Em
Férias de Amor, melodrama magnífico de Joshua
Logan, não há nenhuma disputa entre a riqueza textual
das imagens e a experiência emocional despertada pelo
filme. A narrativa corresponde a apenas um dia na vida
dos personagens, o feriado em que todos fazem piquenique
no parque e é eleita a rainha da cidade. A certeza de
que o feriado não será um dia qualquer, e sim modificará
o clima da cidade, vem logo no início, mais especificamente
no primeiro plano do filme, que consiste tão-somente
na chegada de um trem à estação. Aquele trem varando
o quadro – e praticamente agredindo o ambiente calmo
de Kansas City – parece anunciar alguma incongruência
entre o que ele traz à cidade e o modo como esta funciona.
Algum gesto desmedido está a caminho.
Quem salta do trem no início do filme é Hal Carter (William
Holden), à procura de um amigo da época da faculdade,
Alan Benson, cujo pai é um bem-sucedido industrial.
Hal é do tipo que não pára em nenhum lugar e nunca tem
um emprego fixo, está sempre mudando de cidade e de
situação. Mas seus planos ao chegar em Kansas são outros:
ele pretende sair de sua vida nômade, arrumar um trabalho
e construir seu aconchego na pacata e comportada cidade,
a velha história do “settle down”, do levar uma vida
rotineira e assalariada, que nunca dá certo com pessoas
como ele, acostumadas à ação e à mudança constantes.
Tudo indica, no entanto, que seus planos podem se confirmar,
pois logo ao chegar Hal é bem recebido por uma senhora
que lhe oferece um farto café da manhã e um pequeno
serviço.
Hal, suado e sem camisa, queima o lixo do quintal da
senhora que o recebeu de forma amável e simpática. A
simples imagem de Hal destoa em relação ao ambiente,
a começar pelo fato de que, até aquele momento do filme,
ele era o único homem em meio a uma vizinhança que parecia
composta só de mulheres. Somente quando surge o implicante
entregador de jornal, que perturba a paciência das irmãs
Millie (Susan Strasberg) e Madge (Kim Novak), é que
se tem um outro homem em cena, mesmo assim um garoto
bobo e infantil, que logo será repreendido e enxotado
por Hal. No rosto de todas as mulheres da casa, incluindo
a estonteante Madge (que namora Alan), é nítida a sensação
incomum que uma tal presença masculina causa naquele
ambiente. No fundo do plano, às costas de William Holden,
a indústria de cereais do pai de Alan, desenhando –
ainda que calma e discretamente – a perspectiva perigosa
da passagem relâmpago de Hal por aquela cidade. A fábrica
ao fundo é como o destino à espreita de Hal.
1. Millie reclama com a mãe: “Madge is the pretty
one!”. Menina inteligente, que dedica o tempo à leitura
e ao seu talento para desenhar, Millie se vê ofuscada
pela irmã Madge, cujos dotes físicos estão mais afeitos
aos valores da sociedade em que vivem. Madge se olha
e se ajeita na frente do espelho com uma curiosidade
toda especial por si própria, mas não vemos seu reflexo
no espelho – talvez nem ela veja. À direita do quadro,
há um manequim com o vestido azul que logo em seguida
Madge estará vestindo. Ela está exatamente no centro
do plano, emoldurada pela porta mais ao fundo. Nem Millie
nem sua mãe se ajustam à moldura da porta; apenas Madge
parece talhada para esse recorte extra, essa posição
de destaque. Nos planos seguintes dessa seqüência, será
como se ela estivesse posando para um pintor. A adequação
de Madge a um ponto privilegiado da imagem, entretanto,
mostra seu preço: ao longo de toda a primeira parte
do filme, os gestos de Madge são curtos, assim como
suas expressões são discretas, como se ela não pudesse
transpor um limite físico imposto a seu corpo.
2. Quando Madge já está com o vestido azul, sua
mãe vira o espelho na direção dela. A rotação do espelho
carrega os raios solares até Madge, que fita o chão
com olhar melancólico. Sua tristeza se justifica na
imagem: ela está aprisionada pelas bordas do espelho,
pelos contornos traçados por um certo código de beleza
e comportamento. Em última análise, ela está aprisionada
pela própria perfeição de sua silhueta. 3. Como
a figurante de um quadro, Madge volta a estar sublinhada
pela moldura da porta no plano seguinte. O espelho,
por sua vez, continua desviando os raios solares na
direção dela. Mas há uma mudança fundamental nessa passagem
de planos. Se no plano anterior o espelho refletia a
imagem de Madge, neste agora é o corpo de Madge que
se torna o reflexo de sua imagem no espelho. Colocada
sobre um pedestal, sob o holofote natural da luz solar,
bela e cobiçada como nenhuma outra mulher da cidade,
Madge dá falta de alguma coisa. O espelho desempenha
ainda o papel de interface entre o manequim que está
atrás dele, no canto direito do plano, e Madge. O verdadeiro
espelhamento, então, se dá entre Madge e o manequim.
“Talvez eu esteja cansada de apenas ser olhada”, ela
diz. É por perceber que as pessoas à sua volta a transformaram
em imagem, e portanto desistiram de olhar para além
de sua aparência, que ela se diz cansada e revela aquela
ponta de tristeza no olhar.
Férias de Amor retoma questões caras a muitos
melodramas dos anos 50: o que há de enigmático a se
perscrutar na tipologia dos subúrbios americanos?, que
desejos se escondem por trás daqueles mundos que de
tão perfeitinhos parecem de plástico?. E, é claro, o
filme mostra mulheres tentando escapar à armadura de
uma vida moldada, social e afetivamente, nem sempre
de acordo com suas vontades.
4. Assim como Madge, Hal também está em desajuste
com um código. Mas no seu caso não se trata apenas de
um código moral e social, pois há também um código dos
próprios gêneros do cinema. Além de não pertencer àquela
geometria equilibrada sobre os vértices da casa, da
família e do trabalho, o aventureiro Hal, que vai de
carona no trem saltando de cidade em cidade, o homem
“selvagem”, que se afirma pela ação e não pelo pensamento,
este Hal é um personagem de western que invadiu
o universo do melodrama. O que se inscreve no gestual
efusivo de William Holden é a briga do seu personagem
com o meio, como se o ator quisesse desrespeitar as
marcações que lhe foram sugeridas. Hal se encontra em
total desajuste com as molduras do espaço. Ele é como
uma cor que não cabe na figura, e por isso a extravasa.
O gesto simbólico é quando ele tira o paletó do terno,
que Alan lhe havia emprestado, e estufa o peito em sinal
de uma liberdade de ação reconquistada. Hal, que rapidamente
vira centro das atenções (os olhares de todos convergem
para ele neste plano), agora pode novamente crescer
para os lados, prosseguir com o comportamento que o
torna um hiperativo em meio aos demais. Mais tarde,
depois que Millie desenhar seu rosto, ele irá confessar
que já trabalhou como modelo para pintores, mostrando
que no fundo tem muito em comum com Madge.
5 e 6. Como em Douglas Sirk e Leo McCarey, Férias
de Amor tece uma rede de personagens, e o espectador
não se identifica com apenas um dentre eles, mas com
toda a rede. O filme trabalha, portanto, dramas que
são vividos em conjunto. Há, por exemplo, num dos mais
belos momentos do filme, a cena em que a professora
solteirona, mulher de meia-idade cujo coração se amarga
a cada dia que passa, olha para o céu crepuscular e
se põe a filosofar sobre ele para Howard, seu namorado
beberrão: “Olhe esse grande pôr do sol, Howard. É como
se o dia não quisesse terminar. É como se o dia fosse
incendiar o mundo para impedir o avanço da noite”. Essa
briga do sol com a noite é a briga dela com a proximidade
cada vez maior de uma velhice solitária, sem marido,
e é também a briga de Hal com a imposição de um estágio
avançado da vida adulta, com a evidência cada vez maior
de que sua juventude já se foi. Em Férias de Amor,
o crepúsculo é essa coisa maravilhosa e mágica, mas
que tem seu lado assustador, pronto a devorar a vida.
7. A chuva de pétalas e a multidão para saudar
Madge, a nova rainha de Neewollah (Halloween ao contrário,
como a esperta Millie havia explicado anteriormente).
Quando ela passa por Hal, a troca de olhares diz tudo
que ocorrerá a partir de então, e que se precipita de
vez na cena da dança minutos depois. 8. Hal e
Madge não trocam uma palavra enquanto dançam. Eles não
tiram o olhar um do outro, entendem-se perfeitamente
na dança. Mais que isso: seus olhos se espelham. O enquadramento
os isola do espaço e das outras pessoas, e a câmera
desliza suavemente para acompanhá-los. Eles flutuam
no espaço sideral, rodeados apenas por planetas surdos
a seus desejos mais íntimos: é o momento no qual floresce
uma paixão silenciosa e ainda inofensiva a quem quer
que seja.
9. Nova despida de Hal, também carregada de valor
simbólico. A professora solteirona, após exagerar no
uísque, rasga a blusa de Hal quando ele tentava se livrar
da dança descompassada e da investida desagradável que
estava recebendo dela. A trilha sonora sublinha o acidente
com notas violentas, como numa cena de filme de terror.
A blusa rasgada não tem o mesmo efeito do paletó de
que Hal se livrara anteriormente: agora ele se sente
exposto, desnudado. Antes seu magnetismo quase animal
era uma arma a seu favor, agora ele está entregue e
acuado como um bicho indefeso fora de seu habitat. A
professora aproveita esse momento de fragilidade para
lhe jogar na cara o que ela pensa do seu comportamento,
descontando nele suas insatisfações. As palavras dela
são incrivelmente corrosivas, e Hal depois revelará
a Madge que se sentiu radiografado naquele momento.
Millie, enquanto isso, foge dali às lágrimas, também
sob efeito do uísque (que ela bebe escondida pela montagem,
que corta antes que ela leve a garrafa à boca, e pelo
enquadramento de Joshua Logan, que a coloca coberta
pelas folhas de uma árvore nos planos em que supostamente
estaria bebendo). É o fim do piquenique.
10. A luz vermelha que incide sobre Hal e Madge
é como uma advertência, um alerta de que aquele envolvimento
pode ter conseqüências ruins (à semelhança da fábrica
ao fundo da imagem lá no início do filme, só que agora
o aviso do destino é mais incisivo). Ou então o oposto:
uma aprovação da paixão dos dois, uma luz que pulsa
ao ritmo de seus corações. O trem passa por eles com
a velocidade de uma vida que, uma vez tomadas as decisões,
não tem como voltar atrás. 11. Novamente a luz
vermelha, desta vez vinda da sirene de um carro de polícia
parado em frente à casa de Alan. Novamente uma luz de
emergência, anunciando o estado agonizante da amizade
entre Hal e Alan. “Se você soubesse a felicidade que
senti ao te ver hoje pela manhã, Hal...”, Alan diz em
meio ao ódio que o preenche naquele momento. Hal ter
roubado de Alan o coração de Madge parece a confirmação
de algo antigo entre eles dois, ainda que o filme não
dê grandes indícios disso. O fato é que o amor terá
mesmo de se concretizar ao preço de uma amizade antiga.
12. Na manhã do dia seguinte, após pedir abrigo
na casa de Howard, Hal vai à procura de Madge. Ele propõe
que ela o acompanhe no trem que já se ouve chegar. Mas
a mãe não quer deixar, e a segura por trás. Madge sendo
impedida pela mãe de ir aonde seu desejo aponta é uma
forma de condensar todas as amarras de seu meio. Fassbinder
já dizia que o amor é o mais insidioso e efetivo instrumento
de repressão social, e o amor materno de maneira alguma
escapa a esse raciocínio. Mas Hal vence de uma
forma diferente de como seria no western: ao
invés de trazer harmonia à cidade e depois partir sozinho
novamente, sem levar com ele a mocinha, Hal vira a cidade
de cabeça para baixo e ainda conquista a mais bela jovem
da região. Millie é quem ajuda: “Pelo menos uma vez
na sua vida, faça alguma coisa inteligente: vá embora
atrás dele!”, ela aconselha Madge, cujas expressões
vão ficando mais fortes com o decorrer da segunda metade
do filme – como se ela lutasse para arrebentar a máscara
que esconde seu desejo sob seu bom comportamento. O
último plano do filme mostra o ônibus em que Madge se
encontra indo na mesma direção do trem que transporta
Hal, numa estrada paralela aos trilhos. Em algum ponto
à frente, os dois trajetos se cruzarão. O “fazer alguma
coisa inteligente”, nesse caso, e curiosamente, é seguir
o desejo, o instinto. O corpo, antes represado, precisa
finalmente ganhar um espaço que é seu, onde se sinta
à vontade – quem sabe livre dos olhares fetichizantes
e entregue ao toque de alguém que reconhece esse corpo
como corpo. Madge, por fim, aderiu à lei do desejo,
que um forasteiro lhe ensinou.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
(DVD Columbia)
|