As primeiras imagens de Retratos
de Família nem parecem pertencer a ele. Alguns homens,
já entrados nos anos, surgem gritando de maneira estranhíssima
qualquer coisa que lembra o chilreado de uma ave. Esses
senhores se sucedem na tela, cada um empenhando-se ao
máximo em tirar da garganta a nota que corresponda exatamente
àquilo que estão imitando, até que entra o título original
do filme, em letras vermelhas garrafais. Daí em diante
não haverá sequer uma menção a este estranho prólogo
– e, no entanto, aquele som (ou a idéia dele) ecoará
em cada fotograma seguinte. Tudo se trata, no fim das
contas, de uma imitação: um homem que tenta se passar
por pássaro, um filme que tenta se passar por vida.
O êxito do primeiro depende do aperfeiçoamento contínuo
de sua técnica, que deseja a proximidade absoluta do
real, porque todo o resto lhe nega este estatuto (friamente
falando, é só um homem gritando caoticamente). O segundo
já não se cobra mais tamanha proximidade, mas ainda
não se livrou – e é ótimo que não tenha se livrado –
da referência na realidade. Imitá-la, no entanto, exige
mais que a primazia numa técnica, suas demandas são
de outra ordem. Tudo aqui já parece naturalmente ser
vida, a mesma relação de espaço e tempo, os mesmos ambientes
e os mesmos personagens feitos de carne e ossos, a mesma
interação entre eles. Parece, no entanto, cada vez mais
difícil fazer esta vida construída artificialmente viver
de fato. Uma olhada apressada pelo exterior de Retratos
de Família chega mesmo a favorecer a idéia de que
esse seja mais um filme morto por dentro: independente
americano festejado pelos sundencistas de plantão, registro
das agruras de personagens disfuncionais no interior
da América profunda, aquele lugar em que o país mostra
sua verdadeira e mais cruel face, trilha sonora de uma
banda indie de sucesso – o alarme soa para a semelhança
com algo próximo das Histórias Proibidas de Todd
Solondz, mas não, Phil Morrison e seu primeiro longa-metragem
passam longe disso.
Chama a atenção inicialmente uma certa honestidade de
propósitos que, ao invés de tirar força do filme por
indicar desde o começo o caminho a ser percorrido por
seus personagens, libera a narrativa para se dedicar
com muito mais carinho e atenção aos momentos que construirão
este arco proposto. De um ambiente contemporâneo urbano
cheio de desprendimento e liberdade como a galeria de
arte alternativa em que a curadora Madelaine trabalha,
e onde conhecerá seu futuro marido George, partiremos
para seu oposto perfeito, a cidadezinha no interior
onde todos os sentimentos são reprimidos em nome da
manutenção de um estado apático, mas seguro, das coisas.
A ligação entre um e outro está na viagem de retorno
que George fará até sua família para apresentar a esposa
recente, onde os choques entre os estilos de vida tão
diversos provocarão, em ambas as partes, uma transformação
ao mesmo tempo silenciosa e muito profunda. Em nenhum
momento Retratos de Família esconde que fará
essa defesa do contato entre as diferenças, nem que
acredita na transformação mútua como produto final desse
contato – mas aí talvez esteja aquilo que faz deste
um tipo estranho dentro da cinematografia de que é fruto:
o filme realmente acredita em tudo o que diz
e expõe, não no nível cego da fé inabalável numa verdade
que se livra de qualquer responsabilidade com as outras
verdades que a cercam, mas a crença aí sendo a única
postura possível quando se quer garantir condições para
que personagens e enredo se desenvolvam com alguma expressão
e autonomia. Phil Morrison acredita muito na maquete
da vida real que cria, e é essa operação que permite
que aqueles que a habitam deixem de ser apenas bonecos
de cena e possam andar por ela como pessoas, existir,
acertar e errar como pessoas. Eventualmente até a maquete
parece perder seu traço de produto fabricado: quase
esquecemos que por trás daquelas imagens o que existe
mesmo é só um homem gritando uma história.
A casa de Retratos de Família, ao contrário daquela
que José Bechara construiu por aqui e que fez sucesso
pelos museus por onde passou, projeta para dentro, e
não para fora, tudo o que existe nela. Uma casa orgânica,
onde todos os cômodos se comunicam, mesmo que não tenham
ligação física direta, onde todos se ouvem, mesmo que
se tente evitar os ruídos. Mais que isso, um espaço
que consegue misturar personalidades tão diferentes
quanto o pai conformado e o filho rebelde, a mãe conservadora
e a nora histérica e grávida. Quando Madelaine e George,
vindos das casas inorgânicas das grandes cidades, entram
neste ambiente diverso, há menos o estranhamento imediato
e mútuo e mais uma recepção curiosamente calorosa, contra
todas as ressalvas que a mãe de George faz à esposa
moderninha do filho. Phil Morrison opõe duas seqüências
protagonizadas pela própria casa que dão exatamente
o tom de suas intenções: na primeira, como naquela seqüência
de O Pântano que anuncia a tragédia final, vemos
os cômodos da casa filmados em planos fixos, num momento
do dia em que não há ninguém por ali, totalmente vazios.
Partindo dos mesmos enquadramentos e pontos de vista,
o diretor voltará com a câmera a estes cômodos, mas
à noite, quando todos estão se preparando para dormir
e quando as conversas dos três casais (pai e mãe, filho
mais velho e esposa, filho mais novo e esposa) são ouvidas
por todos. A idéia de uma casa como organismo vivo só
funciona porque o que a mantém viva são aqueles que
a habitam: não há uma existência independente daquela
construção (seja a alvenaria de um lar, seja o artesanato
de um filme), tudo só funciona realmente a partir da
presença humana.
E é à ela que Phil Morrison se devota em seu filme.
Com o ambiente desenhado de maneira tão generosa, é
dado à cada personagem a possibilidade de passar por
ele da maneira que melhor lhe convier. Não tanto uma
questão de “mostras todas as facetas dos personagens”,
como uma operação tautológica de libertação calculada,
mas garantir a cada um o espaço e o direito de se expor
do jeito que achar que deve: se Johnny, depois de ignorar
sua esposa grávida por todo o filme, num estalo de afetividade
decide gravar para a moça um programa de tevê sobre
o animal que ela mais gosta, revelando um lado de sua
personalidade que em nenhum outro momento se fará evidente,
não significa que o mesmo acontecerá com Peg, sua mãe,
irascível e constante o tempo inteiro. Mas não que Morrison
negasse à ela a chance de ser bacana, pelo contrário,
são vários os momentos em que esperava-se da mãe um
sorriso sequer, mas existe em Retratos de Família
a possibilidade de não sorrir, existe a possibilidade
de não se congraçar forçosamente pelo bem da trama ou
pelo final feliz – Peg acredita em sua tristeza emburrada,
e não há outra atitude viável para Morrison que não
se fiar nas crenças de sua personagem. E mesmo àqueles
que seriam meros figurantes num drama central muito
mais importante que eles merecem atenção da narrativa:
se não é possível perder muito tempo apresentando os
companheiros de trabalho de Johnny, que pelo menos seus
crachás com nome e foto apareçam na tela, entremeando
falas corriqueiras de um ambiente fabril, como forma
de sublinhar esta dependência única que o filme tem
de tudo o que é humano. Retratos de Família talvez
tenha passado despercebido pelas salas de cinema justamente
porque não se arvora na vontade de grandeza que personagens
e situações como essa geralmente provocam. Suas belas
pequenas seqüências permanecem na cabeça como que a
desafiar a memória a finalmente reter algo que não tem
em si nada de extraordinário – coisa que não é, nem
de longe, uma novidade no cinema, mas que feita justo
num momento em que o ordinário perde cada vez mais seu
poder de atração, acaba parecendo inédita, quase revolucionária.
Não é para tanto, mas não há como fugir da impressão
de que o canto desse pássaro, no fundo só um grito humano,
merecia ecoar por muitos outros ouvidos e corações.
Rodrigo de Oliveira
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