GAVIÕES E PASSARINHOS
Pier Paolo Pasolini, Uccellacci e Uccellini, Itália, 1966

“E hoje vos direi que é preciso engajar-se não só no escrever mas no viver...” (trecho de Il Poeta delle Cenere, ou Who is me?, escrito por Pasolini em 1966).

Pasolini nunca foi uma unanimidade. Mesmo seus defensores costumam fazer, em algum momento, uma ressalva aqui e ali, atribuir a dúvida sobre algum de seus petardos à sua personalidade “contraditória” – característica que só é positiva quando utilizada para explicar alguém cujo talento foge de qualquer explicação. Os extras da edição recém lançada de Gaviões e Passarinhos, por exemplo, começam por negativas. Na apresentação do filme, Mario Sesti, responsável pela restauração, diz que o resultado da união do maior escritor e cineasta italiano do pós-guerra com o maior cômico do país traz ainda um grande interesse menos por seu êxito e mais justamente porque tenha falhado. No documentário que acompanha a edição, vemos primeiro cenas de rua em que transeuntes depreciam Pasolini em relação aos mestres canônicos do cinema italiano de então, Antonioni e Fellini. Mais adiante, entrevistas de Alberto Moravia e Cesare Zavattini (o primeiro, inclusive, sendo dos que poderíamos chamar de um “defensor”), se mostram bem críticos diante das relações entre o escritor e o cineasta que convivem em Pasolini, dizendo que este último ainda não é tão bom quanto o primeiro – o documentário, Pier Paolo Pasolini: A Filmmaker’s Life, é do começo dos anos 70, posterior, portanto, a Teorema, Medéia e ao primeiro filme da Trilogia da Vida. Pasolini, ainda hoje, teima em escapar por entre nossos dedos. Se compreender plenamente qualquer grande gênio é uma tarefa impossível, algo no cineasta italiano parece tornar essa impossibilidade o grande barato de qualquer uma dessas tentativas: poucos se expuseram tanto quanto ele, e pensar Pasolini é, antes de tudo, pensar nas imagens que ele construiu de sim mesmo no cinema e na literatura. Instáveis, erradas, incoerentes que sejam, chega a ser quase visível que, por trás de cada fotograma e cada palavra, esteja a própria carne do autor, e que cada marca no papel ou na tela seja uma marca a mais na pele de quem as projeta.

Daí que Gaviões e Passarinhos talvez seja mesmo uma falha. Como a fábula alegórica que aparenta ser, segue passos muito bem marcados na construção simplificada de uma teoria sobre o que resta do marxismo em tempos de crise moral de seus seguidores, e quais seriam as possíveis saídas para essa crise (religião ou deglutição?). Está tudo inclusive muito bem claro e explicado: há um corvo marxista, catedrático e falastrão, que acompanha o caminho de um pai com seu filho, eles mesmos pequenos burgueses de pouca instrução, e tudo aquilo que as imagens tentam dizer acaba, uma hora ou outra, verbalizado pelo próprio corvo. No fundo do drama está a inevitável luta de classes: entre as aves (mas também entre os homens) haverão sempre os gaviões e os passarinhos, e fatalmente estas duas classes, em algum momento, se chocarão, porque o gavião precisa se alimentar, e com a força que tem pode devorar qualquer passarinho oprimido. Traduzida nessa parábola franciscana, a idéia de classe se torna muito mais complexa quando incorporada pelos próprios protagonistas. No meio de seu caminho, Totò e Ninetto (Davoli, os personagens tem o mesmo nome dos atores), param na casa de uma família paupérrima, que mal tem o que comer. O terreno da casa é de Totò, e a visita é na verdade uma cobrança pelo pagamento do aluguel, cobrança fria e arrogante, típica de um gavião que ignora a miséria do passarinho que lhe deve dinheiro. “Business is business”, diz o cômico-predador num italiano que quase faz esquecer a fonte inglesa da expressão. Mais adiante, no entanto, o predador vira presa, e na casa de um tal engenheiro, pai e filho precisam explicar porque ainda não lhe pagaram a quantia devida. Acuados por dois cães enormes, os dois choram a tragédia de serem gaviões e passarinhos ao mesmo tempo, de trazerem dentro de si tudo aquilo que a teoria sempre coloca como forças isoladas. A resposta, parece dizer o filme, talvez seja o caminho do cristianismo, um sistema de pensamento (como outro qualquer) que prega justamente a harmonização das diferenças, em nome da paz.

Mas a idéia de uma resposta, ou mesmo de alguma pergunta clara, se perde no meio do caos que existe em Gaviões e Passarinhos. É provavelmente aí que “falhe”: como em toda alegoria, é preciso algum didatismo minimamente coerente e direcionado, que ensine sem deixar dúvidas sobre aquilo que deve-se aprender. Mas no filme de Pasolini o princípio gerador de cada imagem parece ser sempre a imprecisão. Sua estrutura é quase a de um filme de episódios, que mantém tanta independência entre si que não sofreriam nenhuma perda caso um projecionista invertesse a ordem dos rolos. “Dove va l’umanità?”, se pergunta um letreiro logo do início, numa frase atribuída à Mao. Totò e Ninetto são personagens completamente intangíveis, pouco se sabe sobre suas histórias, e seu destino nessa caminhada desconjuntada é um mistério. Andam, apenas, e vivem experiências isoladas que vão se amalgamando, não no sentido de construí-los, mas de dar algum corpo à essa terceira matéria intangível, o filme.

Gaviões e Passarinhos talvez seja o primeiro grande passo de Pasolini na consolidação daquilo que lançara no anterior O Evangelho Segundo São Mateus como o “cinema de poesia”. Episódio por episódio (ou estrofe por estrofe), vivemos a inteireza da experiência do contato com o mundo – ao menos aquele criado pelo próprio filme –, somos expostos a emoções às vezes até contraditórias entre si mas que, no momento em que surgem, são encarnadas como se fossem a última, e essa urgência exige uma entrega imediata: literalmente um filme em que se ri e se chora, divertido quando quer, melancólico quando preciso. Pai não declarado de A Via Láctea, que Luis Buñuel faria três anos depois, Gaviões e Passarinhos sabe que o máximo grau de surrealismo pode ser conseguido justamente pela potencialização daquilo que é mais banal na realidade: Ninetto, numa episódio-estrofe que existe única e simplesmente para permitir que o personagem seja o adolescente que é, flerta com algumas mocinhas (uma delas vestida de anjo para a celebração do Dia de Maria), tenta impressionar falando do carro de um amigo, que dirige com rapidez e destreza de piloto de corrida, lá no fim ainda descola um beijinho na bochecha – sua paixonite, o mais comum dos sentimentos de sua idade, provoca-lhe a alucinação daquela mesma anjinha aparecendo misteriosamente em todas as janelas de uma casa abandonada. Aproveitando a presença de Totò, Pasolini coloca os protagonistas em uma dúzia de situações de pura comédia física, cheias de caretas e trejeitos típico de um cinema de superfícies, ao mesmo tempo que na pequena parábola em que os dois viram frades franciscanos amplia as considerações que Roberto Rossellini tinha feito em seu Francisco, Arauto de Deus sobre a relação entre o exercício da religiosidade e a conduta da prudência, e como o ser realmente devoto precisa se entregar sem reservas aos perigos da vida: para Pasolini, todo fiel tem que ser, no fundo, um pouco Buster Keaton. Essa graça toda convive lado a lado com os lamentos da mãe que deve aluguel à Totò, que junto dos gritos lancinantes de sua filha faminta instalam no filme uma tristeza tão bela quanto devastadora.

Um filme todo errado, portanto. Os créditos iniciais, cantados por um trovador medieval ao mesmo tempo em que aparecem escritos na tela, anunciam que Pier Paolo Pasolini, dirigindo-o, arriscou toda sua reputação. É justamente essa atração pelo risco que torna Gaviões e Passarinhos uma experiência tão surpreendente: cinema é, também, uma questão de coragem. Coragem de se expor contraditório, confuso, desarticulado, e fazer justamente dessas falhas aparentes o próprio motivo da construção de uma história em imagens. Cinema engajado na vida, ela mesmo sempre muito errada. Totò, infelizmente, morreria um ano depois deste trabalho. Ninetto Davoli voltaria ainda muitas vezes a bater asas para Pasolini: depois de gavião e passarinho, seria o pombo-correio de Teorema, para o qual Gaviões e Passarinhos funciona quase como uma prévia. Lá também há um elemento estrangeiro cuja presença provoca as mais diversas reações no ninho burguês (Terence Stamp é o correspondente direto do nosso corvo marxista). Mas se em Teorema estamos próximos dos personagens para percebermos estas reações, Gaviões e Passarinhos nos abandona justamente quando elas estão para acontecer. Pai e filho matam e comem o corvo falastrão, e o que virá daquela refeição só podemos imaginar. Seguem eles pela estrada que vai para o ninguém-sabe-onde, o sol se pondo milimetricamente no centro dela, um avião decolando lá no fundo – o plano é um dos mais belos da história do cinema. Segue Pasolini por estrada parecida, sempre cheio de ruídos, sempre falhando, sempre errado: e são de erros como ele que sentimos cada vez mais falta.


Rodrigo de Oliveira

(DVD Magnus Opus)