FÉRIAS DE AMOR
Joshua Logan, Picnic, EUA, 1955

Em Férias de Amor, melodrama magnífico de Joshua Logan, não há nenhuma disputa entre a riqueza textual das imagens e a experiência emocional despertada pelo filme. A narrativa corresponde a apenas um dia na vida dos personagens, o feriado em que todos fazem piquenique no parque e é eleita a rainha da cidade. A certeza de que o feriado não será um dia qualquer, e sim modificará o clima da cidade, vem logo no início, mais especificamente no primeiro plano do filme, que consiste tão-somente na chegada de um trem à estação. Aquele trem varando o quadro – e praticamente agredindo o ambiente calmo de Kansas City – parece anunciar alguma incongruência entre o que ele traz à cidade e o modo como esta funciona. Algum gesto desmedido está a caminho.

Quem salta do trem no início do filme é Hal Carter (William Holden), à procura de um amigo da época da faculdade, Alan Benson, cujo pai é um bem-sucedido industrial. Hal é do tipo que não pára em nenhum lugar e nunca tem um emprego fixo, está sempre mudando de cidade e de situação. Mas seus planos ao chegar em Kansas são outros: ele pretende sair de sua vida nômade, arrumar um trabalho e construir seu aconchego na pacata e comportada cidade, a velha história do “settle down”, do levar uma vida rotineira e assalariada, que nunca dá certo com pessoas como ele, acostumadas à ação e à mudança constantes. Tudo indica, no entanto, que seus planos podem se confirmar, pois logo ao chegar Hal é bem recebido por uma senhora que lhe oferece um farto café da manhã e um pequeno serviço.

Hal, suado e sem camisa, queima o lixo do quintal da senhora que o recebeu de forma amável e simpática. A simples imagem de Hal destoa em relação ao ambiente, a começar pelo fato de que, até aquele momento do filme, ele era o único homem em meio a uma vizinhança que parecia composta só de mulheres. Somente quando surge o implicante entregador de jornal, que perturba a paciência das irmãs Millie (Susan Strasberg) e Madge (Kim Novak), é que se tem um outro homem em cena, mesmo assim um garoto bobo e infantil, que logo será repreendido e enxotado por Hal. No rosto de todas as mulheres da casa, incluindo a estonteante Madge (que namora Alan), é nítida a sensação incomum que uma tal presença masculina causa naquele ambiente. No fundo do plano, às costas de William Holden, a indústria de cereais do pai de Alan, desenhando – ainda que calma e discretamente – a perspectiva perigosa da passagem relâmpago de Hal por aquela cidade. A fábrica ao fundo é como o destino à espreita de Hal.

1. Millie reclama com a mãe: “Madge is the pretty one!”. Menina inteligente, que dedica o tempo à leitura e ao seu talento para desenhar, Millie se vê ofuscada pela irmã Madge, cujos dotes físicos estão mais afeitos aos valores da sociedade em que vivem. Madge se olha e se ajeita na frente do espelho com uma curiosidade toda especial por si própria, mas não vemos seu reflexo no espelho – talvez nem ela veja. À direita do quadro, há um manequim com o vestido azul que logo em seguida Madge estará vestindo. Ela está exatamente no centro do plano, emoldurada pela porta mais ao fundo. Nem Millie nem sua mãe se ajustam à moldura da porta; apenas Madge parece talhada para esse recorte extra, essa posição de destaque. Nos planos seguintes dessa seqüência, será como se ela estivesse posando para um pintor. A adequação de Madge a um ponto privilegiado da imagem, entretanto, mostra seu preço: ao longo de toda a primeira parte do filme, os gestos de Madge são curtos, assim como suas expressões são discretas, como se ela não pudesse transpor um limite físico imposto a seu corpo.

2. Quando Madge já está com o vestido azul, sua mãe vira o espelho na direção dela. A rotação do espelho carrega os raios solares até Madge, que fita o chão com olhar melancólico. Sua tristeza se justifica na imagem: ela está aprisionada pelas bordas do espelho, pelos contornos traçados por um certo código de beleza e comportamento. Em última análise, ela está aprisionada pela própria perfeição de sua silhueta. 3. Como a figurante de um quadro, Madge volta a estar sublinhada pela moldura da porta no plano seguinte. O espelho, por sua vez, continua desviando os raios solares na direção dela. Mas há uma mudança fundamental nessa passagem de planos. Se no plano anterior o espelho refletia a imagem de Madge, neste agora é o corpo de Madge que se torna o reflexo de sua imagem no espelho. Colocada sobre um pedestal, sob o holofote natural da luz solar, bela e cobiçada como nenhuma outra mulher da cidade, Madge dá falta de alguma coisa. O espelho desempenha ainda o papel de interface entre o manequim que está atrás dele, no canto direito do plano, e Madge. O verdadeiro espelhamento, então, se dá entre Madge e o manequim. “Talvez eu esteja cansada de apenas ser olhada”, ela diz. É por perceber que as pessoas à sua volta a transformaram em imagem, e portanto desistiram de olhar para além de sua aparência, que ela se diz cansada e revela aquela ponta de tristeza no olhar.

Férias de Amor retoma questões caras a muitos melodramas dos anos 50: o que há de enigmático a se perscrutar na tipologia dos subúrbios americanos?, que desejos se escondem por trás daqueles mundos que de tão perfeitinhos parecem de plástico?. E, é claro, o filme mostra mulheres tentando escapar à armadura de uma vida moldada, social e afetivamente, nem sempre de acordo com suas vontades.

4. Assim como Madge, Hal também está em desajuste com um código. Mas no seu caso não se trata apenas de um código moral e social, pois há também um código dos próprios gêneros do cinema. Além de não pertencer àquela geometria equilibrada sobre os vértices da casa, da família e do trabalho, o aventureiro Hal, que vai de carona no trem saltando de cidade em cidade, o homem “selvagem”, que se afirma pela ação e não pelo pensamento, este Hal é um personagem de western que invadiu o universo do melodrama. O que se inscreve no gestual efusivo de William Holden é a briga do seu personagem com o meio, como se o ator quisesse desrespeitar as marcações que lhe foram sugeridas. Hal se encontra em total desajuste com as molduras do espaço. Ele é como uma cor que não cabe na figura, e por isso a extravasa. O gesto simbólico é quando ele tira o paletó do terno, que Alan lhe havia emprestado, e estufa o peito em sinal de uma liberdade de ação reconquistada. Hal, que rapidamente vira centro das atenções (os olhares de todos convergem para ele neste plano), agora pode novamente crescer para os lados, prosseguir com o comportamento que o torna um hiperativo em meio aos demais. Mais tarde, depois que Millie desenhar seu rosto, ele irá confessar que já trabalhou como modelo para pintores, mostrando que no fundo tem muito em comum com Madge.

5 e 6. Como em Douglas Sirk e Leo McCarey, Férias de Amor tece uma rede de personagens, e o espectador não se identifica com apenas um dentre eles, mas com toda a rede. O filme trabalha, portanto, dramas que são vividos em conjunto. Há, por exemplo, num dos mais belos momentos do filme, a cena em que a professora solteirona, mulher de meia-idade cujo coração se amarga a cada dia que passa, olha para o céu crepuscular e se põe a filosofar sobre ele para Howard, seu namorado beberrão: “Olhe esse grande pôr do sol, Howard. É como se o dia não quisesse terminar. É como se o dia fosse incendiar o mundo para impedir o avanço da noite”. Essa briga do sol com a noite é a briga dela com a proximidade cada vez maior de uma velhice solitária, sem marido, e é também a briga de Hal com a imposição de um estágio avançado da vida adulta, com a evidência cada vez maior de que sua juventude já se foi. Em Férias de Amor, o crepúsculo é essa coisa maravilhosa e mágica, mas que tem seu lado assustador, pronto a devorar a vida.

7. A chuva de pétalas e a multidão para saudar Madge, a nova rainha de Neewollah (Halloween ao contrário, como a esperta Millie havia explicado anteriormente). Quando ela passa por Hal, a troca de olhares diz tudo que ocorrerá a partir de então, e que se precipita de vez na cena da dança minutos depois. 8. Hal e Madge não trocam uma palavra enquanto dançam. Eles não tiram o olhar um do outro, entendem-se perfeitamente na dança. Mais que isso: seus olhos se espelham. O enquadramento os isola do espaço e das outras pessoas, e a câmera desliza suavemente para acompanhá-los. Eles flutuam no espaço sideral, rodeados apenas por planetas surdos a seus desejos mais íntimos: é o momento no qual floresce uma paixão silenciosa e ainda inofensiva a quem quer que seja.

9. Nova despida de Hal, também carregada de valor simbólico. A professora solteirona, após exagerar no uísque, rasga a blusa de Hal quando ele tentava se livrar da dança descompassada e da investida desagradável que estava recebendo dela. A trilha sonora sublinha o acidente com notas violentas, como numa cena de filme de terror. A blusa rasgada não tem o mesmo efeito do paletó de que Hal se livrara anteriormente: agora ele se sente exposto, desnudado. Antes seu magnetismo quase animal era uma arma a seu favor, agora ele está entregue e acuado como um bicho indefeso fora de seu habitat. A professora aproveita esse momento de fragilidade para lhe jogar na cara o que ela pensa do seu comportamento, descontando nele suas insatisfações. As palavras dela são incrivelmente corrosivas, e Hal depois revelará a Madge que se sentiu radiografado naquele momento. Millie, enquanto isso, foge dali às lágrimas, também sob efeito do uísque (que ela bebe escondida pela montagem, que corta antes que ela leve a garrafa à boca, e pelo enquadramento de Joshua Logan, que a coloca coberta pelas folhas de uma árvore nos planos em que supostamente estaria bebendo). É o fim do piquenique.

10. A luz vermelha que incide sobre Hal e Madge é como uma advertência, um alerta de que aquele envolvimento pode ter conseqüências ruins (à semelhança da fábrica ao fundo da imagem lá no início do filme, só que agora o aviso do destino é mais incisivo). Ou então o oposto: uma aprovação da paixão dos dois, uma luz que pulsa ao ritmo de seus corações. O trem passa por eles com a velocidade de uma vida que, uma vez tomadas as decisões, não tem como voltar atrás. 11. Novamente a luz vermelha, desta vez vinda da sirene de um carro de polícia parado em frente à casa de Alan. Novamente uma luz de emergência, anunciando o estado agonizante da amizade entre Hal e Alan. “Se você soubesse a felicidade que senti ao te ver hoje pela manhã, Hal...”, Alan diz em meio ao ódio que o preenche naquele momento. Hal ter roubado de Alan o coração de Madge parece a confirmação de algo antigo entre eles dois, ainda que o filme não dê grandes indícios disso. O fato é que o amor terá mesmo de se concretizar ao preço de uma amizade antiga.

12. Na manhã do dia seguinte, após pedir abrigo na casa de Howard, Hal vai à procura de Madge. Ele propõe que ela o acompanhe no trem que já se ouve chegar. Mas a mãe não quer deixar, e a segura por trás. Madge sendo impedida pela mãe de ir aonde seu desejo aponta é uma forma de condensar todas as amarras de seu meio. Fassbinder já dizia que o amor é o mais insidioso e efetivo instrumento de repressão social, e o amor materno de maneira alguma escapa a esse raciocínio. Mas Hal vence de uma forma diferente de como seria no western: ao invés de trazer harmonia à cidade e depois partir sozinho novamente, sem levar com ele a mocinha, Hal vira a cidade de cabeça para baixo e ainda conquista a mais bela jovem da região. Millie é quem ajuda: “Pelo menos uma vez na sua vida, faça alguma coisa inteligente: vá embora atrás dele!”, ela aconselha Madge, cujas expressões vão ficando mais fortes com o decorrer da segunda metade do filme – como se ela lutasse para arrebentar a máscara que esconde seu desejo sob seu bom comportamento. O último plano do filme mostra o ônibus em que Madge se encontra indo na mesma direção do trem que transporta Hal, numa estrada paralela aos trilhos. Em algum ponto à frente, os dois trajetos se cruzarão. O “fazer alguma coisa inteligente”, nesse caso, e curiosamente, é seguir o desejo, o instinto. O corpo, antes represado, precisa finalmente ganhar um espaço que é seu, onde se sinta à vontade – quem sabe livre dos olhares fetichizantes e entregue ao toque de alguém que reconhece esse corpo como corpo. Madge, por fim, aderiu à lei do desejo, que um forasteiro lhe ensinou.


Luiz Carlos Oliveira Jr.

(DVD Columbia)

 

 









































 







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