Num
domingo, o Fantástico exibe a edição
para TV do documentário Falcão (Meninos
do Tráfico). Uma semana depois, no Domingão
do Faustão, o único dos meninos do documentário
que ainda está vivo, o Fortalece, que sonha em
ser palhaço de circo, é colocado numa
roda formada por sociólogo, antropólogo,
policial, juiz, MV Bill, Faustão, Beto Carrero...
O circo rapidamente se armou em torno do palhaço
Fortalece. Entre um e outro programa, o assunto correndo
de boca a boca, de redação a redação.
Foi impressionante a forma como o evento e o comentário
sobre ele se deram quase que concomitantemente. A junção
entre texto e imagem, ou a dissolução
desta naquele, nunca foi tão eficiente: não
apenas havia legendas e cartelas durante todo o documentário
como também ao final do seu último bloco,
no Fantástico, Glória Maria já
anunciava que alguns formadores de opinião, chocados
que estavam, dariam suas declarações após
os comerciais. Uma versão do documentário
para cinema, disseram-me, deve entrar em cartaz algum
dia. Aguardo por essa versão, para saber se Falcão
(Meninos do Tráfico) possui alguma imagem
afinal, alguma coisa para se ver e se somar ao
texto que pudemos ler na televisão no Fantástico
do dia 19 de março de 2006.
Minto: houve sim umas cinco ou seis imagens, que brigavam
por espaço entre as manchas que faziam pano de
fundo para as legendas. Lembro da imagem do menino que
se embrenhava pela escuridão de seu esconderijo,
com uma vela na mão e enquadrado de costas. E
daquela de um outro que, com uma camisa tapando o rosto,
preparava trouxinhas de maconha e falava que a vida
voltada ao tráfico era insensata. E lembro, é
claro, do único personagem de rosto desnudo,
o "regenerado", o ex-bandido, que vende bala
no sinal deslizando sobre uma cadeira de rodas (de tão
repulsiva, prefiro afastar a hipótese dele aparecer
já no final do programa para reconfortar os telespectadores
com uma fábula de regeneração,
a história de um marginal tornado inofensivo
à sociedade, ainda que ao preço de suas
pernas – e se sua inclusão no documentário
cumpre esse fim mesmo que a intenção tenha
sido outra, mais repulsivo ainda, pois é algo
que terá escapado ao domínio da articulação
e se "naturalizado" no pensamento).
Seguindo uma estrutura comum nos documentários
calcados em depoimentos, Falcão (Meninos do
Tráfico) consiste em blocos temáticos,
introduzidos por cartelas, em que a edição
agencia as falas dos entrevistados no sentido de localizar
pontos em comum nas declarações e justapô-los.
É assim que o documentário sai da desordem
empírica dos acontecimentos (saída esta
que, no limite, representa o risco de se perder a imediatidade
da experiência registrada) e atinge um discurso
– no caso, um discurso sobre os adolescentes que trabalham
no tráfico de drogas. Os "falcões"
são aqueles que, munidos de rádio e fuzil,
passam a noite em claro vigiando a entrada da "boca",
cuidando para que nenhuma invasão inimiga pegue
os traficantes de surpresa. Essa atitude de espera,
a partir de um ponto de vista estratégico, remete
à posição que um cinegrafista pode
assumir ao tentar fabricar uma imagem. Triste ironia:
os meninos do tráfico passaram o programa inteiro
à espera de uma imagem que não vinha.
E os telespectadores (ao menos eu) à espera de
"pessoas para ver", ao invés de apenas
"signos para ler". Pois entre um e outro borrão,
um e outro rosto apagado, pouco restava além
de um discurso a reforçar a má notícia,
aquela que todos conhecem mas preferem manter afastada
ao máximo.
A despeito de todas as possíveis razões,
de ordem até mesmo jurídica e prática,
para aqueles rostos estarem apagados, eu não
conseguia me livrar da assustadora idéia de que
nossa curiosidade com esse "outro", nosso
desejo quase obsceno de conhecer seu universo, estivesse
agora se furtando à necessidade de vê-lo.
Ele passa a ser a metáfora que tantas vezes lhe
atribuíram: o fantasma, o espectro assombroso.
Sua esfera se confirma de vez como aquela da invisibilidade,
da não-imagem. Não faria a menor diferença
se no lugar das silhuetas desfocadas dos meninos estivessem
retângulos em que se lesse: "aqui, mais um
menino do tráfico". E se as falas deles
estivessem todas consubstanciadas e editadas numa só
frase que resumisse tudo que o programa esperava provocar
nos seus espectadores. Adicione a isso o fato de que
quase todos morreram e só um sobreviveu e pronto:
aos problemas não-solucionáveis, a borracha
serve mais que o lápis. É de tremer de
pavor.
Vinte – ou quem sabe trinta – anos atrás, Godard
e Serge Daney já diziam que a TV "não
passa imagens". Após a Guerra do Golfo,
quando a TV provou que sua função não
é deixar ver, mas fazer ler, a
afirmação ganhou um relevo incontestável.
Foi então que Daney, "para facilitar sua
vida", fez a distinção entre imagem
e visual. Enquanto o visual nos impede de ver (porque
ele prefere que decodifiquemos, decifremos, "leiamos"),
a imagem nos incita a sondar suas ausências, suas
faltas – assim como seus excessos e sobras. No visual
nada falta, ele é fechado sobre si mesmo: a verificação
óptica de um procedimento técnico. A imagem,
diferentemente, sempre pede um contracampo e ativa um
fora-de-campo. A televisão, nessa lógica,
pertenceria ao visual, e não à imagem.
Para haver imagem, é preciso uma certa alteridade,
é preciso fazer reconhecer os traços de
um "outro", em última análise
é preciso que haja algo para montar contracampo
conosco. O Falcão (Meninos do Tráfico)
mostrado naquele Fantástico, contudo, a exemplo
de tantos produtos do audiovisual brasileiro recente,
anulava a experiência com o outro para fazer valer
o discurso dentro dos signos que conseguimos "ler".
Em vez de um universo no qual se perder e se abismar
através de uma experiência necessariamente
não-familiarizável à primeira vista,
elaborou-se um conjunto de enunciados que, mesmo rejeitando
pontuações conclusivas, já vinham
com seus significados de predileção insinuados.
Traçou-se um arco que contornou a experiência,
um drible dado pelo visual na imagem – como os túneis
que alguns pensam em construir aqui no Rio de Janeiro,
para que os carros possam ir de um a outro ponto da
zona sul sem precisar passar por favelas. As operações
de decupagem e de adição de texto durante
os depoimentos – as falas tinham em geral bastante força,
sem dúvida, mas eram reduzidas a uma transmissão
radiofônica – funcionavam mais ou menos assim,
amenizando os estranhamentos, às vezes os afastando
literalmente, pelas legendas que desfilavam na tela
o tempo todo e que traduziam as gírias (ainda)
desconhecidas pela classe-média.
No Fantástico e no Faustão, todos insistiram
na validade do documentário para entender melhor
o que se passa com "eles", sob o argumento
de que há uma enorme distância entre a
vida deles e a nossa. E é aí que entra
a contradição: a distância nunca
é encarada como distância, mas posta de
lado. Volta-se à estaca zero, pois o entendimento
deveria se produzir após o esforço (necessário,
incontornável) de percorrer essa distância.
Falcão (Meninos do Tráfico) ainda
não a percorreu, talvez bloqueado, nessa versão
para a TV, pelos infelizes atalhos que o meio – e o
canal – às vezes exige. Ao legendar a fala dos
meninos, por exemplo, o programa não buscou entendê-los,
mas apenas opor a eles uma norma de linguagem, ou mesmo
invalidar sua forma particular de expressão.
O resultado é uma espécie de sobre-outro,
uma alteridade inflacionada – um lugar a ser desconstruído
ao invés de uma experiência a ser partilhada.
A partir do final dos anos 90, quando Falcão
(Meninos do Tráfico) começava a ser
feito, o foco na marginalidade retornava ao audiovisual
brasileiro, para mais tarde desaguar em mega-sucessos
como Cidade de Deus e Carandiru. Da estética-ONG
à recriação de um repertório
de gênero, tanto as antigas como as novas visões
precisaram contar com a figura de um mediador, alguém
para adaptar o espectador de classe-média ao
universo desse "outro" marginalizado e, não
raro, temido. Criou-se uma esfera intermediária
entre a fabulação unidirecional ("eles"
são o que eu vejo, ou quero ver, à distância)
e a relação concreta de alteridade (a
obra se faz por "nós" em meio a "eles",
no encontro de dois campos de força). Embora
estabelecendo seus filtros particulares, os filmes e,
logo depois, as séries televisivas em questão
foram prestando testemunho a uma certa alteridade. Mesmo
Cidade de Deus, que na falta de uma dialética
de classes põe em jogo uma luta entre forças
absolutas (como o Bem e o Mal), estimula uma relação
de campo-contracampo entre a cidade e seu pesadelo,
o mito de origem e a história recente, o antes
e o depois, o "eles" e o "nós".
Em O Prisioneiro da Grade de Ferro, a relação
com o outro se adensa e cresce conceitualmente: um dispositivo
toma o lugar do mediador, e antes do ineditismo das
imagens ocorre o ineditismo do olhar: as imagens mais
pregnantes do filme são feitas por presidiários
que mostram o escoamento da madrugada de dentro da cela
(o mergulho ao lugar e ao olhar do outro é finalmente
efetivo).
Com Falcão (Meninos do Tráfico),
vemos um novo tipo de negociação da alteridade.
MV Bill não é quem faz a mediação,
suas participações são mais para
explicar as "boas intenções"
do documentário; ele funciona muito mais como
metatexto do que como guia de um "passeio"
ao lado obscuro do universo do tráfico. A mediação,
em "Falcão", cabe a um domínio
mais profundo e, uma vez assumido, difícil de
revogar: é a mediação feita pela
linguagem em si, pelo sistema cognitivo compartilhado
por quem tem família, educação,
emprego lícito, em suma, tudo aquilo que os telespectadores
do Fantástico possuem em comum e os torna parte
de uma sociedade. O mediador não aparece na tela,
pois ele é o próprio dispositivo, a própria
economia da linguagem, em última instância
a própria sociedade que produz e consome aquele
documentário. Ao personagem-mediador, que ocupa
uma função dentro da narrativa, sucede
a sociedade-mediadora, cuja função e cujo
lugar ultrapassam o universo retratado, estando ao mesmo
tempo abaixo e acima dele, e ainda assim não
o tocando. De certa forma, entramos no terreno da mediação
corporativa: basta levarmos em conta que cabia à
própria Rede Globo, ali, com todos os valores
que representa, suturar a "família brasileira"
ao documentário.
Se as falas eram legendadas para evitar um excesso de
desfamiliaridade por parte do público, um outro
estranhamento se produzia, bem mais sinistro, bem mais
assustador, pelos rostos borrados e com os olhos cobertos.
Pode ser uma trava bem séria: o corpo se torna
visível – desde quando? a Antigüidade? –
em função de sua ocupação.
Dito de outro modo, o corpo se define por seu trabalho,
por aquilo que o faz tomar parte do comum, ganhando
visibilidade em função do tempo e do espaço
em que essa atividade se exerce. Mas e se essa atividade
é o tráfico? E se ela se exerce num local,
como disse MV Bill no programa do Faustão, em
que o único "braço" institucional
conhecido é a polícia, mais especificamente
sob a forma do combate e da repressão? Resta
um corpo tão clandestino quanto sua atividade?
Uma figura a ser embaçada e confundida nas trevas?
Como já se sabe, o documentário demorou
seis anos para ser finalizado e nesse ínterim
morreram 16 dos 17 meninos entrevistados. Mas toda vez
que alguém relembra essa equação
que só faz subtrair vem à mente uma última
pergunta, de longe a mais cruel: que diferença
faria se o programa tivesse ido ao ar seis anos antes,
se as faces apagadas já premeditariam as mortes?.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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