Tristes
sonhadores
anjos do fracasso:
Nos encontraremos em Hollywood,
o lugar
onde servem lagostas frescas
e diamantes.
Phil De Lucca (Dez sonetos que não são
sonetos)
Antes de tudo, o que chama a atenção em
American Idol é que ele parece um sincretismo
bizarro, mas muito bem planejado, de fórmulas
antigas com tendências mais ou menos recentes
da televisão. É uma mistura de show do
gongo com show de calouros, potencializada pela febre
do reality-show. O programa é dividido em duas
fases, bastante distintas uma da outra. Tudo começa
com um tour pelas principais cidades dos Estados
Unidos, numa espécie de triagem selvagem e impiedosa,
durante a qual centenas de aspirantes a ídolos
da música pop se apresentam diante de três
jurados. Alguns poucos são selecionados para
participar de uma nova triagem, em Hollywood, onde então
terá início a segunda fase do concurso.
No final, os últimos sobreviventes se apresentam
semanalmente no palco do programa; apesar de continuarem
sob o julgamento dos jurados, é agora o público
que decide quem merece ficar e quem merece sair.
Das duas fases, a primeira é, de longe, a mais
interessante, sendo provavelmente a única que
se pode assistir sem ter uma mínima vontade de
zapear. Nela, temos a recuperação das
já referidas fórmulas do passado, outrora
muito bem-sucedidas, mas até então desgastadas.
Verdade que atrações como o show do gongo
ou show de calouros permanecem vivas nos programas de
auditórios dominicais, mas nenhum programa até
hoje conseguiu reciclá-los com tanta criatividade
e invenção. O achado dos produtores de
American Idol foi captar o potencial dramático
e trágico, e não apenas cômico ou
circense, dessas fórmulas. Os shows de calouros
foram pioneiros, descobrindo o prazer do espectador
televisivo no julgamento de desconhecidos não
necessariamente talentosos; da mesma forma, o inventor
do show do gongo teve mesmo um golpe de gênio
quando compreendeu que o público adora ver gente
se humilhando; os produtores de American Idol,
por sua vez, souberam juntar com engenho as duas descobertas,
injetando dramaturgia. Seu mérito não
foi apenas modernizar fórmulas antigas, mas sim
de tirar o máximo do seu proveito, levá-las
ao paroxismo.
Tudo começa, portanto, com uma primeira e enorme
triagem. Como em toda triagem inicial, aparece o grosso
do grosso dos concorrentes, a primeira grande camada.
É aí que entra a parte "gongo"
do programa - um espetáculo
que se aproxima muito mais do cômico, ou do tragi-cômico,
e que é estrelado, em sua maioria, pelos freaks,
as "aberrações" vocais e humanas.
São pobres-diabos que não se encaixam
nos padrões da Indústria, e que provavelmente
nunca se encaixarão, embora estejam convictos
do contrário. Alguns estão fora do peso,
vestem-se fora da moda, não sabem combinar a
camisa com a calça, são desengonçados,
desafinados, não acertam uma nota, dançam
sem graciosidade, têm dentes ruins, são
esteticamente desagradáveis... Quanto mais eles
ficam longe das exigências da Indústria,
quanto maior é seu contraste, quanto maior a
sua "aberração" (e quanto mais
eles parecem inconscientes dela), mais eles se tornam
interessantes como personagens.1 Os
mais engraçados são também os mais
trágicos; de tanto fantasiar, acreditam que a
fama é um sonho reservado, como se sua vitória
já estivesse escrita pelo destino, e lhes coubesse
por direito. Apresentam-se convictos de que nasceram
para ser um "American Idol", quando tudo na
pessoa deles - voz, gingado,
postura, aparência -
diz o contrário. Este conflito é dos mais
interessantes; ele reserva cenas antológicas,
como aquelas em que os eliminados protestam contra sua
eliminação, e afirmam, iluminados por
uma certeza divina: "Eu vou ser o próximo
‘American Idol’. Lá fora, eles me adoram. Eles
me amam lá fora. Vocês jurados estão
errados. Eu posso provar". Tais personagens são
cativantes porque são patéticos. Pensam
que vão conseguir o respeito da Indústria
quando na verdade só conseguem o desprezo. Mais
ou menos como um personagem dos irmãos Farrelly,
que acredita estar conquistando a mocinha, mas que apenas
queima seu filme, com a diferença de que aqui
a mocinha é os jurados. Aliás, o grande
clímax desta fase acontece justamente quando
os próprios candidatos percebem, ainda em meio
à apresentação, que não
estão conseguindo agradar. Eles ficam ainda mais
nervosos e aí começam a errar os passos
de dança, trocar a letra das músicas,
quase choram... No mesmo instante, a câmera pega
a expressão dos jurados, que observam os candidatos
de forma crítica, com ar aborrecido ou debochado.
Não é preciso dizer que, quanto maior
o constrangimento, mais o programa cresce dramaticamente.
Mas quem são, afinal, esses jurados? Assim como
em todo bom show de calouros, os jurados estão
perfeitamente caracterizados: Simon é o taciturno
cínico e exigente, ligeiramente afetado -
tem sotaque inglês de vilão e uma má
vontade que se confunde com realismo; Paula Abdul, sempre
cheia de otimismo e bons sentimentos, espécie
de Professor Pangloss com decote, faz o papel da boazinha,
que quando não aprova o aspirante, ao menos o
consola ("Sinto muito, eu sei que é seu
sonho, mas... não"); e Randy, negrão
boa-praça, descolado, faz o papel intermediário,
ou seja, é o simpático com senso-crítico.
Até aí, admita-se, nenhuma novidade, pelo
contrário: essa é a formação
clássica de um show de calouros. A diferença
fica na relação que o programa estabelece
entre concorrentes e jurados, explorando a constante
tensão entre ambos. Em cada apresentação,
há uma clara expectativa de confronto -
e o confronto é o conflito básico da dramaturgia.
Uma luta que não é necessariamente entre
o Bem e o Mal (embora o público esteja autorizado
a buscar heróis e vilões), mas uma luta
por reconhecimento. A todo momento, o locutor lembra
de que esta é uma porta de acesso, um bonde oportuno,
que alguns poucos vencedores poderão tomar. "Vamos
saber quem ganha sua passagem para Hollywood",
insiste o locutor, como se Hollywood fosse um paraíso
de glória e admiração -
a terra prometida dos sonhadores.
Logo se vê que há muita mais em jogo em
American Idol do que em qualquer outro programa
de auditório. Aqui, agradar um jurado não
significa ganhar cem reais de Sílvio Santos,
mas conquistar seu lugar num grupo exclusivo, uma espécie
de Panteão da indústria pop. Como se sabe,
os membros deste grupo costumam ser adorados, celebrados,
cultuados - uma vez no
Panteão, perde-se a condição de
mortal para transformar-se num deus. Mas há uma
tênue barreira entre a vitória e o fracasso,
a celebridade e o anonimato, o deus e o mortal, e esta
barreira, contida num simples voto, é o maior
drama de American Idol. Para ultrapassá-la,
os concorrentes precisam passar por cima dos jurados
e provar, ao país inteiro, que ele pode, sim,
ser o próximo "American Idol"... Depois
de cada apresentação, chega a hora da
opinião dos jurados; estes votam sim ou não,
em voz alta, um de cada vez. Cada voto é um desafio,
um obstáculo. Neste sentido, o programa é
sábio ao colocar a opinião de Simon por
último, já que a aprovação
do "inglês malvado" tem que ser arduamente
conquistada. Simon é a última barreira.
Vencê-lo, significa a consagração.
O final feliz. Pode-se dizer, sem nenhum exagero, que
American Idol (ao menos na sua fase inicial)
é uma luta épica contra os jurados. Simplificando:
é uma luta contra Simon.2
Se o confronto funciona maravilhosamente bem é
porque todos os três jurados cumprem seu papel
com maestria. Eles sabem jogar com a tensão,
sabem criar suspense, fazendo um breve silêncio
antes da análise do candidato. Nesses momentos,
a câmera fecha no participante, foca seu desespero,
capta sua expectativa. Percebe-se, em sua fisionomia,
uma infinidade de sonhos perdidos, esperanças,
frustrações... Um "sim" pode
mudar sua vida; um "não" pode arrasá-lo.
Os diretores têm consciência disso, e gravam
seu drama sem sentimentalismo, com uma linguagem seca
e distanciada, de grande economia visual. Eles dão
ao programa uma estrutura minimalista, ressaltada pela
edição ágil e dinâmica.
Passada a primeira fase, porém, um outro conceito
começa a ser construído, trocando subitamente
a estratégia do programa. Uma estética
diferente se apresenta ao telespectador, inclusive no
que diz respeito a direção e edição.
Nessa segunda fase, já com os freaks definitivamente
descartados, forma-se uma atmosfera de seriedade e comprometimento.
Uma certa áurea, um glamour invade a cena, destacando
o lado sério da Indústria -
essa gloriosa fábrica de fantasia. Além
do mais, um clima de competição, tão
caro ao reality-show, reforça o tom sério
que revestiu o programa. Finalmente temos um show, com
um auditório e uma platéia respeitosa.
Se na primeira fase o Panteão era só uma
imagem abstrata, o sonho de um espaço mítico
e exclusivo (até então a edição
limitava-se a passar apenas flashes de Hollywood, mostrando-a
como uma promessa longínqua, mas acessível),
nessa segunda ele vira o próprio cenário.
O pequeno estúdio da primeira fase se transforma
num teatro dos mais suntuosos, com um palco imponente,
e tudo ao redor parece mais luminoso e bonito. A direção
rompe com o estilo cerebral e entra radicalmente no
domínio dos sentidos. De observadores críticos,
nos transformamos em telespectadores impressionáveis,
seduzidos por movimentos de câmera espetaculares,
por iluminações que agridem os olhos.
A estrutura minimalista dá lugar a um show grandiloqüente,
de pura ostentação visual: luzes, brilho,
purpurina, efeitos de grua... Tudo para exaltar o grande
espetáculo mágico, o poder de fogo da
indústria. Mais ou menos como se avisassem aos
telespectadores: "Saímos da fase dos losers.
Entramos no mundo maravilhoso da Indústria".
A paranóia de grandeza, que antes era apenas
evocada, um eco indistinto vindo de muito longe, começa
a perseguir o programa em todos os aspectos: estúdio,
apresentação, edição...
Os concorrentes, também, como não poderia
deixar de ser, vão aos poucos se mimetizando
ao espaço. O objetivo deles é justamente
ficar à altura deste fantástico cenário;
eles são produzidos, dia após dia, episódio
após episódio, e sofrem um intenso processo
de higienização. Graças à
assistência de um grupo superior (invisível
aos olhos do público), que lhes ensinam a vestir-se,
portar-se, maquiar-se, pentear-se, eles vão aos
poucos se sentindo mais confiantes, cada vez mais integrados
a este incrível mundo artificial. Os concorrentes
estão dentro do Panteão, chegaram lá,
mas cabe agora decidir quais ficarão para sempre
e quais irão sair. Para a maioria, a permanência
no Panteão é apenas temporária;
eles não foram totalmente transformados em ídolos,
são ainda semi-ídolos (semi-deuses do
Panteão), e essa segunda fase inteira se dedicará
a registrar suas possíveis metamorfoses3,
como um "My Fair Lady" pop. Daqui por diante,
o drama se concentra na necessária agressão
que cada participante imprime à sua personalidade
original, enquanto se esforça para moldá-la,
em tempo recorde, à imagem do Panteão.
Com a mudança do foco dramático, o papel
dos jurados perde relevância, tornando-se quase
secundário. Simon parece um pouco ofuscado nesse
novo contexto; Randy não faz nada de mais; e
a indulgente Paula (cujos decotes costumam ficar cada
vez mais generosos nessa fase do show) limita-se aos
seus bordões ("you`re an amazing performer",
"great artist"...). O maior interesse envolvendo
os jurados acaba sendo as trocas de farpas entre Simon
e Ryan, o apresentador do programa (ótimo apresentador,
por sinal, um exemplo a ser seguido por seus pares:
eficiente, espirituoso, e canastrão na medida
certa). Ficou claro que os novos protagonistas são
os concorrentes, assim como o novo tema principal é
o aprendizado deles. Não podemos nos esquecer
que, embora a opinião dos jurados ainda tenha
certa importância, é doravante o público
que vota, e daí a necessidade de se criar uma
relação emocional entre telespectador
e concorrentes. Desde já, nos afeiçoamos
pelos candidatos, e começamos a entender um pouco
a sua história (Fulana pegou avião pela
primeira vez; Fulano ama muito seus pais; ou ainda:
Cicrana tem belas pernas...). Com o sentimentalismo
próprio do reality-show, o programa nos coloca
a par de detalhes da vida de cada um, compartilhando
conosco seus resquícios de humanidade; dessa
vez, a construção do personagem partirá
destes detalhes, estabelecendo o papel que ele irá
exercer dentro do sagrado Panteão. Só
com essas informações poderemos torcer
por eles, chorar por eles, aplaudi-los quando se classificam,
lamentá-los quando são eliminados...
E, assim que os candidatos acabarem de cantar uma de
suas canções cafonérrimas, Paula
Abdul ainda dirá: "Tenho certeza que vocês
estão presentes no coração de cada
um na América..." Nesses momentos, é
preciso ser franco: não há decote que
salve.
Bolívar Torres
1.
Não se pode rejeitar a idéia, entretanto,
de que a presença de certos esquisitões
ultrapassa a simples tentativa de chamar a atenção,
ou de conquistar a fama, sendo, em alguns casos, talvez,
uma forma de protesto, uma paródia da Industria.
É possível que muitos dos que se apresentam
fantasiados de samambaia ou de semáforo estejam
expressando, intencionalmente ou não, uma séria
crítica aos padrões estereotipados que
a mídia impõe. Vide o exemplo do famoso
"coreano do American Idol", que até
hoje, depois de milhares de cópias vendidas,
permanece um caso ambíguo, que conquistou a Indústria
parodiando a Indústria.
2. Em 99,9% dos filmes, o vilão
principal, aquele que comanda os vilões secundários,
é sempre o último, entre todos malvados,
a morrer - normalmente
após um embate dramático contra o mocinho.
A batalha entre os dois é a apoteose, o grande
clímax final. É comum que o mocinho tenha
algo pessoal contra o grande vilão, impondo a
si próprio o dever de derrotá-lo, como
num acerto de contas. Da mesma forma, grande parte dos
candidatos aprovados declara, à medida que vai
superando as fases, que sua maior motivação
era provar a Simon, mais do que a qualquer outro jurado,
de que poderia ser um American Idol.
3. Nesta temporada, um garoto baixinho
e de óculos, muito distante do atual padrão
de beleza (apelidado inclusive de Chicken Little, devido
a sua semelhança física com o personagem),
transformou-se, graças as suas apresentações,
em um inesperado símbolo sexual. Em casos como
esse, American Idol assume a função
de um generoso sistema de cotas, realizando, como bem
observou Luis Carlos Oliveira Jr, a inclusão
social dos sexualmente desfavorecidos. Antes de sua
eliminação, Chicken Little afirmou estar
encantado com o aumento de seu "capital-sexual",
e que não via a hora de pô-lo em prática
no seu colégio. Esperemos, de todo o coração,
que ele obtenha muito sucesso com suas coleguinhas,
aproveitando o máximo que puder seus quinze minutos
de beleza.
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