O MEDO DA TV DIANTE DA IMAGEM
Sobre Falcão (Meninos do Tráfico), exibido dia 19 de março de 2006 no Fantástico

Num domingo, o Fantástico exibe a edição para TV do documentário Falcão (Meninos do Tráfico). Uma semana depois, no Domingão do Faustão, o único dos meninos do documentário que ainda está vivo, o Fortalece, que sonha em ser palhaço de circo, é colocado numa roda formada por sociólogo, antropólogo, policial, juiz, MV Bill, Faustão, Beto Carrero... O circo rapidamente se armou em torno do palhaço Fortalece. Entre um e outro programa, o assunto correndo de boca a boca, de redação a redação. Foi impressionante a forma como o evento e o comentário sobre ele se deram quase que concomitantemente. A junção entre texto e imagem, ou a dissolução desta naquele, nunca foi tão eficiente: não apenas havia legendas e cartelas durante todo o documentário como também ao final do seu último bloco, no Fantástico, Glória Maria já anunciava que alguns formadores de opinião, chocados que estavam, dariam suas declarações após os comerciais. Uma versão do documentário para cinema, disseram-me, deve entrar em cartaz algum dia. Aguardo por essa versão, para saber se Falcão (Meninos do Tráfico) possui alguma imagem afinal, alguma coisa para se ver e se somar ao texto que pudemos ler na televisão no Fantástico do dia 19 de março de 2006.

Minto: houve sim umas cinco ou seis imagens, que brigavam por espaço entre as manchas que faziam pano de fundo para as legendas. Lembro da imagem do menino que se embrenhava pela escuridão de seu esconderijo, com uma vela na mão e enquadrado de costas. E daquela de um outro que, com uma camisa tapando o rosto, preparava trouxinhas de maconha e falava que a vida voltada ao tráfico era insensata. E lembro, é claro, do único personagem de rosto desnudo, o "regenerado", o ex-bandido, que vende bala no sinal deslizando sobre uma cadeira de rodas (de tão repulsiva, prefiro afastar a hipótese dele aparecer já no final do programa para reconfortar os telespectadores com uma fábula de regeneração, a história de um marginal tornado inofensivo à sociedade, ainda que ao preço de suas pernas – e se sua inclusão no documentário cumpre esse fim mesmo que a intenção tenha sido outra, mais repulsivo ainda, pois é algo que terá escapado ao domínio da articulação e se "naturalizado" no pensamento).

Seguindo uma estrutura comum nos documentários calcados em depoimentos, Falcão (Meninos do Tráfico) consiste em blocos temáticos, introduzidos por cartelas, em que a edição agencia as falas dos entrevistados no sentido de localizar pontos em comum nas declarações e justapô-los. É assim que o documentário sai da desordem empírica dos acontecimentos (saída esta que, no limite, representa o risco de se perder a imediatidade da experiência registrada) e atinge um discurso – no caso, um discurso sobre os adolescentes que trabalham no tráfico de drogas. Os "falcões" são aqueles que, munidos de rádio e fuzil, passam a noite em claro vigiando a entrada da "boca", cuidando para que nenhuma invasão inimiga pegue os traficantes de surpresa. Essa atitude de espera, a partir de um ponto de vista estratégico, remete à posição que um cinegrafista pode assumir ao tentar fabricar uma imagem. Triste ironia: os meninos do tráfico passaram o programa inteiro à espera de uma imagem que não vinha. E os telespectadores (ao menos eu) à espera de "pessoas para ver", ao invés de apenas "signos para ler". Pois entre um e outro borrão, um e outro rosto apagado, pouco restava além de um discurso a reforçar a má notícia, aquela que todos conhecem mas preferem manter afastada ao máximo.

A despeito de todas as possíveis razões, de ordem até mesmo jurídica e prática, para aqueles rostos estarem apagados, eu não conseguia me livrar da assustadora idéia de que nossa curiosidade com esse "outro", nosso desejo quase obsceno de conhecer seu universo, estivesse agora se furtando à necessidade de vê-lo. Ele passa a ser a metáfora que tantas vezes lhe atribuíram: o fantasma, o espectro assombroso. Sua esfera se confirma de vez como aquela da invisibilidade, da não-imagem. Não faria a menor diferença se no lugar das silhuetas desfocadas dos meninos estivessem retângulos em que se lesse: "aqui, mais um menino do tráfico". E se as falas deles estivessem todas consubstanciadas e editadas numa só frase que resumisse tudo que o programa esperava provocar nos seus espectadores. Adicione a isso o fato de que quase todos morreram e só um sobreviveu e pronto: aos problemas não-solucionáveis, a borracha serve mais que o lápis. É de tremer de pavor.

Vinte – ou quem sabe trinta – anos atrás, Godard e Serge Daney já diziam que a TV "não passa imagens". Após a Guerra do Golfo, quando a TV provou que sua função não é deixar ver, mas fazer ler, a afirmação ganhou um relevo incontestável. Foi então que Daney, "para facilitar sua vida", fez a distinção entre imagem e visual. Enquanto o visual nos impede de ver (porque ele prefere que decodifiquemos, decifremos, "leiamos"), a imagem nos incita a sondar suas ausências, suas faltas – assim como seus excessos e sobras. No visual nada falta, ele é fechado sobre si mesmo: a verificação óptica de um procedimento técnico. A imagem, diferentemente, sempre pede um contracampo e ativa um fora-de-campo. A televisão, nessa lógica, pertenceria ao visual, e não à imagem.

Para haver imagem, é preciso uma certa alteridade, é preciso fazer reconhecer os traços de um "outro", em última análise é preciso que haja algo para montar contracampo conosco. O Falcão (Meninos do Tráfico) mostrado naquele Fantástico, contudo, a exemplo de tantos produtos do audiovisual brasileiro recente, anulava a experiência com o outro para fazer valer o discurso dentro dos signos que conseguimos "ler". Em vez de um universo no qual se perder e se abismar através de uma experiência necessariamente não-familiarizável à primeira vista, elaborou-se um conjunto de enunciados que, mesmo rejeitando pontuações conclusivas, já vinham com seus significados de predileção insinuados. Traçou-se um arco que contornou a experiência, um drible dado pelo visual na imagem – como os túneis que alguns pensam em construir aqui no Rio de Janeiro, para que os carros possam ir de um a outro ponto da zona sul sem precisar passar por favelas. As operações de decupagem e de adição de texto durante os depoimentos – as falas tinham em geral bastante força, sem dúvida, mas eram reduzidas a uma transmissão radiofônica – funcionavam mais ou menos assim, amenizando os estranhamentos, às vezes os afastando literalmente, pelas legendas que desfilavam na tela o tempo todo e que traduziam as gírias (ainda) desconhecidas pela classe-média.

No Fantástico e no Faustão, todos insistiram na validade do documentário para entender melhor o que se passa com "eles", sob o argumento de que há uma enorme distância entre a vida deles e a nossa. E é aí que entra a contradição: a distância nunca é encarada como distância, mas posta de lado. Volta-se à estaca zero, pois o entendimento deveria se produzir após o esforço (necessário, incontornável) de percorrer essa distância. Falcão (Meninos do Tráfico) ainda não a percorreu, talvez bloqueado, nessa versão para a TV, pelos infelizes atalhos que o meio – e o canal – às vezes exige. Ao legendar a fala dos meninos, por exemplo, o programa não buscou entendê-los, mas apenas opor a eles uma norma de linguagem, ou mesmo invalidar sua forma particular de expressão. O resultado é uma espécie de sobre-outro, uma alteridade inflacionada – um lugar a ser desconstruído ao invés de uma experiência a ser partilhada.

A partir do final dos anos 90, quando Falcão (Meninos do Tráfico) começava a ser feito, o foco na marginalidade retornava ao audiovisual brasileiro, para mais tarde desaguar em mega-sucessos como Cidade de Deus e Carandiru. Da estética-ONG à recriação de um repertório de gênero, tanto as antigas como as novas visões precisaram contar com a figura de um mediador, alguém para adaptar o espectador de classe-média ao universo desse "outro" marginalizado e, não raro, temido. Criou-se uma esfera intermediária entre a fabulação unidirecional ("eles" são o que eu vejo, ou quero ver, à distância) e a relação concreta de alteridade (a obra se faz por "nós" em meio a "eles", no encontro de dois campos de força). Embora estabelecendo seus filtros particulares, os filmes e, logo depois, as séries televisivas em questão foram prestando testemunho a uma certa alteridade. Mesmo Cidade de Deus, que na falta de uma dialética de classes põe em jogo uma luta entre forças absolutas (como o Bem e o Mal), estimula uma relação de campo-contracampo entre a cidade e seu pesadelo, o mito de origem e a história recente, o antes e o depois, o "eles" e o "nós". Em O Prisioneiro da Grade de Ferro, a relação com o outro se adensa e cresce conceitualmente: um dispositivo toma o lugar do mediador, e antes do ineditismo das imagens ocorre o ineditismo do olhar: as imagens mais pregnantes do filme são feitas por presidiários que mostram o escoamento da madrugada de dentro da cela (o mergulho ao lugar e ao olhar do outro é finalmente efetivo).

Com Falcão (Meninos do Tráfico), vemos um novo tipo de negociação da alteridade. MV Bill não é quem faz a mediação, suas participações são mais para explicar as "boas intenções" do documentário; ele funciona muito mais como metatexto do que como guia de um "passeio" ao lado obscuro do universo do tráfico. A mediação, em "Falcão", cabe a um domínio mais profundo e, uma vez assumido, difícil de revogar: é a mediação feita pela linguagem em si, pelo sistema cognitivo compartilhado por quem tem família, educação, emprego lícito, em suma, tudo aquilo que os telespectadores do Fantástico possuem em comum e os torna parte de uma sociedade. O mediador não aparece na tela, pois ele é o próprio dispositivo, a própria economia da linguagem, em última instância a própria sociedade que produz e consome aquele documentário. Ao personagem-mediador, que ocupa uma função dentro da narrativa, sucede a sociedade-mediadora, cuja função e cujo lugar ultrapassam o universo retratado, estando ao mesmo tempo abaixo e acima dele, e ainda assim não o tocando. De certa forma, entramos no terreno da mediação corporativa: basta levarmos em conta que cabia à própria Rede Globo, ali, com todos os valores que representa, suturar a "família brasileira" ao documentário.

Se as falas eram legendadas para evitar um excesso de desfamiliaridade por parte do público, um outro estranhamento se produzia, bem mais sinistro, bem mais assustador, pelos rostos borrados e com os olhos cobertos. Pode ser uma trava bem séria: o corpo se torna visível – desde quando? a Antigüidade? – em função de sua ocupação. Dito de outro modo, o corpo se define por seu trabalho, por aquilo que o faz tomar parte do comum, ganhando visibilidade em função do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce. Mas e se essa atividade é o tráfico? E se ela se exerce num local, como disse MV Bill no programa do Faustão, em que o único "braço" institucional conhecido é a polícia, mais especificamente sob a forma do combate e da repressão? Resta um corpo tão clandestino quanto sua atividade? Uma figura a ser embaçada e confundida nas trevas?

Como já se sabe, o documentário demorou seis anos para ser finalizado e nesse ínterim morreram 16 dos 17 meninos entrevistados. Mas toda vez que alguém relembra essa equação que só faz subtrair vem à mente uma última pergunta, de longe a mais cruel: que diferença faria se o programa tivesse ido ao ar seis anos antes, se as faces apagadas já premeditariam as mortes?.


Luiz Carlos Oliveira Jr.