V DE VINGANÇA
James McTeigue, V for Vendetta, EUA, 2006

O principal alicerce de toda arte é seu diálogo com a sociedade. Uma dialética recíproca, onde o artista exprime sua visão de mundo – como a sociedade o afeta – e sua arte afetará a sociedade. O cinema, ao inserir este conceito na esfera da cultura de massas, apenas amplifica a intensidade dessa intrínseca relação. Por isso é tão claro, nos filmes dos últimos 4 anos, o profundo abalo da sociedade americana pós-11 de setembro. E mais, é claro também como isto está sendo, a cada ano, digerido pela indústria; para citar apenas alguns: A Última Noite (25th Hour, 2002), Batman Begins (2005), O Plano Perfeito (Inside Man, 2006) e V de Vingança (V for Vendetta, 2005).

Se V de Vingança pode ser considerada a mais explícita abordagem, infelizmente peca por não ser a mais impactante. Isto porque, embora trabalhe o medo, a liberdade e relativize o terrorismo, frustra pela sua contínua contradição, pois fechando-se antes de fechar a problematização resta apenas um vago sentimento do gratuitismo. E, embora seja problemático para a análise fílmica a comparação com o material de origem – neste caso a graphic-novel homônima de Alan Moore e David Lloyd – aqui torna-se pertinente, pois permite ver como todos os elementos apenas tenderam a esta gratuidade.

Em termos fundamentais, qual seria a graça de um terrorista que fala através dos grandes clássicos, que em cada frase (no quadrinho, o filme achou conveniente limar a poucas citações, pois quem vai ao cinema não lê livros...), a cada momento, nos demonstra ser possível e pertinente a inserção de um Goethe, Shakespeare etc? Cria-se o terrorista-poeta, que vê em cada instante da vida uma relação com a arte, a constante dialética inadmissivelmente rompida pelo governo totalitário. E ele atribui a estagnação da vida a este desligamento, um comodismo benéfico para o autoritarismo uma vez que nos impede de questionar – uma sustentação revolucionária para a concepção de arte-redentora.

Mas para o filme, o leitmotif do quadrinho e do anti-herói sobre a essência da arte, da liberdade e, bem, da vingança – existe algo mais romântico do que a vingança? – é somente restringido à falta de liberdade sexual, ao ponto de restar pouca insatisfação para ser expressa pelo restante da população.

O prólogo afirma a necessidade de se relembrar o homem – que, ao contrário da idéia, é falido e então condenado ao esquecimento. Por valorizar o homem, também somos relembrados do objetivo final da revolução: a humanização da sociedade – o objetivo nobre que a diferenciará de uma sede de sangue vingativa. Mas, paradoxalmente, a superação do medo se baseará na consciência de que há algo além de nossa própria vida, e a bela frase de efeito em que se afirma que V é todos nós, apesar de ser mais pertinente, também soa um pouco como contradição.

Se a "mensagem" do filme, e a intenção do anti-herói, diz sobre o poder do grupo ("o governo que deverá ter medo do povo") e sobre a necessidade de inflamar as massas, isto também desanda em contradição, pois restringe-se a problematizar a questão interna de Evey, em sua superação de seus medo e valores impostos pela sociedade. A decupagem do diretor enfatiza o embate de pontos-de-vista de V e Evey, através do uso quase exclusivo de campo/contracampo em todas suas cenas. Porém, isto é tão exaustivamente repetido, inclusive com outros personagens, que qualquer significado esvazia-se pelo embotamento da imagem. O mesmo vale para a predominância de primeiros planos: qual impacto que o primeiro plano poderá ter em meio a uma enxurrada de primeiro planos? Eles somente destacam os personagens de sua ambiência, os aliena e dá mais um passo em direção à individualização. Enquanto um dos grandes baratos de O Plano Perfeito é justamente a universalização resultante da difusa identificação com os personagens, o oposto ocorre no filme de McTeigue: o filme senta-se confortável no ideário clássico de metonimizar a transformação, deixando o povo como mero coadjuvante de seu próprio destino.

Por fim, quando de fato ocorre a mobilização, ficamos apenas confusos com o que realmente os motivou. Ninguém parece incomodado com a censura, com o toque de recolher, e a questão sexual não os foi apresentada, ou pelo menos relembrada. Parece apenas que o tédio de ficar vendo o canal televisivo do governo foi rompido por uma novidade chamada caos e violência, e que todos foram lá para ver a festa de fogos de artifícios. Toda essa gratuidade simplesmente esvazia qualquer sentido para a cena final, pois todos ali continuam sendo meros espectadores passivos e alheios a qualquer poder de ação; apenas agora são sortudos, pois a decisão de um coincide com os seus próprios interesses.

Enfim, um filme médio, que desaponta por poder ter sido muito mais.


Lucas Barbi