Ingmar Bergman é conhecido pela
abordagem psicológica existente em seus filmes. A Trilogia
do Silêncio não é diferente. O conjunto de filmes possui
uma densidade considerável e um aprofundamento nas questões
existenciais. Aqui há a predominância da simplicidade.
Vemos um conjunto de filmes desnudos. Desnudos de qualquer
metáfora ou outras figuras de linguagem. São filmes
diretos. As questões estão realisticamente presentes
e não carecem de interpretações. Se em outros momentos
Bergman utilizou-se de elementos ou ferramentas narrativas
como a memória (Morangos Silvestres), alegoria
(O Olho do Diabo, O Sétimo Selo) ou trabalho
estético (Gritos e Sussurros, com seu específico
trabalho de cor), nesta trilogia predomina a simplicidade
e o confrontamento direto.
Os conflitos internos (paradoxais) funcionam no conjunto
de filmes da mesma forma. Com a premissa da simplicidade
da trama e da opção estética, ganham importância os
conflitos existentes no interior do filme. Porém, onde
estão eles? Que conflitos são esses? Como resolver os
problemas? E partindo de tais questionamentos é que
chegamos no cerne da obra do diretor sueco, que mais
do que apresentar respostas, está interessado no conhecimento
da construção do ser, suas relações, divergências e
especificidades. A problemática abordada na obra de
Bergman de uma maneira geral, bem como na trama da citada
trilogia, não apresenta, em última instância, respostas.
Mais do que o final, a validade do discurso está na
continuidade, e talvez por isso, nos três filmes, o
final chega inesperado, meio sem sentido, sem espaço,
sem créditos. De uma imagem sai um fade-out e
chegamos no menu do DVD. O filme acabou? Não, pois as
questões continuarão martelando o espectador que, bem
como os personagens de cada um dos filmes, continuará
a procura de explicações. Na trilogia de Bergman, no
entanto, as explicações para entendimento da trama e
procura de lógica são quase inválidas, uma vez que há
a predominância de uma série de indagações, e nelas
estão concentrados os interesses primeiro.
Os três filmes desta trilogia do Silêncio apresentam
algumas variações entre si, e ainda que a temática seja
quase sempre repisada, a abordagem e a construção narrativa
são distintas, mantendo cada um dos filmes uma autonomia
que permite que sejam vistos em ordem inversa ou mesmo
em separado. Há uma “evolução” ou um caminho, que coincidentemente
ou não, está presente. A cada filme um número maior
de personagens vai sendo agregado à trama. Em Através
de um Espelho (filme que abre a trilogia) são apenas
quatro personagens, todos com ligações familiares –
pai, filhos, marido – e ali se concentram os conflitos.
Em Luz de Inverno, a barreira familiar é ultrapassada
e a trama estendida para um universo público, agora
composto por núcleos independentes, ligados pela igreja
do pequeno vilarejo. Já em O Silêncio (último
filme da série), ainda que os conflitos resumam-se na
relação das duas irmãs (e mais o filho), há outros papéis
relevantes, ou não, presentes. Seja no mordomo, que
interfere na ação, ou nos personagens que simplesmente
transitam pelas ruas que Esther (Ingrid Thulin) caminha,
está fixada uma intervenção comportamental a partir
da influência do meio social.
Mas esta tentativa de traçar uma linha de continuidade
nos três filmes não parece mais inteligente do que pensar
a relação que ambos mantêm. O que os liga, formando
então uma trilogia. O espectador conhecedor da obra
de Bergman de certo não imagina que, quando há referência
ao Silêncio, este seja dos personagens (a partir da
ausência de diálogos), pois tal atitude é relativamente
comum em sua obra. O silêncio aqui é justificado como
o silêncio de Deus, ou a sua não intervenção prática
nas aflições humanas existentes – daí a trilogia ser
conhecida também como Trilogia da Fé. Ainda que Bergman
posteriormente tenha recusado esta taxonomia e enquadramento,
afirmando que na época estava na moda fazer trilogias,
e por isso ele ligou os três filmes, não podemos descartar
uma certa unidade entre eles. E uma das questões trabalhadas
é justamente a interferência divina no comportamento
psicológico de cada uma das personagens. Porém, de que
forma cada uma funciona em cada personalidade?
Antes da questão espiritual, está presente o conflito
interno. Bergman trabalha numa linha que pende entre
o psicológico e o patológico. Esta linha tênue será
percorrida ao longo de toda trilogia. Todas as protagonistas
sofrem de alguma angústia, de incerteza ou de doenças.
Mas Bergman não investiga a questão clínica. O tratamento
médico é deixado de lado em função do tratamento espiritual.
Karin (Harriet Andersson), em Através de um Espelho
é afetada por uma doença degenerativa, para a qual não
há cura. Mas a opção do diretor é trabalhar nas conseqüências
psicológicas derivadas da doença. As situações se misturam,
pois ora encaramos e distanciamo-nos da personagem pensando
num distúrbio psiquiátrico, ora encaramos seus conflitos
espirituais, religiosos e existenciais, que aproxima-nos
a partir da identificação. Karin passa a ter a audição
aguçada em função da doença, mas não interessa o que
ela ouve, e sim o como ela ouve, e sobretudo o porquê
do que ela ouve. Se as visões espirituais atrás do armário
são vistas como um distúrbio psicológico, fomentado
pela ânsia de comunicação e de entrega da personagem,
seus constantes surtos bipolares, característicos de
certo tipo de esquizofrenia, aproximam-se mais da clínica.
E neste contexto é que são levantadas as questões que
tangem a comunicabilidade com Deus, que poderia intervir
na cura da doença, ou mesmo na redução da angústia da
personagem.
E se em Através de um Espelho a relação religiosa/
espiritual não é tão evidente, em Luz de Inverno
ela é o foco de tensão. É justamente o ambiente da igreja
que liga todas as personagens – pastor, amante, fiéis,
famílias. Os questionamentos da relação com Deus são
explícitos. O pastor Tomas Ericsson (Gunnar Björnstrand),
quando solicitado pelo fiel a acalmar suas aflições,
que estão levando-o ao suicídio, entra em conflito,
pois nem mesmo o próprio encontra as palavras exatas
para atender o fiel, e cumprir, por inteiro, seu ofício.
E se as palavras lhe faltam, não é por causa da febre
que o assola naquele momento (mais uma vez no trânsito
e na ligação do patológico com o psicológico), e sim
pela sua incerteza nas palavras divinas, sua insegurança
na confiança de Deus – que parece também o abandonar
neste instante.
Porém, a postura do pastor Tomas é no mínimo curiosa.
Fortemente abatido pelo suicídio do fiel, ele simplesmente
se dirige ao local, acompanha o transporte do corpo,
comunica a família – que recebe friamente a notícia
– e desloca-se para um outro vilarejo, em que será realizada
uma nova missa. Não há analogias a serem feitas. As
ações estão presentes e são a partir delas que surgirão
os questionamentos. Bergman opta por um tratamento direto,
em que surgem das situações e circunstâncias cotidianas,
as aflições humanas. Quando o ajudante do sacerdote
indaga sobre o sofrimento de Cristo, afirmando que o
deste não foi maior do que os nossos, no dia-a-dia,
esta parece ser uma reflexão do próprio cineasta, questionando
a não interferência divina, que aliviou o sofrimento
do Filho (não impedindo sua morte), mas não faz o mesmo
com os que o acompanham desde então. E é em tal momento
que se tem a maior proximidade com o questionamento
direto da fé, pois esta continua presente (ainda que
constantemente questionada e posta a prova).
Em O Silêncio, uma aproximação da loucura se
faz de maneira mais clara. Diferente dos dois primeiros
filmes, aqui se tem uma personagem absolutamente atormentada.
Uma vez mais Bergman se isenta da questão patológica,
e aqui opta por trabalhar com traumas de infância que
se refletem no comportamento de Esther, a irmã doente,
seguindo uma linha da pscinálise freudiana. Há uma aproximação
da “loucura” da personagem com seus entraves sexuais
na infância. Essa carga carregada desde então, atinge
seu ápice nos momentos de delírio, fomentados pelo ambiente
estranho do hotel em que estão hospedadas (num país
estrangeiro), pelo comportamento sexual da irmã (socialmente
transgressor) e seu afrontamento, ou mesmo pela presença
do garoto, seu sobrinho, que parece sempre lhe refrescar
a memória no que tange sua infância.
Diferentemente dos dois primeiros filmes, em que se
preza por um tratamento específico de cada uma das personagens
sem o estabelecimento de relação de causas ou conseqüências,
em que os conflitos são calcados na dúvida, na incerteza
e na insegurança – inclusive quando relacionados ao
divino – as relações de O Silêncio distanciam-se
de tal premissa, e o conflito interno de Esther é supervalorizado,
beirando um afetamento banal. Mais do que comoção, identificação
ou mesmo repulsa com a atitude da protagonista, a sensação
predominante passa a ser de indiferença. Não existe
uma ligação concreta entre as atitudes da protagonista
e os traumas trabalhados, e o acompanhamento da angústia
torna-se demasiadamente exagerado, deixando a fruição
do filme comprometida. Perde-se o estabelecimento de
um fio condutor que liga a densidade narrativa com os
conflitos psicológicos. Isto não impede, entretanto,
que o olhar sempre peculiar de Bergman não funcione,
pois há uma particularidade especial em O Silêncio
centrada no olhar de cada uma das personagens. O trânsito
de pessoas, tanto no privado (o ambiente do hotel, que
ainda que um local desconhecido é ponto de convergência
dos conflitos abordados) quanto no público (as ruas
da desconhecida cidade), se dá de maneira a causar um
deslocamento na observação das relações estabelecidas.
Em O Silêncio nenhum personagem caminha à toa.
Faz-se um paradoxo: se as personagens estão “perdidas”
ou “abandonadas”, a câmera do diretor está bem localizada,
transmitindo para o espectador de maneira consciente
toda contradição presente.
Mas não é somente através do seu posicionamento e movimento
de câmera que Bergman cativa emocionalmente o espectador
introduzindo-o numa dimensão psicológicamente carregada.
Nos três filmes a fotografia de Sven Nkyvist, seu constante
parceiro, caminha no mesmo sentido de toda obra. O contraste
fortemente trabalhado contribui na criação de uma atmosfera
densa, local de descontrole espacial e racional. Do
primeiro plano de Através de um Espelho, somos
inseridos naquelas águas reflexivas, mas não calmas.
A leve movimentação que direciona os focos de luzes
para todos os sentidos pode servir de guia condutor
para embarcar no ritmo do filme, deixando-se tocar pela
sensibilidade do diretor. Mais do que uma investigação
do comportamento humano, a Trilogia do Silêncio oferece
um prazer espectatorial calcado no poder da imagem,
que imbui o espectador nas intersecções psicológicas
do(s) indivíduo(s).
Raphael Mesquita
(DVD Versátil)
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