Como
filmar planos perfeitos
O Plano Perfeito é um filme de ação. Ação policial.
Ação de assalto. Ação como gênero cinematográfico. Como
em Munique, de Steven Spielberg, o que vemos
se trata de movimentos de corpos e acontecimentos que
se dão para nós como dados da imagem. E esta imagem
concentra, em si, todo o poder do filme como avatar
do entretenimento e questionamento político amplo e
contundente. Com múltiplos personagens e sem estratégias
de identificação, a narração de ponto de vista pulverizado
de ambos não nos situa num tempo-espaço específico (um
dos lados da moeda): sabemos muito porque vemos muito.
A imagem nos apresenta falas e ações para com elas montarmos
um painel e concluirmos o que quisermos a partir do
que constatamos. Atitude política por meio da linguagem.
Dalton Russell é o gênio responsável por uma engenhosidade
capaz de movimentar todo um aparato institucional e
espetacular (a ação policial com inúmeras viaturas e
equipamentos, táticas muito bem estudadas e cartilhas
de procedimentos – o imediatamente reconhecível eixo
de funcionamento do filme policial hollywoodiano), estremecer
as nervuras de uma cultura-nação muito bem assentada
e orgulhosa de uma estabilidade burilada desde o pós-guerra
(os EUA e sua “ética” econômica e social – o bastião
que se quer absoluto e inabalável) e desaparecer sem
deixar vestígios ou fazer grandes estragos. Russell
desliza por entre os interstícios de um mundo construído
sobre grandes pecados. Sob a superfície do funcionamento
político e econômico da “normalidade” jazem atos espúrios
em sigilo e sussurros de acordos comprometedores (dirigentes
reais dos esquemas da realidade que nos chega) e ele
tem a habilidade máxima de se infiltrar, agir de acordo
com o que lhe convém e se retirar, de forma totalmente
anônima. Do alto da soberania de sua maestria e inteligência,
Russell é, ele, sim, inabalável. Paira calmo e soberbo
acima do caos que coordena nos menores detalhes. Toda
a encenação que ele é capaz de alavancar (seja interna
ou externamente ao banco) permanece na órbita de sua
existência pessoal.
O impacto de suas ações é como um choque, que reverbera
por um tempo para em seguida dissipar-se, enquanto ele,
como epicentro, evapora.
Esta força da estratégia, nestas configurações precisas,
nos faz pensar no terrorismo, também evocado, paralelamente,
pela indumentária dos ladrões e seu jogo psicológico
com reféns e policiais. (1) O grande mal de um
presente recente e o medo maior de uma sociedade assombrada
por um indigerível trauma, ele é assim: exato em ações,
mas “imaterial” em efeitos e em pistas. A identidade,
esse dado ainda caro aos grandes escalões da política
(Arthur Case, Madeleine White e o prefeito são figuras
influentes) e à politicagem diária em geral (as disputas
de ego entre o capitão Darius e o detetive Frazier),
está em processo de apagamento. Podemos no máximo eleger
caricaturas que nos permitam qualquer referência (o
árabe, o chicano...). E se as novas ações se dão pautadas
por este apagamento, não é mais possível, de fato, distinguir
culpados de inocentes e talvez não seja mais possível
fazer justiça. Porque os culpados estão disseminados
entre as pessoas de bem (os ladrões entre os reféns,
os criminosos de guerra entre os benfeitores da sociedade)
e a vingança não tem mais rosto, já que tudo corre à
margem da oficialidade e não deixa rastros. Os diamantes
roubados por Russell e seus capangas são remanescências
de um outro tempo, perdidos nas franjas da História.
Não há registro deles, para além da memória pessoal
de Arthur Case. Seu segredo é um tesouro sem dono destinado
a comprazer indivíduos brilhantes em usos particulares.
Frazier, policial sagaz que não se contenta em seguir
as prescrições de sua atividade, poderá enfim se casar
e fazer a felicidade da noiva oferecendo-lhe algo com
o que ele sempre sonhou. Brinde de Dalton Russell, que
identificou no detetive algo além da mediocridade reinante
e fez questão de plantar uma semente do “mal”: jogar
uma pista que fizesse esse “adversário” dividir com
ele parte de sua consciência e perceber uma lógica nova
de funcionamento no/do mundo.
Seguindo este princípio e trabalhando desde dentro (o
código cinematográfico dominante nos seus intercruzamentos
com a ideologia americana), Spike Lee arquiteta um filme
que, pela crença na imagem, põe em curto-circuito o
sistema que interliga a forma fílmica e seu legado sócio-histórico.
O plano inicial, em que Russell olha para a câmera e
se apresenta para o espectador, é um plano sem-tempo,
que estabelece o personagem como um mastermind
inatingível, numa posição absoluta, de controle e poder
(o que é reforçado pela retomada destes planos e de
sua narração ao final do filme: não obstante todo o
estardalhaço, tudo sai perfeitamente do modo “discreto”
como foi planejado). (2) Sua voz nos envolve
e temos pleno conhecimento de um ”parti-pris” do crime:
“porque eu posso”. Este “fantasma invisível”, assombroso
poder “paralelo” que se estabelece sabe-se lá de onde,
é para nós um conhecido. Cativante personagem principal.
Da mesma forma, o plano de Madeleine e Case conversando
no passeio público com a cidade de Nova York ao fundo
costura suas intrigas como uma espécie de espinha dorsal
da cidade. (3) Por trás de odiosos crimes mais
recentes há ainda a marca indelével de um passado: o
holocausto. Constantemente relembrado, ele já não tem
mais propriamente um lastro histórico, porque a História
parece ter se tornado de fato episódica. Mas a informação
que Dalton Russell domina está ali para mostrar que
mesmo que se acredite que este trauma esteja sedimentado,
como um substrato de base da sociedade (afinal os judeus
estão na base da economia americana), essa homogeneidade
em que apostamos para fazer frente ao inimigo não é
um fato premente. Mesmo porque apontar o inimigo não
é tão óbvio, nem interna nem externamente. A caça às
bruxas pode acabar apontando para nós também – nós e
nossos vícios.
Essa desorientação por conta de uma identidade buscada,
mas que se esfacela, está magnificamente sintetizada
na imagem dos reféns (em sua maioria conhecidos por
nós) saindo em disparada do banco – uma massa de corpos
cinzas encapuzados (4) –, para serem recebidos
a tiros por um grupo de policiais aflitos. Os justiceiros-guardiões
da segurança simplesmente não sabem mais como reagir
e tentam desesperadamente se agarrar aos velhos ensinamentos,
adotando uma postura de indiferenciação total entre
possíveis suspeitos. Reflexo do aprendizado de um confronto
que, ali, já não tem mais justificativa. A estratégia
policial de invasão do banco, visualizada sobre o mapa
da planta do prédio, gera imagens em flashforward
extremamente violentas, em que a agressividade de uma
ação tantas vezes repetida na nossa cultura audiovisual
nos salta aos olhos como uma incoerência inexplicável.
Afinal, em quem eles estão atirando? Por que metralham
um corpo repetidamente em frente a um amontoado de notas
de dólar, espalhando sangue? Em seguida, um close da
caixa de depósito 392, na qual Case guardava seu precioso
segredo sem registro, toda suja de vermelho, revela
a associação entre a morte e as altas instâncias públicas
da qual o banqueiro também faz parte. É novamente a
imagem que nos traga pra fora do que ela a princípio
poderia sugerir.
Para Spike Lee, é o poder de afirmação da imagem que
construirá em bases sólidas o filme. Tanto nestas construções
de sentido que se dão graficamente, quanto no diálogo
com os clichês – a caracterização dos personagens, o
ritmo de uma intervenção policial que busca a solução
de uma anormalidade no funcionamento da cidade (5
e 6). É surpreendente também a participação da imagem
no curso da narrativa: a gaveta metálica com a escuta
dos ladrões sempre no centro do quadro, apontando para
o alcance insuspeito do seu domínio; os transcrafts
que forjam os retratos de Arthur Case e Dalton Russell,
dando a medida da imponência destes sujeitos, confrontados
através da História em suas práticas; os movimentos
de câmera que dão o tom das cenas; os inserts
da caixa de depósito 392 ao final do filme, no meio
das falas desconfiadas de Frazier, que não aceita o
mistério do caso. O Plano Perfeito afirma a imagem
como construção de sentido primeira. À montagem compete
dar ritmo e agilidade a uma narrativa vertiginosa, que
promove o entretenimento legítimo de uma intriga muito
bem-construída.
A visualidade, para uma cultura cujo trauma marcado
a ferro e fogo é simbolizado por uma imagem “cinematográfica”
de destruição urbana, está no centro de sua relação
com o mundo. Quando Dalton Russel questiona o videogame
do garoto, que transpõe para uma telinha de CG um drama
social, ou quando encena a comédia do terror (o espancamento
do funcionário do banco por trás do vidro fosco, a falsa
execução vista na qualidade pobre da câmera de vídeo),
é uma vasta cultura visual que ele está confrontando.
Russel sabe que o teatro é sua chave de sucesso e é
a partir desta compreensão que elabora o plano perfeito.
É o seu poder de impressionar, sua arma. Porque, afinal,
é o espetáculo a chave do sucesso.
Tatiana Monassa
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