ÁRIDO MOVIE E A CONCEPÇÃO:
PROPOSIÇÕES PARA UMA HISTÓRIA EM CURSO

Atravessa a história cultural brasileira do século XX uma forte questão identitária. Libertar-se do jugo eurocêntrico, buscar a autencidade do que se produzia aqui, afirmar uma capacidade única de inventividade – o que na área cinematográfica explodiu nos cinemas das décadas de 60 e 70. A chamada "retomada", no entanto, advoga para si uma "diversidade" que rechaça qualquer busca de unidade entre os filmes produzidos neste contexto, seja esteticamente, seja em termos de proposições que estabeleçam reflexões razoavelmente articuladas sobre nosso tempo-espaço atual. Mas o que podemos perceber em meio a um aumento significativo da produção é o esboço de determinadas "correntes", identificadas exatamente pela busca de um "posicionamento cultural", por assim dizer, de uma afirmação de vontades e positivização de um "projeto", ainda que este não seja rígido e plenamente definível.

Parte deste contexto e expoentes de uma geração surgida no âmbito mesmo desta "retomada", os filmes A Concepção e Árido Movie, que chegam ao circuito no mesmo momento, trazem indagações bastante relevantes no que concerne à postura cinematográfica (afirmações estéticas e elaborações de pensamento). Apresentando uma ligação direta com seu lugar de origem – Brasília, para Belmonte, e Pernambuco, para Lírio Ferreira –, ambos propõem questionamentos sobre a construção da identidade e apresentam interessantes desdobramentos para a relação entre realidade e ficcionalização, campos minados para um cinema que repousa sobre bases incertas e flutuantes como o nosso. Tanto um quanto o outro, surgem a partir de um espaço que concentra cargas identitárias: Brasília, capital disforme erguida para concentrar a estrutura do poder decisório nacional, e o sertão, localidade ampla conhecida sobretudo por determinadas facetas consagradas por toda uma tradição cinematográfica e imagem-síntese de um caldo cultural tomado historicamente como alvo da busca pela origem e por elementos formadores. Os dois filmes, no entanto, apresentam estratégias bastante diferenciadas em suas construções narrativas e escolhas estéticas, traçando linhas propositivas instigantes e afirmando a busca por um caminho.

Lino é um rapaz sem perspectivas. Filho de diplomatas e morador de Brasília, ele rechaça a morosidade que a cidade lhe oferece. É a sua voz que nos orienta e nos insere na realidade de A Concepção. Brasília nos é apresentada como um não-lugar, uma idéia vazia, descartada pelo personagem de início. Este centro nervoso do país é anulado de qualquer relevância, assim como de qualquer consistência, em sua existência sócio-econômico-cultural. Frente a este vazio estruturante, a esse anulamento do espaço de maiores caracterizações, o personagem abraça a incapacidade de uma construção. E a proposta do "concepcionismo", movimento que surge a partir de sua associação com amigos em situação semelhante, é justamente o apagamento da identidade. A "morte ao ego" que eles propagam, no entanto, revela mais da impossibilidade de elaboração de uma identidade, de uma construção significante, tanto em termos individuais quanto coletivos, do que uma abertura para múltiplas possibilidades e a suspensão da rigidez de uma identidade monolítica. A esquizofrenia proposta por A Concepção (e devidamente incorporada à estrutura do filme) como retrato de um estado de coisas, caracterizado pela rarefação de um espaço público, subsiste como um certo atestado de falência. O esvaziamento de uma geração está ali como um manifesto de que não há para onde ir ou o que fazer, a não ser "acelerar no vazio": ser tudo e não ser nada. A vivência social naufragou de certa forma como prática: cada um narra a si mesmo de forma superficial (vestir uma persona descartável) e passageira. O apagamento da memória e da identidade joga os personagens no vácuo. A possibilidade de construir uma narrativa (e de fazer História) fica em suspenso. A quebra de qualquer linearidade no filme de Belmonte e a sugestão de uma certa circularidade dos acontecimentos, que consistem na prática de um hedonismo ilimitado e de um teatro de máscaras, abraçam esta indefinição e esta escolha pela ausência de estrutura e pela não-filiação a um determinado tempo-espaço histórico.

Em Árido Movie, por outro lado, temos um espaço excessivamente mapeado pela cinematografia brasileira, o sertão, que evoca automaticamente um vasto repertório de representações, todas repletas de implicações identitárias. Partindo da premissa de trabalhar com todo um legado que o precede, Lírio Ferreira monta seu palco neste terreno permeado de simbologias, mitologias e narrativas fundadoras, propondo uma narrativa arquetípica e arranjando referências ao longo dela. Jonas, um homem urbano habitante do sudeste, por conta de uma circunstância, se vê obrigado a encarar sua origem (ir enterrar o pai no sertão). Na jornada que fará, diversas possibilidades narrativas se interpõem, criando diferentes eixos: o dos jovens recifenses boa-vida, cuja inconseqüência conduz ao tráfico local, o da videomaker-documentarista em busca do profeta da água e o dos nativos em conflito de terras com o coronelismo sem lei. A Sociedade, a Economia, a Arte, a Religião, a Política e a História estão no caminho do road movie do qual Jonas é o fio condutor e que é construído a partir de um roteiro que orquestra estereótipos, costurando elementos de representação importantes para um ponto crucial do cinema brasileiro recente: a sombra do cinema novo, com suas questões políticas e estéticas em torno da identidade brasileira, espelhadas no sertão e em suas problemáticas históricas. Ao ir ao encontro deste universo, retomado com insistência pelo cinema dos últimos 10 anos, Lírio Ferreira assume um posicionamento fundamental: para encenar uma narrativa com tais premissas deve-se tratar sobretudo da representação como objeto. Rima cinematográfica do mangue beat, Árido Movie busca um diálogo amplo com a cultura brasileira, criando um pot-pourri de referências vagas e encarando os nordestes plenos de significação que trazemos na bagagem cultural. Ao fazer isso, ele se insere de forma ímpar na nossa produção audiovisual atual, pois tematiza em certa medida a necessidade de se pensar a construção significante do filme e seu diálogo com o entorno. Os tantos elementos concorrentes, que afastam-no de uma unidade, assim como seu "artificialismo", que vem justamente da necessidade de se colocar como construção, de se distanciar do que narra para focar na narração, reforçam esta sua inflexão conceitual, estabelecendo alguns parâmetros de reflexão sobre os caminhos do cinema brasileiro, no qual podemos perceber dificuldades no estabelecimento de uma relação consistente entre realidade e ficcionalização.

Por um lado temos a associação imediata de imagens documentais (ou pretensamente documentais) com um "real" plenamente acessível e tangível e, por outro, a ficção que não pensa sua relação com o mundo a partir do qual se constrói. Ou a vivência do país exerce um peso do qual é preciso fugir (de mesma forma que Lino e seus amigos escolhem ignorar a Brasília onde vivem) ou é necessário tematizá-la à exaustão, com o propósito muitas vezes de explicá-la, justificá-la e compreendê-la na sua incoerência. Frente a isto, Árido Movie se coloca como filme-problema, propondo uma questão ampla sobre a situação cultural que vivemos. Fica clara sua ligação com a geração contemporânea (nos jovens de Recife, na trilha sonora, nas afetações de linguagem), assim como sua consciência da instância da representação na construção de um discurso sobre a realidade. Ao fim do filme, o documentário sócio-histórico-antropológico sobre o profeta da água, que se junta a diversos outros trabalhos agrupados pela temática, numa galeria de arte contemporânea em São Paulo, parece nos dizer: o que construímos sobre o mundo em que vivemos está sempre calcado numa operação representativa, seja ela figurativa ou não, e ela sempre resulta num objeto, num produto mais ou menos vendável. E é preciso estar ciente disso. É preciso saber que relação a câmera pode criar com o mundo e que narrativa se deseja entoar.

O ritmo frenético, a imagem "pobre" e a falta de "consistência" que, de uma forma ou de outra estão presentes em A Concepção e em Árido Movie, testemunham a evocação do simulacro que ambos os filmes trazem. No primeiro, ele está presente como proposição afirmativa, na incorporação da esquizofrenia pelos personagens e pelo filme, enquanto no segundo ele está no cerne mesmo do questionamento proposto por Lírio Ferreira, uma vez que o filme todo alude a elementos que não lhe interessam propriamente reproduzir, mas apontar para sua configuração. Como cineastas jovens no cenário do cinema brasileiro, Belmonte e Ferreira apresentam inflexões cinematográficas articuladas e propositivas, partindo da regionalidade e lidando diretamente com a questão da identidade e da conformação da imagem. Cabe então a nós nos indagar que respostas temos para prosseguir a História (e o Cinema), como nos situamos e de onde falamos. Pois entre o mundo e a câmera há um abismo maior do que se pensa e é preciso saber exatamente como inferir nesta relação.


Tatiana Monassa

 

 






Árido Movie de Lírio Ferreira


A Concepção de José Eduardo Belmonte