Diversos comentários sobre essa trilogia apresentada
pelo cineasta belga Lucas Belvaux vêm exageradamente
classificando-a como um trabalho possivelmente “inovador”
ou mesmo “revolucionário”. No entanto, mais que uma
suposta “revolução narrativa” – e vista por esse ângulo
esta se daria numa chave meramente superficial – a mola
propulsora do diretor/roteirista parece ter sido um
exercício de exploração de diversas possibilidades dramáticas
ou mesmo dramatúrgicas. A técnica do grande romance
literário (vide, por exemplo, Dostoievski) abraça em
sua essência diversas tramas e personagens em paralelo
que se entrecruzam. Passando à narrativa audiovisual,
o mesmo esquema se repete com os diferentes núcleos
de personagens presentes em uma telenovela. Sempre convergindo
para formar um todo. Basicamente, a realização de Belvaux
em sua trinca de “filmes-irmãos” foi trabalhar um grupo
de histórias e personagens complementares e separá-los
em filmes que priorizam por sua vez cada um desses.
Belvaux consegue levar a cabo com uma notável eficácia
a tarefa de criar um conjunto coeso, mas ao mesmo tempo
composto de elos independentemente fortes à sua maneira.
Se cada um dos três pode eventualmente apresentar fragilidades
– e tais se mostram mais evidentes em Um Casal Admirável
– muitas delas vêm a se desvanecer, ao menos parcialmente,
na visão coletiva. O risco maior assumido pelo autor,
e possivelmente também um dos maiores atrativos da obra,
foi arquitetar cada uma das partes como exercícios de
gêneros diversos. Curiosamente, essa diversidade de
gêneros não se estende ao estilo como Belvaux filma,
trabalhando os três com uma câmera igualmente realista
e contida. As distinções entre os filmes nascem de maneira
justa e coerente através do ritmo imposto pela montagem.
Sabiamente o diretor trabalhou sempre com a mesma equipe,
exceto por montadores diferentes responsáveis por cada
um deles. Daí emanam suas diversas pulsações e individualidades.
Mas independente de estarmos diante de um thriller
(Em Fuga), uma comédia romântica (Um Casal
Admirável) ou um drama (Acordo Quebrado),
a maior força do trio advém de seus personagens e da
forma como estes alternadamente se ocultam e revelam
no decorrer dos filmes.Os personagens de Belvaux são
construídos como vetores em constante movimento, cuja
potência e intensidade desses movimentos vai variar
a serviço do que o autor deseja impor em favor da história
que está sendo priorizada. Se todos parecem de algum
modo partir de um ponto comum, a escola onde as três
protagonistas femininas trabalham como professoras –
e isso nos trás imediatamente à lembrança, guardadas
certamente as devidas distinções, o Anjos do Arrabalde
de Carlão Reichenbach – os vetores parecem convergir
para pontos de choque, o chalé nas montanhas o mais
evidente deles. As seqüências passadas no chalé, que
se repetem ao longo dos três filmes, são as que mais
revelam e concretizam a idéia do autor em apresentar
suas histórias sobre pontos de vista distantes e ao
mesmo tempo complementares.
Voltando à idéia do movimento constante, vale ressaltar
a forma como em todos os elementos da trilogia os personagens
jamais se apresentam de forma estática. Sempre percorrendo
as ruas e estradas da cidade de Grenoble – esta consistindo
em si como mais um dos personagens –, caminhando ou,
a maior parte das vezes, em automóveis, num deslocamento
que se mostra quase interminável, parte de um fluxo
de vida contínuo. E essa idéia de vida como um teatro
de tristezas, tensões e sorrisos tende a determinar
um conceito reinante na trilogia, que apresenta seus
protagonistas como seres que simplesmente vivem, mas
não estão aí para serem passíveis de um julgamento maior
ou alvos de um perdão eminentemente messiânico, como
fizera há mais de uma década Krzystof Kieslovski na
chamada Trilogia das Cores, com a qual os filmes
de Belvaux vêm sendo equivocadamente comparados. Se
é caso de apresentar algum parentesco maior, este viria
com o já citado Reichenbach e seu projeto original para
uma série na qual o único episódio já concretizado foi
Garotas do ABC, onde vários filmes tratariam
de personagens habitando um mesmo ambiente, alternando-se
como protagonistas e coadjuvantes.
Pensando cada filme individualmente, o mais forte é
sem dúvida Em Fuga, onde Belvaux acompanha os
passos de um terrorista militante de esquerda, Bruno
(vivido por ele próprio, numa composição que remete
claramente a Jean-Paul Belmondo), que foge da prisão
onde permanecera por 15 anos. É também aquele que, entre
os três, melhor funciona como uma obra isolada. Nela
o diretor recria, de forma impressionante, momentos
chave do cinema de Jean-Pierre Melville (O Samurai,
Técnica de um Delator), onde o protagonista,
um anti-herói solitário, segue o seu trajeto de vingança,
em meio a um universo ao qual parece não mais pertencer.
No caso de Bruno, isso se torna ainda mais acentuado
quando seus ideais de luta de classe parecem decididamente
desaparecidos no mundo contemporâneo e no pragmatismo
da vida burguesa vivida por Jeanne (Catherine Frot),
sua antiga colega de militância. Belvaux segue honrosamente
os passos do mestre Melville e Em Fuga sobressai
como um thriller a todo tempo emocionante e instigante.
Por outro lado, Um Casal Admirável é sem dúvida
o mais frágil da trinca. Pensando em fazer uma comédia
romântica calcada em suspeitas de adultério, mesclando
a sofisticação de um Ernst Lubitsch à vulgaridade de
um certo cinema cômico popular francês (Jean Poiret
e similares), Belvaux não demonstra o domínio de um
tempo de comédia com a mesma competência com a qual
consegue administrar tensão e dramaticidade no restante
da trilogia. Alain (François Morel) embarca num surto
paranóico causado por um pequeno problema de saúde e
leva a sua esposa Cécile (Ornella Muti, ainda deslumbrante
na maturidade) a suspeitar que está sendo traída. O
tom do personagem do marido é sempre exageradamente
caricato e dissonante do conjunto, e, enquanto está
centrado em sua figura, o filme se mostra pouco cativante.
À medida que Cècile vem a interagir com o policial Pascal
(Gilbert Melki) e sua esposa Agnes (Dominique Blanc),
surgem as tensões e o filme ganha em interesse.
Tais tensões vêm a explodir de forma bastante intensa
em Acordo Quebrado. Apresentado como um melodrama,
esse seria melhor classificado como um drama de personagens.
Distante das hipérboles inerentes ao gênero do qual
Douglas Sirk foi mestre maior, esse terceiro episódio
vem caracterizar-se como um mergulho sóbrio e realista
nas situações-limite vividas pelo casal Pascal e Agnes,
uma professora viciada em morfina. Belvaux explora com
rara intensidade alguns dos mais negros meandros do
amor e da dependência, aqui vistos numa complementar
dualidade, valorizada pelas geniais atuações de Blanc
e Melki. Por ser o mais calcado em situações presentes
nos demais filmes da trilogia, para sua melhor fruição
parece ser mais interessante, sem que seja de todo fundamental,
que esse seja assistido por último. Sua conclusão amarga
só faz gerar intensa expectativa sobre o futuro da carreira
de Belvaux, cujo trabalho seguinte, La Raison du
Plus Faible está para ser lançado na mostra competitiva
do próximo Festival de Cannes.
Gilberto Silva Jr.
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