Terrence Malick utiliza a mesma
música – a Abertura da ópera O Ouro do Reno,
de Richard Wagner – tanto para a chegada dos navios
ingleses à costa da Virgínia em 1607, quanto para a
delicadíssima e onírica seqüência em que Pocahontas
(agora Rebecca) falece, nove anos depois, na Grã-Bretanha.
Em O Novo Mundo, a morte é presença constante,
assim como a vida: frente à impassibilidade da natureza
e à omissão de Deus, restam aos personagens mergulhados
na dúvida e no desamparo a procura pelo Outro que os
complete, a fim de que possam lutar contra o caos e
a incompreensão que reinam entre os homens. Filme sobre
desterrados, obra fordiana, embora elíptica e sensória,
O Novo Mundo semeia a crença de que é possível
construir ambientes afetivos onde se consiga viver e
ser feliz – de que a árvore, enfim, sempre cresce, por
mais galhos que perca no caminho.
O primeiro plano de O Novo Mundo mostra o céu
refletido na água, que se turva gradativamente. Corte
para Pocahontas, braços estendidos para o alto, clamando
para que o Espírito venha e a ajude a contar a história
de sua terra. Desde o início, Malick deixa claro o desequilíbrio
homem / natureza e a ameaça permanente da morte – o
céu que desaparece na água turva –, e as perguntas incessantes
de seus personagens (que obtêm como respostas, daqueles
que os criaram, apenas o silêncio), da mesma forma que
aproxima a narrativa da fábula e dos sonhos e a afasta
do relato histórico ou da ficção dramática. John Smith
vaga pela América, em transe, observando, tentando contatar
e apreender o ambiente circundante, que sempre lhe escapa,
enquanto Pocahontas dialoga em vão com a Mãe surda e
ausente: a natureza irremediavelmente distante, fora
do alcance e da compreensão dos homens. Nada mais errado,
por conseguinte, do que ligar Malick à ecologia, pois,
se para o diretor a natureza não se apresenta caótica
e negativa como em Werner Herzog, ela certamente também
está longe de ser pacífica e harmoniosa – o meio natural
(e Deus) é absoluto e, portanto, insensível, impassível,
intocável, inacessível. Puro Mistério, que não se dá
ao conhecimento dos personagens que, brancos ou índios,
subsistem no caos, em virtude de suas diferenças civilizatórias
(culturais, lingüísticas, religiosas). O abismo entre
o homem e a natureza surge com toda força durante o
ataque dos powhantas ao forte quando, em meio à carnificina
da batalha, Malick corta primeiro para o vento que balança
a relva, e depois para o sol que se esconde por trás
das nuvens, ambos somente se limitando a constatar a
loucura e a estupidez de seus filhos. E por que nada
fazem para impedi-las?
Se o Capitão Smith associa o cotidiano indígena ao Paraíso,
trata-se da visão parcial e contingente do personagem
que, cansado da vida falsa que leva, deseja abandonar
o antigo nome e recomeçar. O interesse de Malick, ao
contrário, não está na natureza – idílica e pura aos
olhos do estrangeiro degredado (Smith não chega à América
como herói, e sim enquanto prisioneiro) –, mas nos homens,
como demonstra a seqüência em que Pocahontas (a filha
mais querida do líder da tribo, representada pelo plano
singelo da planta solitária que emerge do pântano) aprende
a falar inglês: primeiro, referindo-se aos elementos
naturais – o céu, o sol, a água, o vento –, para em
seguida centrar-se no corpo do amado – os olhos, os
lábios, a orelha. Contra o silêncio de Deus, o Amor.
Contra a omissão da natureza, o relacionamento do Um
com o Outro. Do mesmo modo que Tristão e Isolda, Pocahontas
e Smith se completam, tornam-se um único ser, enquanto
a suposta morte do capitão no naufrágio acaba, nas palavras
da própria heroína, por “matar o deus” que dentro dela
existia.
Para Malick, “novo mundo” possui significado que ultrapassa,
e muito, a simples idéia do início da colonização dos
EUA, embora o contexto sociológico esteja presente.
Neste sentido, no triângulo amoroso no cerne do filme,
Pocahontas representa a América (e Smith a chama de
“minha América”), John Smith a primeira leva de imigrantes
– os aventureiros –, e John Rolfe a segunda onda – os
colonos. A cisão da protagonista entre o explorador
/ conquistador e o agricultor / fazendeiro é a mesma
de um país dividido, desde as origens, entre o desejo
expansionista (de marchar para o Oeste, de se tornar
potência global) e o acolhimento do estrangeiro (a terra
das oportunidades), o que faz de O Novo Mundo
a obra política que críticos experientes como Jonathan
Rosenbaum se recusaram a enxergar, por razões estapafúrdias.
O cineasta, no entanto, rejeita simplificações e demagogia:
por que Pocahontas, ou melhor, Rebecca, encontra a felicidade
e a paz de espírito na Inglaterra, aculturada e casada
com Rolfe, longe de seu povo e de sua pátria?
Em O Novo Mundo, há profusão de plano que usam
o quadro dentro do quadro, ou seja, que recortam a tela
através de elementos cênicos, como portas ou janelas,
pelos quais os personagens observam o ambiente. São
planos que citam e homenageiam John Ford – como esquecer
o final de Rastros de Ódio? – e que Malick não
decupou por mero capricho. O cinema fordiano privilegia
os desterrados e os exilados, outsiders que se sacrificam
pela comunidade e que dela são expulsos, necessitando
fundar suas próprias coordenadas, inserir-se em outras
relações sociais e afetivas que dêem sentido à vida.
Pois não é o processo exato que verifica em O Novo
Mundo? Pocahontas abandona o lar, a família, a cultura,
a língua, o nome; transforma-se em Rebecca, muda-se
para o forte, é batizada, casa-se com Rolfe, vai para
a Inglaterra. Desterritorialização e reterritorialização:
ela cria novos laços, nos relacionamentos, novos afetos.
Claro que a afirmação do ato de viver (o “tema central”
a que o diretor se refere, em suma) não se dá sem dor,
sofrimento, decepções e perdas, seja para os EUA, que
enfrentarão séculos de guerras e de massacres em nome
da liberdade e da iniciativa; seja para os powhantas,
que são expulsos de sua aldeia pelos brancos; seja para
John Rolfe, que presencia a morte da esposa; seja para
John Smith, que sonha tanto com as Índias que não percebe
tê-las ultrapassado; seja para o índio que vaga fantasmagórico
por Londres, em busca do Deus cristão; seja para Rebecca,
que precisa abdicar do passado e do primeiro amor para
lutar contra o caos, para finalmente ouvir e compreender
a grande Mãe. Para Terrence Malick, porém, vida é resistência,
tal qual a árvore que, encerrando o filme, suporta todos
os golpes para crescer em direção à luz.
O próximo filme de Terrence Malick se intitula The
Tree of Life, com previsão de lançamento para 2008.
Não estaria a semente da árvore da vida já devidamente
plantada em O Novo Mundo?
Paulo Ricardo de Almeida
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