UM CASAL ADMIRÁVEL / EM FUGA / ACORDO QUEBRADO
Lucas Belvaux, Un Couple Épatant / Cavale / Aprés la Vie, França, 2002
 

Diversos comentários sobre essa trilogia apresentada pelo cineasta belga Lucas Belvaux vêm exageradamente classificando-a como um trabalho possivelmente “inovador” ou mesmo “revolucionário”. No entanto, mais que uma suposta “revolução narrativa” – e vista por esse ângulo esta se daria numa chave meramente superficial – a mola propulsora do diretor/roteirista parece ter sido um exercício de exploração de diversas possibilidades dramáticas ou mesmo dramatúrgicas. A técnica do grande romance literário (vide, por exemplo, Dostoievski) abraça em sua essência diversas tramas e personagens em paralelo que se entrecruzam. Passando à narrativa audiovisual, o mesmo esquema se repete com os diferentes núcleos de personagens presentes em uma telenovela. Sempre convergindo para formar um todo. Basicamente, a realização de Belvaux em sua trinca de “filmes-irmãos” foi trabalhar um grupo de histórias e personagens complementares e separá-los em filmes que priorizam por sua vez cada um desses.

Belvaux consegue levar a cabo com uma notável eficácia a tarefa de criar um conjunto coeso, mas ao mesmo tempo composto de elos independentemente fortes à sua maneira. Se cada um dos três pode eventualmente apresentar fragilidades – e tais se mostram mais evidentes em Um Casal Admirável – muitas delas vêm a se desvanecer, ao menos parcialmente, na visão coletiva. O risco maior assumido pelo autor, e possivelmente também um dos maiores atrativos da obra, foi arquitetar cada uma das partes como exercícios de gêneros diversos. Curiosamente, essa diversidade de gêneros não se estende ao estilo como Belvaux filma, trabalhando os três com uma câmera igualmente realista e contida. As distinções entre os filmes nascem de maneira justa e coerente através do ritmo imposto pela montagem. Sabiamente o diretor trabalhou sempre com a mesma equipe, exceto por montadores diferentes responsáveis por cada um deles. Daí emanam suas diversas pulsações e individualidades.

Mas independente de estarmos diante de um thriller (Em Fuga), uma comédia romântica (Um Casal Admirável) ou um drama (Acordo Quebrado), a maior força do trio advém de seus personagens e da forma como estes alternadamente se ocultam e revelam no decorrer dos filmes.Os personagens de Belvaux são construídos como vetores em constante movimento, cuja potência e intensidade desses movimentos vai variar a serviço do que o autor deseja impor em favor da história que está sendo priorizada. Se todos parecem de algum modo partir de um ponto comum, a escola onde as três protagonistas femininas trabalham como professoras – e isso nos trás imediatamente à lembrança, guardadas certamente as devidas distinções, o Anjos do Arrabalde de Carlão Reichenbach – os vetores parecem convergir para pontos de choque, o chalé nas montanhas o mais evidente deles. As seqüências passadas no chalé, que se repetem ao longo dos três filmes, são as que mais revelam e concretizam a idéia do autor em apresentar suas histórias sobre pontos de vista distantes e ao mesmo tempo complementares.

Voltando à idéia do movimento constante, vale ressaltar a forma como em todos os elementos da trilogia os personagens jamais se apresentam de forma estática. Sempre percorrendo as ruas e estradas da cidade de Grenoble – esta consistindo em si como mais um dos personagens –, caminhando ou, a maior parte das vezes, em automóveis, num deslocamento que se mostra quase interminável, parte de um fluxo de vida contínuo. E essa idéia de vida como um teatro de tristezas, tensões e sorrisos tende a determinar um conceito reinante na trilogia, que apresenta seus protagonistas como seres que simplesmente vivem, mas não estão aí para serem passíveis de um julgamento maior ou alvos de um perdão eminentemente messiânico, como fizera há mais de uma década Krzystof Kieslovski na chamada Trilogia das Cores, com a qual os filmes de Belvaux vêm sendo equivocadamente comparados. Se é caso de apresentar algum parentesco maior, este viria com o já citado Reichenbach e seu projeto original para uma série na qual o único episódio já concretizado foi Garotas do ABC, onde vários filmes tratariam de personagens habitando um mesmo ambiente, alternando-se como protagonistas e coadjuvantes.

Pensando cada filme individualmente, o mais forte é sem dúvida Em Fuga, onde Belvaux acompanha os passos de um terrorista militante de esquerda, Bruno (vivido por ele próprio, numa composição que remete claramente a Jean-Paul Belmondo), que foge da prisão onde permanecera por 15 anos. É também aquele que, entre os três, melhor funciona como uma obra isolada. Nela o diretor recria, de forma impressionante, momentos chave do cinema de Jean-Pierre Melville (O Samurai, Técnica de um Delator), onde o protagonista, um anti-herói solitário, segue o seu trajeto de vingança, em meio a um universo ao qual parece não mais pertencer. No caso de Bruno, isso se torna ainda mais acentuado quando seus ideais de luta de classe parecem decididamente desaparecidos no mundo contemporâneo e no pragmatismo da vida burguesa vivida por Jeanne (Catherine Frot), sua antiga colega de militância. Belvaux segue honrosamente os passos do mestre Melville e Em Fuga sobressai como um thriller a todo tempo emocionante e instigante.

Por outro lado, Um Casal Admirável é sem dúvida o mais frágil da trinca. Pensando em fazer uma comédia romântica calcada em suspeitas de adultério, mesclando a sofisticação de um Ernst Lubitsch à vulgaridade de um certo cinema cômico popular francês (Jean Poiret e similares), Belvaux não demonstra o domínio de um tempo de comédia com a mesma competência com a qual consegue administrar tensão e dramaticidade no restante da trilogia. Alain (François Morel) embarca num surto paranóico causado por um pequeno problema de saúde e leva a sua esposa Cécile (Ornella Muti, ainda deslumbrante na maturidade) a suspeitar que está sendo traída. O tom do personagem do marido é sempre exageradamente caricato e dissonante do conjunto, e, enquanto está centrado em sua figura, o filme se mostra pouco cativante. À medida que Cècile vem a interagir com o policial Pascal (Gilbert Melki) e sua esposa Agnes (Dominique Blanc), surgem as tensões e o filme ganha em interesse.

Tais tensões vêm a explodir de forma bastante intensa em Acordo Quebrado. Apresentado como um melodrama, esse seria melhor classificado como um drama de personagens. Distante das hipérboles inerentes ao gênero do qual Douglas Sirk foi mestre maior, esse terceiro episódio vem caracterizar-se como um mergulho sóbrio e realista nas situações-limite vividas pelo casal Pascal e Agnes, uma professora viciada em morfina. Belvaux explora com rara intensidade alguns dos mais negros meandros do amor e da dependência, aqui vistos numa complementar dualidade, valorizada pelas geniais atuações de Blanc e Melki. Por ser o mais calcado em situações presentes nos demais filmes da trilogia, para sua melhor fruição parece ser mais interessante, sem que seja de todo fundamental, que esse seja assistido por último. Sua conclusão amarga só faz gerar intensa expectativa sobre o futuro da carreira de Belvaux, cujo trabalho seguinte, La Raison du Plus Faible está para ser lançado na mostra competitiva do próximo Festival de Cannes.


Gilberto Silva Jr.