Já
foi dito por aí que os artistas ao mesmo tempo
representam o seu tempo e são exceções
a ele. Quando ocorre uma associação íntima
entre as crenças do artista e da sua comunidade,
a obra talvez se torne ao mesmo tempo significativa
e limitada justamente por esse aspecto cultural, o de
ser uma representação aproximada dos ideais
dominantes de uma sociedade. Por outro lado, certas
obras que indicam uma oposição entre os
objetivos de quem faz qualquer espécie de arte
(no sentido mais palpável do termo) e os interesses
da sociedade apresentam algo de singular e patético
em sua natureza.
Patético, como se sabe, é um termo que
se refere a um sofrimento perceptível (o pathos,
no termo antigo). O patético inspira solidariedade
moral, inspira certa tristeza que nos faz sofrer unidos.
É o sentimento que surge quando a gente vê
o público raquítico que muitos filmes
brasileiros recentes vêm tendo.
Bem, é claro que há um espaço natural
na história das artes (novamente, no sentido
mais amplo e palpável) para criações
que não se destinam a um público amplo.
O exemplo de algumas obras modernistas é tentador
por ser óbvio: a que público se destinou
o Pierrot Lunaire do Schoenberg, ou Macunaíma,
o livro do Mário de Andrade, ou tantos outros
exemplos? A um pequeno grupo. Mas será que é
o bastante obter isso da grande maioria dos filmes de
longa-metragem, que envolvem dezenas e mais dezenas
de profissionais – que se destinem a um pequeno grupo?
Isto ganha definitivamente um ar patético quando
a gente vê os próprios filmes, que, com
exceções eventuais, são obras que
deixam evidente a vontade que têm de encontrar
públicos maiores do que alcançam. Isso,
claro, não é regra absoluta – já
que não apenas há alguns poucos sucessos
a cada ano como há diversos filmes de exceção,
que encontram sua grandeza justamente por fazer opções
mais radicais ou simplesmente menos palatáveis
para as platéias da nossa época. Mas mesmo
em vários destes filmes de exceção
talvez seja possível encontrar a dor patética
da perda do público (para lembrar apenas um exemplo
forte, este é simplesmente um dos temas centrais
de O Signo do Caos).
(Que, no entanto, não se deixa ver nos filmes
de maior sucesso - cada um a seu modo, Dois Filhos
de Francisco, Cazuza – O Tempo Não Pára
ou Lisbela e o Prisioneiro, por exemplo,
são todos eles filmes que celebram o público
que vão encontrar, sem demonstrar nostalgia de
uma platéia que não existe).
Fiquei lembrando disso principalmente quando vi Tapete
Vermelho, o filme de Luís Alberto Pereira
em homenagem ao Mazzaropi. Nele, Matheus Nachtergaele,
numa performance impressionante, incorpora todos os
tiques do Jeca, personagem do Mazzaropi. Mencionei ali
em cima o herói sem caráter Macunaíma,
e acho curioso que Tapete Vermelho queira homenagear
esse outro herói modernista, com seu caráter
tinhoso e sábio.
É curioso, porque muitos dos filmes do Mazzaropi
na verdade são bastante mal-feitos (sobretudo
os dirigidos pelo próprio Mazzaropi), como já
na época era possível perceber. Alguns
outros filmes da época, por sua vez, pareciam
ser muito mais "bem-feitos" – e, passado o
tempo, essa boa qualidade se torna insignificante. Mas
os filmes do Mazzaropi criavam uma relação
com sua platéia que passava por cima das limitações.
Isso também aconteceu com alguns (muito poucos,
na verdade) filmes bem-feitos, como o clássico
O Pagador de Promessas. Hoje em dia, depois de
todas as querelas do Anselmo Duarte com os críticos
e com o pessoal do Cinema Novo e sobretudo depois do
prêmio em Cannes, talvez soe meio estranho pretender
comentar agora as limitações evidentes
de O Pagador de Promessas. Mas o recente lançamento
em DVD permite que a obra não fique escondida
atrás do mito, e o filme sobrevive muito mal
à revisão, com seu maniqueísmo
(marxismo de galinheiro, na expressão do outro),
com a burrice tinhosa do seu protagonista, com os estereótipos
de fácil identificação – como,
aliás, se poderia dizer dos filmes do Mazzaropi.
Mas esses filmes convenceram seus públicos, na
sua época.
Tapete Vermelho, pretendendo homenagear Mazzaropi,
talvez tenha mais traços em comum com O Pagador
de Promessas. Talvez um dos problemas do filme seja
que parece tão envelhecido e desatualizado quanto
o filme do Anselmo Duarte. Se O Pagador de Promessas
tinha um grupo de capoeiristas entrando em cena
como se fosse uma escola de samba, Tapete Vermelho
tem um dono de sala de cinema que parece ricaço
de chanchada. Se em O Pagador de Promessas o
Zé do Burro queria porque queria entrar com sua
cruz na Igreja de Santa Bárbara, em Tapete
Vermelho Quinzinho teima em entrar com as suas latas
do filme do Mazzaropi numa sala de cinema. Talvez Tapete
Vermelho fosse mais convincente na época
de O Pagador de Promessas, com sua emulação
de Mazzaropi feita pelo Nachtergaele.
Como eu comentei antes, o aspecto patético se
acentua pela evidente vontade de redescobrir o público
perdido, presente em Tapete Vermelho do princípio
ao fim. Portanto, há aqui (como na maioria dos
filmes brasileiros recentes) uma imensa distância
do ultra-modernismo de O Signo do Caos. Se em
ambos os casos há uma evidente vitimização
em jogo, o fracasso explícito do projeto de Tapete
Vermelho tenta se resolver por um apelo ao contato
direto com o público, com o tradicional esquema
narrativo de infantilização (ou idiotização
explícita) do espectador, que se vê relacionado
à epopéia dramática de um bom
caipira, um homem simples e sonhador. É mais
um projeto destinado ao grande público que não
consegue se encontrar com ele, entre tantos que entraram
em cartaz recentemente – e, curiosamente, seu enredo
pretende ser uma homenagem nostálgica a certos
filmes que encontravam seu público.
O tema e os ambientes de Tapete Vermelho sugerem
a comparação com o sucesso Dois Filhos
de Francisco – filme que, ao invés de mostrar
saudade de um gênero perdido, se interessa pelo
drama dos seus personagens com convicção
incomparavelmente maior, com muito mais preocupação
pela história que conta (e não pelo seu
"significado"). No entanto, é preciso
admitir que essa é uma comparação
cruel entre um filme que encontrou seu público
e outro que demonstra tê-lo perdido. Porque, justamente,
mais do que qualquer outro, Tapete Vermelho é
um filme que se mostra nostálgico de uma outra
platéia, uma platéia que relevasse as
suas limitações, sua preguiça narrativa.
A conseqüência é que várias
de suas cenas parecem ser verdadeiros Manifestos de
um Cinema Que Perdeu Seu Público. Esse aspecto
desde o princípio é sugerido pela emulação
feita pelo Nachtergaele, assim como pela trajetória
dos personagens saindo do interior rural para as cidades,
encontrando lojas e igrejas no lugar das salas de cinema
e o MST brigando com os eternos coronéis da vida
rural – mas se torna explícito ao final, quando
Quinzinho, de posse da cópia de um filme com
Mazzaropi, vai à sala de cinema e exige que seu
filme seja exibido. Nesse momento Tapete Vermelho
abandona qualquer intenção de sutileza
e deixa claro através do seu personagem o seu
ponto de vista, fazendo desse trecho do filme um momento
de desabafo catártico – Quinzinho grita diante
da sala de cinema que lá só são
exibidos "filmes ruins". Possesso, ele xinga
insistentemente os donos das salas de cinema, ausentes
da cena: "Seus cus-de-boi! Seus cus-de-boi!".
Essa raiva patética de Quinzinho mostra de forma
bem clara a tristeza dos filmes que não têm
espaço de exibição nem público
para lhes assistir. Talvez seja a cena auto-representativa
mais triste do cinema brasileiro em anos e anos.
A identificação entre o cineasta que quer
exibir seus filmes e Quinzinho, que quer exibir Mazzaropi,
talvez pudesse ser entendida ao Zé do Burro do
Pagador de Promessas. Carregar um filme nas costas
é similar a Quinzinho com sua obsessão
e também ao Zé do Burro carregando a sua
cruz até a igreja de Santa Bárbara. Inclusive,
vale lembrar que a Zé do Burro é oferecida
uma alternativa inteiramente lógica, a de que
ele leve a cruz ao terreiro de Iansã - a quem
na verdade ele fizera a promessa –, mas mesmo assim
ele prefere teimar com a situação, obcecado
pelo local da igreja. Seria absurdo sugerir que cineastas
deveriam seguir outras opções, mas não
há como fugir da ironia em perceber que outras
alternativas à produção em película
para salas de cinema podem ser tentadas (cinema digital,
distribuição em DVDs, exibição
em redes de TV, por exemplo), tal como Zé do
Burro seria mais inteligente se aceitasse uma alternativa
à igreja de Santa Bárbara – mas o ritual
exige filmes de alto nível técnico em
salas de cinema.
Falta combinar com os espectadores para eles comprarem
ingressos – com os poucos que ainda vão ao cinema
no Brasil (porque o ritual manda que a cruz entre no
cinema). TV? Nem pensar.
O mais triste disso tudo é que há alguns
filmes realmente muito fortes escondidos pelo esquema
de exibições por duas semanas nas salas
de cinco cidades do país. Nem todos eles exibem
essa dissociação entre o que as platéias
imaginam deles e o que eles imaginam de seus públicos
– ao contrário, há alguns que parecem
estar em boa sintonia com o que se espera deles (como,
por exemplo, Árido Movie, A Máquina,
Depois Daquele Baile, Achados e Perdidos,
Boleiros 2, para lembrar apenas de lançamentos
de 2006, com seus altos e baixos) e há outros
que permitem aos espectadores ter novas idéias
sobre o que esperar dos filmes, e assim criam as novas
platéias (como foi o caso do já citado
O Signo do Caos ou também dos filmes de
Eduardo Coutinho – ou como é o caso, para lembrar
um filme deste ano, de Brasília 18% ou
do ainda não lançado Serras da Desordem).
Os primeiros poderiam ter audiências maiores com
facilidade, e isso seria bom para todos; os segundos
poderiam provocar mais debates e idéias, e isso
certamente seria muito bom. Ficam, no entanto, restritos
ao gueto microscópico e miserável de poucas
sessões e uma ou outra matéria nos cadernos
de cultura das capitais.
Alguns filmes surgem com força para romper esse
esgoelamento e são cheios de vitalidade (basta
lembrar de Madame Satã, Garotas do
ABC, O Prisioneiro da Grade de Ferro e outros
já citados nesse texto). Mas não é
estranho que um clima mórbido tome conta do ambiente
– um clima mórbido presente tanto em certos casos
patológicos (Quanto Vale ou É por Quilo
ou Cama de Gato, por exemplo, assim como
em Tapete Vermelho) quanto até mesmo em
alguns dos filmes produzidos mais interessantes. É
o caso de O Fim e o Princípio, Brasília
18% e, evidentemente, O Signo do Caos, todos
eles filmes de realizadores já há bastante
tempo na estrada e não são os únicos,
há ainda os filmes de Capovilla, Ruy Guerra...
É natural, sem dúvida, que a passagem
do tempo traga isso para os filmes de realizadores experientes
– mas essa atmosfera mórbida parece invadir diversos
filmes além dos citados (por exemplo, há
ainda Árido Movie, Achados e Perdidos
e, numa trama que parece justamente tratar disso,
A Concepção).
* * *
Há filmes, raros, que são por natureza
gritos agônicos, mas não se trata da maioria
da produção. Essa produção
que não se pretende agônica precisa chegar
ao seu público. Os artistas não devem
ser obrigados a ir onde "o povo" está,
mas é preciso dar aos filmes essa chance. Seja
através de circuitos de exibição
alternativa, nas periferias e no interior, seja através
do mercado de DVDs, seja através da exibição
na televisão, o fato é que os filmes precisam
dessa chance. Sem essa sintonia mínima, sem esse
encontro, não existe possibilidade de compreender
com rigor como são nos dias de hoje os acordes,
os ruídos e as dissonâncias que existem
entre os filmes e seus espectadores, simplesmente porque
não há impressões a tirar de relações
que não existem. Muitos projetos de filmes deixam
de ser feitos; dos que são feitos, quase todos
não são vistos. E assim segue se mantendo
raquítica a relação entre os brasileiros
e os filmes que são feitos aqui.
No sonho realizado de Quinzinho ao final de Tapete
Vermelho, o filme de Mazzaropi é projetado
para um cinema lotado, com entrada grátis e o
tapete vermelho do título estendido na porta.
Bem, há algo de real nesse sonho: é preciso
considerar que talvez esse fosse o único modo
de lotar um cinema para assistir a um filme inteiro
dirigido pelo Mazzaropi nos dias de hoje. À parte
isso, vale notar que aos filmes atuais não é
preciso tanto. Não é preciso tela grande,
pode ser pela televisão ou DVD; não é
preciso cinema com tapete vermelho, pode ser no aconchego
do lar. Ao invés de demonstrar saudade do que
não existe, é necessário poder
criar as novas platéias, fazê-las existir.
Não apenas porque é direito delas, mas
porque é vital para a produção
– e a distância forçada do público
sufoca essa relação vital e acaba por
se refletir negativamente de diversas maneiras nos filmes.
Daniel Caetano
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