O
paradoxo está na própria definição. A utopia democrática
traz, em si, um elemento conservador: ela quer permanecer
democrática, não quer ser alvo de revolução, justamente
o elemento-limite da ação política que é a conquista
maior de uma sociedade democrática. Esse pressuposto
da idéia de Estado moderno pós-Revolução Francesa –
o de que ele quer continuar como tal – é importante
para se olhar para o jogo metafórico proposto por V
de Vingança. Porque a idéia de mostrar como metáfora
do mundo atual uma Inglaterra totalitária parece a princípio
anacrônica, perdida na era Tatcher. Mas ela faz todo
sentido se se pensa na agenda dos autores de Matrix,
os irmãos Andy e Larry Wachowski: o mundo como o vemos
é uma ilusão e não somos livres de fato.
Afinal, não se pode perder de vista que a história nos
é apresentada como uma sci-fi, como uma aventura futurista.
E como tal quer ter bases fincadas em nosso mundo não
apenas metaforicamente – na medida em que toda história
passada no futuro é uma metáfora do presente –, mas
também processualmente – em um raciocínio no qual as
origens daquele futuro estariam fincadas no presente
como o conhecemos.
A operação de transposição para as telas dos quadrinhos
escritos por Alan Moore segue, então, a cartilha da
antropofagia. Os Wachowski devoram a história
original e devolvem uma máquina referencial – a algo
que já era referencial, um gibi que citava de história
inglesa do século 17 a Shakespeare e A Bela e a Fera
– e uma metáfora poderosa sobre o desaparecimento da
esfera política no mundo atual.
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, autor, entre outros,
de Em Busca da Política, que se tornou uma espécie
de guru da crítica à globalização, talvez estranhasse,
mas uma questão sua (feita nesse livro mencionado) é
a melhor tradução da sociologia de V de Vingança:
como explicar que um mundo que conquistou a liberdade
– como o nosso – não tenha resolvido o problema da felicidade?
A resposta do filme é semelhante à de Bauman:
o mundo contemporâneo não consegue transformar problemas
individuais em problemas coletivos e não consegue fazer
os indivíduos adotarem para si problemas de ordem coletiva.
Em V de Vingança, não há liberdade. Mas para
os irmãos e para o diretor James McTeigue, seu mundo
é especularmente idêntico ao nosso. Claro, em ambos
a luta política é interditada. No ficcional, porque
ela não seria mais “necessária” ou, pela leitura de
Bauman das motivações contemporâneas, porque é vista
como sem sentido. A conexão entre os dois mundos surge
sutilmente, em alusões a nossa realidade – algumas delas
de lógica forçada, é verdade, mas, ora, é uma sci-fi,
um filme de gênero! Mas a mensagem é, como dito acima,
a bandeira temática dos autores: a caverna platônica
está em toda parte. Em nosso mundo, na incapacidade
de enxergar que liberdade não há em uma democracia sem
igualdade – falta que é citada no filme o tempo todo.
Mas eis que o filme resolve esse problema que se tornou
central no cinema dito “político” – dos trabalhos recentes
de Costa-Gavras aos de Ken Loach: o do conflito entre
o individual e o político. Vários filmes recentes têm
recorrido a histórias com dramas de indivíduos oprimidos
pela grande história, pelas forças políticas, pelo mundo
que despersonaliza as pessoas. Por esse modelo, o humano
e o político seriam irreconciliáveis. Isso porque a
autoridade – no sentido do que autores como Richard
Sennett chama de autoridade, um aparato de poder que
rivaliza com o indivíduo – estabelece uma ditadura contra
o singular, pasteuriza o humano, equaliza as diferenças.
Para os filmes políticos recentes, a luta a ser travada
é sempre contra essa unificação estética do homem, contra
a igualdade imposta.
Para V de Vingança não. O filme Cria um anti-herói
que converte um drama pessoal em ação política e uma
jovem que incorpora sua biografia política a um drama
pessoal. E é no jogo entre os dois que se constrói uma
história em que, pela primeira vez em muito tempo, o
político é possível no cinema, em que a reação é definidora
de identidade (e não negadora). Não à toa, o personagem
central traz um jogo identitário: é um herói mascarado,
mas pejado de ironia e com uma certa dimensão circense,
afinal ele traz máscara sorridente, roupa preta e cabelos
compridos. Não se sabe quem ele é, mas é, como diz a
moça, “todos nós”.
Daí a grande cena que resolve o conflito identitário ser
a em que os cidadãos tiram máscaras para ver as explosões,
pontuada pela opção por tocar Abertura 1812,
de Tchaikovsky, música-ícone de uma certa vitória
do nacional (russo) sobre o imperial (napoleônico),
quando o céu de Londres é dominado por um ataque terrorista
que mais parece um espetáculo pirotécnico de reveillon.
É contra a ilusão de liberdade que o filme opera. E
opera com um jogo de extremos: como exagera as cores
de seu totalitarismo – mentiras de Estado, genocídios
a serviço do poder, vigilância panóptica -, pode fazer-se
uma metáfora quase fabular, operando um jogo de espelhos
movido a um questionamento que pulsa em cada fala: como
pode o mundo contemporâneo supostamente livre querer
se diferenciar deste mundo ficcional totalitário com
tantas ditaduras – sobretudo a do mercado, que não aparece
abertamente no filme, mas é o horizonte de luta mais
claro de uma idéia de privatização das ações, o que
anula a luta política.
Não é, então, (apenas) para dizer que vivemos em um
mundo totalitário que o filme opera, mas para mostrar
que, no cotidiano, a democracia (que tem elementos ditatoriais
como qualquer sistema) não existe, não pode existir,
sem luta.
Alexandre Werneck
|