Em
Um Olhar a Cada Dia (To Vlemma tou Odyssea,
1995), Theo Angelopoulos narra a trágica busca de um
homem por fragmentos de uma filmagem dos primórdios
do cinema grego. Se num primeiro momento podemos dissertar
sobre a memória, o resgate do passado e suas implicações
no presente e no futuro, num segundo, podemos perceber
que a busca está também ligada ao próprio ato de filmar,
ou, se preferirem, de olhar. Pois trata-se também do
resgate de um possível olhar puro, inocente, duma filmagem
que representa o nascer do cinema e, assim, da criação
imagética antes de sua incorporação pela cultura de
massas. Analogamente, poderemos dissertar sobre a relação
de Laura (1944) com os filmes noir.
O termo filme noir foi cunhado pela crítica francesa
do pós-guerra, quando o fim da ocupação alemã permitiu
a volta dos filmes hollywoodianos aos cinemas. Com o
súbito acesso à produção, em seu pioneiro artigo “Un
Nouveau Genre ‘Policier’: L'Aventure Criminelle” (Écran
Français, outubro/1946), Nino Frank separou alguns
filmes cujas semelhanças representavam uma reconfiguração
do gênero policial, trocando a supremacia da ação pelo
comportamento e psicologia de seus personagens: Relíquia
Macabra (The Maltese Falcon, 1941), Até
a Vista, Querida (Murder, My Sweet, 1944),
Pacto de Sangue (Double Idemnity, 1944)
e Laura. Estes filmes, cada um a sua maneira,
traziam elementos que – embora caracterizados como símbolos
de não-conformidade – seriam incorporados, pelos estúdios,
levando em conta a estrutura típica de seu ciclo de
produção. Se Relíquia Macabra instaura o desespero
existencialista e a desilusão do mundo ambíguo, e Até
a Vista, Querida incorpora, no filme policial, a
estilização visual do expressionismo alemão e dos filmes
de terror da década de 30; Pacto de Sangue é
o marco fundamental, reunindo estilo e clima, personagens
e conflitos, e transforma-se no palimpsesto máximo do
noir, apresentando essencialmente todas suas
características. Deste mesmo modo, por estar inegavelmente
ligado ao princípio dos noirs, vermos Laura
significa vermos a criação de um estilo antes de sua
pasteurização pelo studio-system. Significa que,
como noir, Laura muito antes de repetir
arquétipos, lança-os.
Não que os elementos fundamentais estejam ausentes:
temos o clima de alienação e de paranóia, onde qualquer
coincidência é suspeita, e todos não só possuem a motivação
para o assassinato, como são vistos, pelo seu próprio
círculo social, como capazes de cometê-lo. Se os filmes
noir expressam a desilusão do mundo abalado pelo
conflito mundial, a incompreensão e a fragmentação tornar-se-á
fundamental na construção do filme. E, nesse aspecto,
temos a perfeita confluência do estilo de Preminger
com o noir, onde a ambigüidade da narrativa resulta
de seus pontos-de-vista fragmentados – como, por exemplo,
a maneira diversa que cada personagem apresenta Laura
(Gene Tierney), o que fica ainda mais evidente no flash-back,
e como ela, ao retornar, se demonstra ao mesmo tempo
diferente de "todas" e parecida com cada uma,
em cada interação individual.
Uma pluralidade, no entanto, que se revela conflitante
com os anseios da personagem. Apesar de todos projetarem
em Laura uma certa idealização pré-estabelecida da mulher
(o que é conveniente no pós-guerra e na tentativa hollywoodiana
de re-submeter a mulher ao lar), Preminger rompe criticamente
ao delinear uma personagem com a consciência de seu
desejo por liberdade, e que aos poucos traçará seu destino.
E, se a crítica pós-feminista encara na femme fatale
uma mulher que deseja, acima de todas as morais, escapar
do universo masculino – nem que para isto precise recorrer
à sexualidade como arma e paradoxalmente precisar de
outro homem –, Laura diverge plenamente por já se encontrar
livre desde o princípio. O mais curioso é que, analisando
dentro dos termos da crítica feminista de Gledhill,
a única estrutura patriarcal que Laura parece abalar
é a de Waldo Lydecker (Clifton Webb), cujos trejeitos,
falas e roupas marcadamente destoam como ultrapassados
e tradicionais. Deste modo, a postura crítica de Preminger
em relação à velha sociedade permite a Laura, ao contrário
das mulheres independentes do noir, ter seu final
feliz.
A mise-en-scène de Preminger é arquitetada rigidamente,
e, tendo a completa noção do impacto de cada especificidade
cinematográfica, mantém sua forma de filmar, sem perder
a fluidez, enquanto o sentido também permanece igual.
E isto acarreta num impacto ainda maior quando suas
estruturas – tanto narrativas como estilísticas, visto
este atrelamento recíproco – são abaladas. A câmera
está totalmente centrada no seus personagens, acompanha
cada movimento com eles, descortina os ambientes em
conjunto. Mesmo nos pequenos movimentos dos personagens,
a câmera sente a necessidade de também se re-situar,
re-equilibrar a composição, permitir que todos os personagens
continuem em pé de igualdade; exceto nos singulares
momentos em que a narrativa não valoriza mais
um personagem, mas diminui o outro, ou temos um corte
para o primeiro plano, brusco pela ausência de cortes,
e que demonstra uma reação digna de isentar-se do resto.
O cenário, por sua vez, situa e estabelece cada personagem,
sempre tendo seu lugar na mise-en-scène. O caso
mais notório é o quadro de Laura, que num primeiro momento
era o arcabouço de todas as idealizações e o pivô do
amor de McPherson (Dana Andrews), e que se impunha na
composição como uma pessoa. E mesmo com a inesperada
volta de Laura, o quadro continua lá, onipresente, representando
a ambigüidade das "Lauras", do crime, do amor
e da sociedade – sem nunca deixar de ser um personagem.
O detetive para quem o amor, num primeiro momento, não
passa de um motivo de assassinato, enfim se apaixona
por uma morta. Sua fraqueza vem do mesmo amor, sua insegurança
o faz se apoiar na instituição, e duvidamos se o interrogatório,
afinal, serviu para descobrir a inocência de Laura,
ou quem ela amava – a simbologia final. Para McPherson,
assim como para Waldo, o amor e o crime serão sempre
relacionados, fechando o maior equilíbrio da obra, onde
o "herói" e o "bandido" são tão
parecidos que impossibilitam qualquer tentativa de fechar
o mundo num maniqueísmo.
E se, por fim, existe ainda a discussão se Laura,
afinal, não trata de um melodrama, é conveniente fechar
o texto com a curiosa definição de Jeanine Basinger,
na qual o noir é "uma espécie de vírus,
que ataca um gênero saudável e o faz ficar doente".
Lucas Barbi
(DVD Fox)
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