UM POUCO DO ÓBVIO, UM POUCO DO NOVO,
UM POUQUINHO DE IMAGINAÇÃO

Produção e difusão de cinema no Brasil)

Vamos ao tópico com calma, mas com firmeza: o cinema brasileiro atual é um fantasma. Existe como vulto, rastro e sintomas, mas que não se realiza, não é novidade, como fruição do público. Não, eu não concordo com a teoria de que filmar nos basta, de que um filme na prateleira ainda é um filme. Filmar não basta como também não nos bastam os fenômenos de público eventuais.

Na luta por formas mais eficazes de circulação do audiovisual independente brasileiro, armam-se as pedras contra os exibidores por sua falta de imaginação e risco e contra os distribuidores, majoritariamente obedientes ou representantes diretos do comércio exterior norte-americano. Comerciantes a comerciar, não fazem mais, esses senhores e seus contadores, do que comungar o seu papel cristalizado de importadores de audiovisual – uma postura que segue a lógica de um mercado desenhado para os lançamentos de grande vulto, cujo marketing e a publicidade estão formatados para salas cercadas não apenas de uma cartilha econômica inflada como de um conjunto simbólico exclusivista.

Se o cinema inclui a relação do espectador com a fruição da tela, com o espaço de evolução da imagem e do som, o que se tem como crise hoje não é apenas a disputa de espaço para o cinema brasileiro nesses nossos poucos free-shops audiovisuais sobreviventes das 3.000 salas de cinemas que já tivemos nos anos 80. Uma reflexão necessária e mais eficaz, me parece, está numa ampliação do tema da distribuição para uma crítica do próprio modelo de difusão e apresentação pública do cinema brasileiro hoje. Um modelo que vai desde a forma de produção empresarial, passando pela opção estética pelo verniz formal, até o desenho final de difusão das obras. Não haverá impacto estético, afirmação cultural diferenciada, arte, enquanto formas divergentes e economicamente viáveis de apresentação desse cinema não forem efetivadas.

Formas independentes, mas sistemáticas – estruturadas sobre uma rede alternativa de salas de exibição (não "alternativas" de salão, pastel-de-tomate-seco-com-berinjela da Av. Paulista ou da Zona Sul carioca), mas com outros parâmetros de qualidade, lucrabilidade e difusão que de fato concretizem no país uma cultura do cinema como espaço de arte e interação cultural.

O que parece essencial é uma mudança de parâmetro do que pode ser a sustentabilidade, o profissionalismo e o perfil de marketing do cinema realizado no Brasil. Porque não faz sentido a defesa de um cinema dependente do Estado como o que temos hoje (seja o filme da Xuxa, seja o novo longa do Bressane) como modelo de sistema. Assim como é indefensável que a contrapartida de público e a política de formação de público se baseie em meia dúzia de projetos itinerantes limitados e gratuitos ou numa rede de festivais desarticulados e pontuais. Essas ações, bem aplicadas e patrocinadas com dinheiro público, deveriam ser mais do que as janelas primordiais para a circulação de filmes fora dos grandes centros: deveriam ser também as chaves de celebração e de divulgação de um sistema paralelo de cinema. É definitivamente essencial que se racionalize o investimento público no audiovisual apostando não na produção de grandes elefantes brancos desalojados, mas em pequenas obras, diversificadas, e, acima de tudo, articuladas com um sistema independente de salas de cinema aportadas mas não mantidas pelo dinheiro público – baseadas na comercialização (isso mesmo) de obras audiovisuais de pequeno porte, com ingressos baseados numa sustentabilidade logística e de pessoal cujo parâmetro não pode ser a margem de lucro e a circulação de capital cultivada nesse tímido mercado de importadores e seus limitados menos de 2.000 pontos de venda. Mais do que expansão do mercado exibidor existente, o que parece ser definidor é uma diferenciação de um mercado exibidor renovado, pulverizado, voltado para outras formas de manutenção econômica e estética do audiovisual. Nada contra a existência mercadológica dos cinemas McDonald’s e dos cinemas Bistrô, mas isso não basta se nos faltarem alternativas.

É quase patético falar em proporcionalidade de filmes brasileiros nas salas de um país onde o publico mingua e migra para o DVD e formatos caseiros de exibição, onde a renda média de 70% da população não possibilita a freqüência elevada de salas de cinema. A alta circulação semanal de capital necessária para sustentar o modelo de "palácios/estádios" cinematográficos não condiz com a capacidade de consumo dos espectadores. Obrigar, forçar a diminuição dos ingressos nessas salas padronizadas se torna inviável por dentro de um mercado exibidor formatado para uma demanda vultosa de capital programada para sustentar parâmetros internacionais de exibição. Em um mercado que se consiste como posto avançado da indústria norte-americana, não pode ser apenas na disputa por essas janelas viciadas de difusão que está o caminho para uma reviravolta. Mesmo sendo cumpridas e controladas as cotas para filmes brasileiros, elas devem ser vistas sempre como o são: uma reserva estratégica de mercado para potencializar e difundir outros tentáculos do sistema além dessa geografia de salas viciadas. Acreditar numa padronização do audiovisual brasileiro a esse modelo de difusão seria sinal apenas de obediência, não de avanço – o mercado do cinema brasileiro tem de ir além disso: vencendo em uma competitividade baseada no barateamento e no dinamismo da produção e difusão.

Cinema barato, de circulação barata, digital, em acordo com televisões não-lucrativas, em DVD, em salas itinerantes, integrando os Festivais de cinema (em uma rede que não seja de ineditismo festivo), os cineclubes organizados, as salas das ONGS, as universidades brasileiras, em um Sistema Brasileiro de Cinema. Organização civil democraticamente gerido por produtores independentes locais em que a democratização e pulverização do acesso aos filmes passa, não só, por exibições gratuitas em TV pública (a contrapartida mínima para o financiamento público), mas, antes de tudo, por uma economia de microempresas exibidoras auto-sustentáveis e coligadas, com distribuição baseada em sistemas majoritariamente digitais de baixo custo, com controle e orientação de qualidade de instituições públicas em parceria com associações culturais comerciais e industriais e aporte público para sua implantação. Com o mesmo orçamento de alguns festivais brasileiros de pontual comunicação com o público, pode ser possível a manutenção anual de mais de um espaço de exibição especializado em cinema brasileiro de baixo orçamento. Não, não se desmonte os festivais, longe disso – mas pensemos em sua potencialização para além da lógica do brilho eventual para patrocinadores. É preciso criar espaço de permanência, valor de troca sustentável financeiramente, a longo prazo, com um fetiche renovado em torno dessas novas janelas, fugindo do fetiche cristalizado do palácio cinematográfico pré-moderno ou da assepsia de parte do mercadinho de "arte". Podem existir, lá estão, com suas belezas e suas mazelas particular, mas não sustentam mais o cinema como interlocutor cultural e artístico no Brasil. Porque de circuitinho de arte com sustentação econômica baseada em ingressos mais caros do que muitas salas ditas comerciais, já estamos cheios. Ou não? Porque entregar salas alternativas nas mãos dos mesmos agentes políticos e econômicos de sempre, com os mesmos vícios de arte e qualidade brasileira, já passou do limite. Ou não?

Quitandas cinematográficas, uma rede de cineastas, curadores e pequenos produtores. Negando a falácia de que não há público para o audiovisual brasileiro e apontando a ferida: o que não há é audiovisual independente desenhado para um público que está além do consumo médio dos centros de classe média / média alta. A multiplicação do mercado de DVDs, os recordes diários que o Brasil bate em números de downloads na internet, a multiplicação desenfreada das lan houses em todo o território brasileiro, deixam claro que o crescimento do audiovisual como espaço cultural e expressivo estratégico e em ebulição no Brasil é inegável. Uma ebulição renovada, que não pode passar por um populismo de linguagem, mas por uma maior diversidade de linguagem cinematográfica e consistência de projetos abertos a dialogar com o cotidiano audiovisual e cultural – trocar os elefantes brancos por pequenas possibilidades de acontecimentos – riscos menores para maiores vôos. É isso. Cultivando uma economia de mercado e um diálogo com o público em outros parâmetros de sustentação.

Porque é falso dizer que o publico não está interessado pela novidade audiovisual no Brasil. É falso dizer que eventuais grandes bilheterias de filmes indicam o gosto do público. Números de bilheteria de grandes lançamentos não representam o prazer do cinema, mas determinam a eficácia do apelo inicial, de marketing, para os filmes. Nada injusto, nada pejorativo – mas não mais do que isso. O fato social concreto, sabemos, é que o público médio não tem dinheiro para circular por um universo de palácios cinematográficos senão quando fazem concessões por eventuais "acontecimentos de mídia". Não é só uma questão de gosto ou de perfil, mas de segurança em um panorama ou de exibição que impede que alguém que ganhe menos de 1.000 por mês vá ao cinema mais de uma vez a cada 30 dias. Porque, diferentemente de uma belicosa opção, o projeto mais interessante não é diminuir os números absolutos do chamado cinemão – mas aumentar a circulação do cinema local, de menor porte de capital, em absoluto.

E é papel dos realizadores desenhar esse cinema. Repensando seus modelos estéticos de realização, suas demandas de linguagem, de produção. Se alijar de um conceito de produção mais barateado no Brasil é um brinquedo caro demais nas mãos de realizadores cujos parâmetros de segurança econômica e realização profissional se dão como simulação de um desejo proto-industrial ineficiente. A classe média baixa, assim como os consumidores de audiovisual periféricos interessados em algo mais do que a reprodução do mesmo, está estupidamente sendo ignorada econômica e culturalmente por este modelo de falso capitalismo. Políticas e reivindicações correndo, cabem aos realizadores brasileiros uma movimentação em prol de uma maior integração entre seus processos criativos, seus planos de produção, uma postura de obras pensadas como efeitos de integração entre pequenos produtores que se unam como os legítimos proponentes de mercado para suas realizações.

E isso começa lá atrás: na relação dos diretores/produtores com seus projetos, na sua forma de desenhar a produção dos filmes desde o roteiro, passando pela derrubada dos altos cachês Das estrelas da companhia (sim, o mercado é restrito mas os cachês são classe A – fruto talvez da insegurança de que o mercado não se perpetue e de que é preciso fazer a caixinha e de um padrão publicitário de boa vida) e do formato de produção-taxímetro em que cada segundo é contado em violentas cifras. Regras imutáveis em que as produções se inflam de dinheiro para sustentar um conforto empresarial sem imaginação, sem riscos – agasalhado pelo poder público.

É preciso uma insurreição organizada de um novo perfil de realização, deixando de lado o lugar de artífices desejosos controlados por uma produção neurótica, fornecedora de segurança. Um cinema esteticamente avivado só poderá surgir da articulação entre uma proposta cênica bem urdida com formatos re-conceituados de produção. Nenhum sistema decente de difusão do cinema será possível enquanto a lógica for a da manutenção do cineasta como esse proto-funcionário público muito bem pago, cuja segurança se baseia na vista grossa de quem aprova o perfil orçamentário. Essa segurança, esse nível de vida Gávea-Higienópolis é um vício naturalizado, fruto da estupidez da política paternal e do cinismo, em um cenário em que não há sistematização para o audiovisual independente (leia-se: sem relação com grandes núcleos de produção televisiva ou norte-americana). Faltam bons diretores no cenário brasileiro? Diria que antes faltam bons realizadores, no sentido mais amplo – nomes que saibam, das mais variadas formas, desenhar e desejar projetos de produção de imagens eficazes e costurados dentro de conceitos cênicos com um maior dinamismo econômico e estético, sustentáveis e abertos a um público diverso. Não é o "funciona/não-funciona" publicitário – porque não é fórmula, é formulação contínua e risco. Não que não os haja aqui ou acolá, nas entrelinhas dos festivais, em projetos debaixo dos braços, em algumas poucas realizações anuais. Mas recorrentemente, o que se vê é que esse esforço de renovação termina no set, e qualquer novidade de criação termina desarticulada, isolada, desovada na mesma rinha de cães das cotas de tela ou dependendo do abrigo daqueles mais do que raros exibidores aguerridos em sacrificar cifras em nome de algumas obras menos já-comportadas no mercado.

No atual panorama é difícil acreditar que haverá um combate viável vindo do Estado contra essa lógica estéril do cabide de filmes natimortos (Ancinav soterrada na gaveta...), ou de que os velhos vícios dos falso-comerciantes serão largados por velhos viciados. Mas pode-se imaginar, mesmo que sofridamente, que novos realizadores, pequenos produtores, escolas de cinema (!!), não se entreguem a essa naturalização do glamour estatizado. Ainda que tenhamos que lidar com uma Lei do Audiovisual prorrogada, que engessa a articulação do cinema com o mercado e que deixa as mesmas brechas para a concentração financeira, é preciso uma postura primordial por parte dos realizadores. Resistência, mesmo, a um mercado que tenta seduzir os emergentes com os mesmos parâmetros inflacionados da "realização profissional" em detrimento da proposição de formatos diversos de interferência cultural. Uma resistência não por sacrifício moral, mais do que isso: por estratégia de produção, criação e difusão sustentável de suas imagens mais baratas, mais leves, mais abertas a ir além da cartilha nacional. Um certo cinema brasileiro, outro, que enfrente a maré mais por proposição de espaços do que por desejo de adesão. Forças dispersas, mas articuladas, isolando as velhas portas para as velhas formas, e se dedicando à criação de novos caminhos de inserção social via novas e velhas tecnologias (a TV digital aparece como território em loteamento...) . Jogando o jogo da parceria com o poder público de outras formas, fazendo filmes com menos dinheiro e mais estratégia, apostando em outras formulações do que é ser, integralmente, um realizador de audiovisual no Brasil. Não, não é o discurso por um cinema ideal, unificado em estética, mas por uma nova dinâmica de criação e produção, de gênese mais interessada e sustentada no fetiche do novo, em diferentes consistências estéticas para uma maior incisão cultural e debate imagético. É um certo cinema brasileiro possível que possa enfrentar o nosso "cinemão" não apenas por contraposição política primordial, mas por contaminação estética, mercadológica e econômica. Reinventar a roda? – perguntarão os mais cínicos ou os preguiçosos. É mais o caso mesmo de se inventar um publico que não existe.

Porque ele existe.


Felipe Bragança