É o novo, é o novo, é
o novo, é o novo, é o novo...
À primeira vista, nada haveria de semelhante
entre O Veneno da Madrugada, novo filme de Ruy
Guerra, e O Gatão de Meia Idade, de Antônio
Carlos Fontoura. Enquanto o primeiro se insere, conscientemente,
na categoria um tanto redutora de "filme de arte"
– isto é, projeto totalmente autoral, de difícil
assimilação, disposto a ser visto por
um público pequeno, mas fiel – o segundo se insere,
conscientemente, na categoria um tanto redutora de "filme
comercial" – projeto de estúdio, fácil
assimilação, disposto a ser visto por
um público grande, mas disperso. Mas, como as
aparências enganam – e esclarecem –, um estudo
mais aprofundado percebe nas duas obras uma mesma questão,
um mesmo problema: como, dentro das respectivas categorias,
seus diretores, remanescentes de um cinema pré-retomada
(e, ainda, que começaram suas carreiras em um
momento pré-Embrafilme) podem situar-se com sucesso
dentro de um novo tempo? Se nem Guerra, e tampouco Fontoura,
conseguem dar respostas satisfatórias a esta
questão, os tropeços que inserem nelas
podem ser bastante significativos. De um lado e de outro,
esta pergunta afronta os realizadores e pode ser repassada
a nós: no início do novo milênio,
que tipo de cinema ainda é válido? O
Veneno da Madrugada e O Gatão de Meia
Idade parecem ter sido feitos com a interrogação
rondando o set de filmagem, e infelizmente os filmes,
em vez de combatê-la, foram dominados por ela.
Baseado em um romance de Gabriel Garcia Márquez,
a própria premissa de O Veneno da Madrugada
já sugere um filme cujo caminho escolhido, se
considerá-lo "errado" for exagero,
é no mínimo ultrapassado. Como em vários
dos livros de Gabo, a ação de O
Veneno da madrugada passa-se em um local desconhecido
da América Latina, representante da totalidade
do espaço físico nela incluso, com personagens
que, antes de pessoas, são retratos sociais,
personificando relações que estabelecemos
dia a dia um com o outro. Mas partir de uma América
Latina alegórica, construída a partir
dos estereótipos que criamos dela, hoje em dia,
é falar de América Latina alguma. Nos
últimos 45 anos (período entre o início
da carreira de Guerra e a época atual) percebeu-se
que não existe uma América, mas milhares;
que nossa essência não é o espaço
rural, mas todos os espaços; que para um carioca
muitas vezes a identificação com os Estados
Unidos da América é maior do que, por
exemplo, com a Venezuela. O Veneno da Madrugada
não diz nada sobre o Rio de Janeiro, sobre Bogotá,
sobre a pequena cidade chilena com cinqüenta habitantes
que deve existir. Passa-se em um tempo estranho, em
lugar nenhum, é um filme perdido nas telas de
cinema do século XXI, apontando para algum caminho
que já não existe. Se alguns dos filmes
brasileiros de maior força que surgiram nos últimos
anos – Cidade Baixa, Cinemas, Aspirinas e
Urubus... – ou mesmo argentinos – O Pântano,
Do Outro Lado da Lei... – trazem consigo a relação
inevitável com o espaço físico
existente e restrito, e destróem os mitos desse
espaço para adentrar a realidade, O Veneno
da Madrugada é a reafirmação
do mito. Tolstói disse, em ditado hoje clássico,
de que para falar do mundo deve-se falar de sua aldeia.
Guerra não percebeu que os alcaides já
não pertencem a aldeia alguma. Ou talvez até
tenha percebido.
Como se a construção social que representara
não bastasse (e realmente não basta),
como se o retrato dominador/dominado que criara já
não fosse nada em inícios do século
XXI (e realmente não é), o diretor precisou
incrementar sua narrativa, de forma a dar "valor"
a ela, com elementos filosóficos. O problema
é que, dentro de O Veneno da Madrugada,
a relação que se estabelece entre filosofia
e sociologia é simplesmente idiota. Fora a necessidade
de tentar ser original, diferente, novo, singular, fora
o desejo de se manter um autor "relevante"
quando nada tem a dizer em uma época que já
não lhe pertence, nada justifica a inclusão
de um anão e uma cigana dissertando sobre "as
flechas do tempo". O que deveria ser uma interrogação
filosófica acaba parecendo uma idéia surgida
de um remake piorado de Efeito Borboleta,
pois cheio de afetação e "genialidade".
E de certa forma, infelizmente, essa necessidade de
encontrar uma forma de ser "novo" e, portando,
válido, está presente em todos os momentos
da construção do filme, seja na fotografia
de Walter Carvalho, nas atuações não-naturalistas
dos atores, na dublagem que Guerra impõe a eles,
na mise-en-scène criada. Todos os aspectos
de O Veneno da Madrugada têm simplesmente
a função de chamar a atenção
para o filme em si, de reconhecer como o diretor que
está por trás daquilo é genial,
sem significar propriamente algo, sem se transformar
em qualquer espécie de unidade. O Veneno da
Madrugada é o grito de socorro de um cineasta
que se afoga nas águas do rio que criou. Grito
este, porém, que nada diz, e destina-se a ninguém.
Ter ficado apenas duas semanas em cartaz no Rio de Janeiro
não parece ter sido um lance de azar.
Em O Gatão de Meia Idade, a idéia
de realização é diametralmente
oposta. Para inserir-se no cinema deste início
de milênio, Antônio Carlos da Fontoura aposta
em uma comédia de costumes destinada a um público
específico, a classe-média alta moradora
dos centros urbanos e que, "coincidentemente",
é a fatia de público que tem dinheiro
para transformar a ida ao cinema em um programa corrente.
Com esse gênero consagrado por Normais, Comédias
das Vidas Privadas e Pequenos Dicionários Amorosos
recorrentes nos últimos anos, O Gatão
de Meia Idade, e sua decupagem simplista de campo/contracampo,
sua total falta de pensamento cinematográfico
(poder-se-ia dizer que foi filmado em alguma espécie
de piloto automático) e seu elenco televisivo,
em nada se difere de um especial de fim-de-ano ou uma
sitcom da Rede Globo, na qual o texto carrega
e determina o que vemos na tela.
Ou melhor, em quase nada. Dentro de sua radiografia
do macho de 40 anos da Zona Sul do Rio de Janeiro, Antônio
Carlos Fontoura incorre num problema bastante parecido
com o de Ruy Guerra. Enquanto o diretor angolano optou
por um espaço imaginário para tentar alcançar
a realidade (com resultado, como já foi comentado,
pífio), o cineasta brasileiro transforma o espaço
real em um local imaginário. No fim das contas,
o resultado é o mesmo: a reafirmação
dos estereótipos e mitos existentes sobre o local.
Mesmo com a Lagoa Rodrigo de Freitas ao fundo, o Rio
de Janeiro de Fontoura não deixa de ser a cidade
de O Veneno da Madrugada, um lugar-nenhum. Aqueles
personagens não se parecem com a gente, seus
diálogos soam falsos, as situações
inacreditáveis, os dramas distantes. Falta a
Fontoura uma visão mais sensível sobre
este chão que pisamos, uma atenção
aos detalhes, uma maior profundidade. Tudo bem, a uma
comédia talvez baste ser engraçado. Mas
para ser engraçado, o protagonista teria de parecer
algum de nós, um conhecido ou pelo menos aquela
pessoa que vemos passeando na rua e destaca nossa atenção.
O Gatão de Meia-Idade, tal qual o Alcaide,
simplesmente não é ninguém. As
poucas pessoas que estavam na sala quando assisti no
cinema – em pleno Rio de Janeiro na primeira semana
em cartaz – podem reafirmar isso. Um filme de grande-público
que não provoca um riso. Se os especiais da Rede
Globo, por mais que normalmente não tenham grande
valor cinematográfico, conseguem divertir, O
Gatão de Meia Idade não consegue nada.
O Veneno da Madrugada e O Gatão de
Meia Idade, portanto, são mais próximos
entre si do que se poderia supor uma visita superficial.
Duas obras que tentam dar uma visão sobre nossa
realidade mas que, cada uma a seu modo, apenas repisam
aquilo que já sabemos e, mais, aquilo que não
somos. Uma América Latina idealizada e um Rio
de Janeiro inexistente. O tempo, ao contrário
do que Guerra tenta explicar, passa, e nenhum dos diretores
soube dialogar bem com ele. Na busca de caminhos para
tentar se atualizar em nosso cinema, apenas um se confirmou,
e não há como chamá-lo, infelizmente,
de positivo: Guerra e Fontoura nos ensinam como partir
do nada para chegar ao lugar nenhum.
Leonardo Levis
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