SER OU NÃO SER
(sobre o reality show Made)

“I wanna be made!”, diz uma menina na abertura do reality show da MTV em que, após um prazo determinado, uma pessoa deve estar apta a se entregar de corpo e alma a uma atividade absolutamente distante de seus hábitos anteriores e de seus gostos pessoais. São atividades que envolvem, na verdade, todo um estilo de vida: uma adolescente tímida e magricela, por exemplo, tem algumas poucas semanas para se tornar uma cheer leader. Essa adolescente se chama Mary, e ela vive as primeiras etapas de treinamento sob o signo do fracasso antecipado. Frágil demais, desengonçada, introvertida, em nada autoconfiante, Mary acha que não conseguirá. Para piorar, sente falta dos amigos que deixou em sua antiga cidade, e não consegue se adaptar à nova escola. Os exercícios físicos, as coreografias, a pressão do treinador e do tempo do programa são verdadeiras torturas para Mary. Ela chora, cai no chão ao tentar dar uma estrela, seu corpo parece que vai quebrar. Mas ela precisa a todo custo encarnar essa personagem diferente de tudo que já vivenciou, assimilar essa nova identidade, nem que seja sob o risco de apagar a identidade anterior – como um novo programa de computador que baixamos e clicamos no “sim” para substituí-lo à versão antiga.

Com a internet, a idéia de assumir identidades falsas, de fingir ser o que não é ou de se esconder atrás de personas virtuais (ou simplesmente interpretar uma multiplicidade de papéis), toda essa idéia de experimentar com a personalidade ganha uma versão facilitada, cômoda. Made, de certa forma, apresenta uma resposta a essa comodidade, ao mostrar o esforço que incorporar uma personagem requer, a luta diária que, na prática, implicaria essa atividade tão fácil e indolor na internet, onde basta mudar o nickname e construir para si novas e mais novas fórmulas, como num laboratório de identidades. Em Made, o esforço se impõe como físico, a transformação passa pela carne. E por mais que seu corpo continue dando indícios de que não pertence ao lugar em que se encontra naquele momento, Mary insiste, sempre acompanhada dos faniquitos de seu treinador (um personagem pronto, que parece decalcado das comédias que debocham do típico ambiente das high schools). É a própria Mary quem narra o programa em off, não se poupando, ou aos demais personagens, de qualquer tipo de comentário irônico. O “eu” do “I wanna be made” se inscreve verdadeiramente no show: se há uma passividade explícita na estrutura do programa, uma vez que a protagonista é entregue aos cuidados de profissionais que tratarão de moldá-la ao padrão em jogo, essa entrega por outro lado é sublinhada no seu aspecto voluntário. Ela quer ser moldada.

Durante muito tempo, a televisão não sabia o que fazer dos corpos que não pareciam talhados especialmente para ela. Ocorria um recuo por parte da TV, que ou desistia desses corpos antitelevisivos ou tentava tirar algum proveito da defasagem entre o que eles eram e o que precisavam ser para estar lá. Em tese, os reality shows invertem a lógica da construção de personagens na televisão, partindo da tipologia somente para avançar em direção ao personagem individuado, complexo, indeciso, conflituoso – aquele para o qual a TV representava um espaço demasiadamente vasto e impreciso. Os corpos sem especificidade nem sempre agem de acordo com o que se espera deles. A televisão, então, deixa rolar, procura ver aonde vai dar esse inesperado, tenta aprender algo sobre o seu futuro a partir daquilo que, paradoxalmente, não parecia ter nada a ver com ela. Sempre obcecada pela noção de aldeia global, que termina por limitá-la à procura do eternamente reconhecível e familiarizável, a TV acha um jeito de fazer também o reality show, e especialmente ele, apanhar as diferentes representações de uma sociedade cuja pluralidade ameaça a própria máquina televisiva e agrupá-las sob um único corpo social. O cotidiano é então restituído através não de um discurso reciclado, mas de um dispositivo que faz todos habitarem o mesmo endereço, a mesma casa. Até que se formem novos estereótipos, adaptados ao modo particular de funcionamento desse ou daquele programa.

A sexta edição do Big Brother Brasil, noves fora sua apatia generalizada, trazia de interessante as marcas invisíveis – porém intensamente perceptíveis – deixadas pelas edições anteriores do programa. Na casa-palimpsesto, os novos participantes eram como tentativas de reload de participantes antigos; o casting seguiu mais ou menos um padrão interno ao programa, como se houvesse um software prescrevendo situações e comportamentos desejados – a produção se entregou de vez a uma formatação do elenco. O primeiro dia do BBB6, nesse sentido, foi seu melhor momento, com aquela festa que começou com alguns dos mais famosos participantes de edições anteriores aparecendo vestidos de forma fantasmagórica no quintal da casa. Eles metaforizavam o que de fato representavam para os membros do BBB6: modelos para suas ações, exemplos a seguir ou a rejeitar, presenças fantasmáticas a serem somadas ao cotidiano da casa.

É também com o reality show que a TV pode sair da primazia do close-up e chegar ao plano de conjunto: a lógica do programa é provocar e captar o convívio, mostrar as pessoas juntas num mesmo lugar. Com mais espaço ao seu redor, liberto da armadura do close, o personagem pode crescer para os lados e extravasar a figura que lhe havia sido encomendada mesmo que por um roteiro aberto e incompleto. O personagem se cria após a negociação entre o que a produção gostaria que o respectivo participante fizesse e o que ele quer ou pode realmente fazer. Made, no entanto, volta a fita de propósito, para fazer o personagem retroceder, para fazê-lo caminhar de volta ao tipo. O espaço ao redor dele se retrai, o formato é tornado constrito; retorna a idéia de centro, expressa desta vez na obstinação do personagem, no seu foco. De menina introvertida e desengonçada a cheer leader, Mary se empenha em atingir o estereótipo. Ou ainda: em sair de um estereótipo loser (curiosamente heroificado no cinema independente americano dos anos 90) e retroceder ao estereótipo da garota popular (mais parodiada do que levada a sério após a década de 80).

Enquanto o cinema fundou uma mitologia própria, a forma de permanência encontrada pela TV esteve o tempo todo relacionada à abolição da distância entre o telespectador e a “realidade televisiva”. O episódio de Made protagonizado por Mary termina com ela dizendo para o pai que suas novas amigas, as cheer leaders da escola – sim, porque ela atinge sua meta – acham ele chato. E é da resposta brincalhona do pai que sai o veredicto do programa: “Que droga, eu sempre quis que as cheer leaders gostassem de mim”. Ao buscar novas formas e expandir suas fronteiras ficcionais, a televisão pode acabar reencontrando as mais antigas preferências de seu público. À crise de representabilidade, assim como à dialética entre o arquétipo social e a defesa das identidades “locais”, a TV oferece a restauração de um imaginário coletivo.


Luiz Carlos Oliveira Jr.