma comparação
entre filmes que não têm nada a ver um
com o outro. Por exemplo, Tapete Vermelho. O
filme do Luiz Alberto Pereira se encaixaria supostamente
num projeto de cinema popular, mas que pega uma figura
como o Mazzaropi, que se você for ver, já
não diz mais nada para aquelas pessoas que pode
ir a salas de cinema. Ou seja, Tapete Vermelho
é um filme de mercado interno, e quem nunca ouviu
falar de Mazzaropi não vai se relacionar com
o filme.
Mesmo porque o público de cinema brasileiro
hoje em dia é inteiramente diferente da faixa
de público que via os filmes do Mazzaropi.
Exatamente. Uma coisa que eu gosto muito de diferenciar
é que hoje em dia é impossível
falar em cinema popular. Eu prefiro usar o termo "cinema
hegemônico", sei lá, alguma coisa assim.
A coisa que mais me irrita é "prêmio popular":
pelo menos chama de "júri do público"!
Não é júri popular. Imagina o Festival
de Gramado e aquelas pessoas que pagam R$70 para ver
os filmes e você chama de júri popular?
Hoje em dia, o entretenimento popular está na
televisão, não está no cinema.
Hoje em dia, fazer um filme sobre Mazzaropi é
fazer um filme para meia dúzia de espectadores
jovens que vão ao cinema e conhecem Mazzaropi
porque está passando no Canal Brasil. Eu odeio
esse termo, mas o Mazzaropi agora é cult.
É um nicho mínimo. E no entanto o projeto
do filme Tapete Vermelho é o projeto de
um filme direcionado a outra platéia.
E você acha que ele está falando para
alguém que não está lá para
ouvir?
Para ninguém, ele está falando para
um vazio completo. Isso não é um juízo
de valor estético, porque eu não estou
falando como crítico, estou falando de mercado,
até porque é um filme que eu não
vi. Não consegui ver em festivais e quando entrou
em cartaz eu estava viajando. Então falo das
minhas impressões de profissional aqui da Filme
B. E tendo ouvido várias pessoas, até
mesmo o diretor, que fala muito disso – a maioria dos
diretores de filmes que se querem populares –, de comunicação
com o público, etc. Que comunicação
com o público é essa? Porque se você
quer se comunicar mesmo com o público, você
tem que entender que público é esse, quem
está indo ao cinema, esse público que
muitas vezes tem o olhar completamente formado pela
televisão. Então ele vai procurar um tipo
de coisa que ele já espera.
Já o Cinema, Aspirinas e Urubus e o Cidade
Baixa são projetos claramente formatados
para ter uma repercussão internacional. Formatados
mesmo, desde o começo, e eu não acho isso
ruim, não. O que acontece é que esses
filmes provavelmente têm um retorno comercial
melhor, mesmo tendo um público nacional menor
do que vários outros. Eu não tenho esses
números, mas eu sei que o Cidade Baixa
foi vendido para países estrangeiros, ele está
estreando na Inglaterra com mais cópias do que
estreou por aqui. E mesmo no mercado nacional, eles
se inserem num perfil específico de mercado,
num tipo de público que existe e vai ao cinema.
Agora, estamos aqui para falar de números, porque
eles são importantes, decisivos no alcance comercial
e na forma que os filmes alcançam o público.
Mas nada disso tem a ver com a memória, com a
maneira que esses filmes têm de ser lembrados
e participar de um momento particular da História.
Esse processo é muito mais complexo e rico, e
eles acabam encontrando um jeito. Isso é o mais
importante.
Entrevista concedida a Ruy Gardnier
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