O
principal alicerce de toda arte é seu diálogo com a
sociedade. Uma dialética recíproca, onde o artista exprime
sua visão de mundo – como a sociedade o afeta – e sua
arte afetará a sociedade. O cinema, ao inserir este
conceito na esfera da cultura de massas, apenas amplifica
a intensidade dessa intrínseca relação. Por isso é tão
claro, nos filmes dos últimos 4 anos, o profundo abalo
da sociedade americana pós-11 de setembro. E mais, é
claro também como isto está sendo, a cada ano, digerido
pela indústria; para citar apenas alguns: A Última
Noite (25th Hour, 2002), Batman Begins
(2005), O Plano Perfeito (Inside Man,
2006) e V de Vingança (V for Vendetta,
2005).
Se V de Vingança pode ser considerada a mais
explícita abordagem, infelizmente peca por não ser a
mais impactante. Isto porque, embora trabalhe o medo,
a liberdade e relativize o terrorismo, frustra pela
sua contínua contradição, pois fechando-se antes de
fechar a problematização resta apenas um vago sentimento
do gratuitismo. E, embora seja problemático para a análise
fílmica a comparação com o material de origem – neste
caso a graphic-novel homônima de Alan Moore e
David Lloyd – aqui torna-se pertinente, pois permite
ver como todos os elementos apenas tenderam a esta gratuidade.
Em termos fundamentais, qual seria a graça de um terrorista
que fala através dos grandes clássicos, que em cada
frase (no quadrinho, o filme achou conveniente limar
a poucas citações, pois quem vai ao cinema não lê livros...),
a cada momento, nos demonstra ser possível e pertinente
a inserção de um Goethe, Shakespeare etc? Cria-se o
terrorista-poeta, que vê em cada instante da vida uma
relação com a arte, a constante dialética inadmissivelmente
rompida pelo governo totalitário. E ele atribui a estagnação
da vida a este desligamento, um comodismo benéfico para
o autoritarismo uma vez que nos impede de questionar
– uma sustentação revolucionária para a concepção de
arte-redentora.
Mas para o filme, o leitmotif do quadrinho e
do anti-herói sobre a essência da arte, da liberdade
e, bem, da vingança – existe algo mais romântico do
que a vingança? – é somente restringido à falta de liberdade
sexual, ao ponto de restar pouca insatisfação para ser
expressa pelo restante da população.
O prólogo afirma a necessidade de se relembrar o homem
– que, ao contrário da idéia, é falido e então condenado
ao esquecimento. Por valorizar o homem, também somos
relembrados do objetivo final da revolução: a humanização
da sociedade – o objetivo nobre que a diferenciará de
uma sede de sangue vingativa. Mas, paradoxalmente, a
superação do medo se baseará na consciência de que há
algo além de nossa própria vida, e a bela frase de efeito
em que se afirma que V é todos nós, apesar de ser mais
pertinente, também soa um pouco como contradição.
Se a "mensagem" do filme, e a intenção do
anti-herói, diz sobre o poder do grupo ("o governo
que deverá ter medo do povo") e sobre a necessidade
de inflamar as massas, isto também desanda em contradição,
pois restringe-se a problematizar a questão interna
de Evey, em sua superação de seus medo e valores impostos
pela sociedade. A decupagem do diretor enfatiza o embate
de pontos-de-vista de V e Evey, através do uso quase
exclusivo de campo/contracampo em todas suas cenas.
Porém, isto é tão exaustivamente repetido, inclusive
com outros personagens, que qualquer significado esvazia-se
pelo embotamento da imagem. O mesmo vale para a predominância
de primeiros planos: qual impacto que o primeiro plano
poderá ter em meio a uma enxurrada de primeiro planos?
Eles somente destacam os personagens de sua ambiência,
os aliena e dá mais um passo em direção à individualização.
Enquanto um dos grandes baratos de O Plano Perfeito
é justamente a universalização resultante da difusa
identificação com os personagens, o oposto ocorre no
filme de McTeigue: o filme senta-se confortável no ideário
clássico de metonimizar a transformação, deixando o
povo como mero coadjuvante de seu próprio destino.
Por fim, quando de fato ocorre a mobilização, ficamos
apenas confusos com o que realmente os motivou. Ninguém
parece incomodado com a censura, com o toque de recolher,
e a questão sexual não os foi apresentada, ou pelo menos
relembrada. Parece apenas que o tédio de ficar vendo
o canal televisivo do governo foi rompido por uma novidade
chamada caos e violência, e que todos foram lá para
ver a festa de fogos de artifícios. Toda essa gratuidade
simplesmente esvazia qualquer sentido para a cena final,
pois todos ali continuam sendo meros espectadores passivos
e alheios a qualquer poder de ação; apenas agora são
sortudos, pois a decisão de um coincide com os seus
próprios interesses.
Enfim, um filme médio, que desaponta por poder ter sido
muito mais.
Lucas Barbi
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