Antes
mesmo de qualquer crédito inicial, como se fosse mais
um dos muitos trailers, vemos a diretora Carla Camurati
entre os atores Marco Nanini e Ney Latorraca. Não sabemos
ao certo onde estão, eles surgem ali do nada, a princípio
meio sem propósito. A diretora se apresenta e apresenta
também os dois atores e em seguida ensaia com eles os
agradecimentos aos patrocinadores do filme. Aos poucos,
eles vão um a um agradecendo alguns dos maiores investidores
da obra. Mas as palavras não saem fácil da boca de Nanini
ou de Ney Latorraca, e ainda que ambos se saiam muito
bem, levando com humor a situação, fica claro que por
trás daquela brincadeira está em jogo uma séria questão
a respeito da “indústria” cinematográfica brasileira.
No meio dos muitos nomes citados, entre empresas públicas
e privadas, em nenhum momento vem à tona as leis de
incentivo, que propiciam o abatimento em impostos, revertendo
o dinheiro para a produção de cinema. A indústria brasileira,
mesmo com apoio da iniciativa privada, não se sustenta,
e está sempre dependente de editais de fomento oferecidos
pelos órgãos públicos. É sintomático que se recorra
ao espectador, levando o nome dos investidores de maneira
direta, seguindo a risca a tradição teatral, em que
tal prática é bastante comum. Carla Camurati se aproveita
do diálogo entre cinema e teatro que está presente ao
longo do filme, e insere tal questão de maneira sutil.
Uma boa jogada, mas que mascara a dependência do cinema
junto aos órgãos públicos. Pois, nessa “indústria”,
quase todo dinheiro aplicado decorre dos tais editais.
Passados os créditos “oficiais”, a primeira seqüência
de Irma Vap – O Retorno se dá no cemitério, com
a morte de um produtor teatral. A crítica à dificuldade
de produção agora é feita de maneira mais direta, e
os personagens, bastidores do teatro, comentam sobre
a dificuldade em ganhar dinheiro com essa arte. É evidente
que, após a introdução de Carla Camurati, qualquer associação
com o cinema pode ser feita, e podemos estender essa
dificuldade do teatro para ele. Ainda neste clima fúnebre,
começam algumas especulações sobre um ressurgimento
do teatro, a partir da remontagem de um grande sucesso
do passado, O Mistério de Irma Vap. Mérito de
Carla Camurati que, menos preocupada em levar uma adaptação
da peça para as telas, criou uma nova trama, uma história
independente, em que se aproveita de maneira honesta
do sucesso obtido pela montagem teatral. Assim, a diretora
cria um diálogo entre teatro e cinema, trazendo para
as telas algumas das características do primeiro.
Em determinado momento, referindo-se a Irma Vap,
Darci (um dos muitos personagens de Ney Latorraca) comunica:
“É uma mistura de terror e comédia – um terrir”. E assim
nos insere neste universo que transita entre o assombroso
e o obscuro, tratados com escracho e humor. As opções
de Carla Camurati são bastante inteligentes. Traz para
a tela, num ótimo trabalho de som, algumas das características
do cinema e do teatro burlesco, criando uma interação
com a imagem. A valorização de cada barulho, que se
distancia de qualquer realismo, imprime um tom cômico.
O mesmo non-sense predomina nos demais elementos
do filme, que sempre se aproximam do teatro: as interpretações
supervalorizadas, o cenário que funciona muito mais
como alegoria do que como simulação da realidade, as
maquiagens e figurinos extremamente exagerados, e o
próprio fato de papéis femininos serem interpretados
por homens. Ao mesmo tempo em que dialoga com o teatro,
se aproxima com o cinema de gênero – o já citado “terrir”.
Mas apesar de algumas escolhas acertadas, o filme peca
em sua questão principal: não é engraçado. O texto não
ajuda, as tiradas são bastante desinteressantes, não
há qualquer tentativa de ironia, duplas interpretações,
ou mesmo certa inteligência. O que há é um texto qualquer,
que colocado na boca de grandes atores ganha corpo,
e o espectador, já predisposto a se divertir a partir
da imagem emblemática da dupla protagonista, acaba tendo
a impressão da comédia.
O aproveitamento no filme da peça O Mistério de Irma
Vap, ainda que honesto, é totalmente deslocalizado.
Algumas cenas da peça são inseridas em um considerável
intervalo de tempo, sem, no entanto, estabelecer alguma
interação com o restante do filme. Ficam perdidas, não
permitindo que adentremos na obra, deixando somente
um gostinho do que se trata, principalmente apoiado
nas interpretações. E este aproveitamento dos atores
utilizados por Carla Camurati parece também ser uma
crítica aos novos modelos vigentes. Ao longo de Irma
Vap (a peça dentro do filme), os novos atores se
mostram incapazes de trazer a intensidade e agilidade
da interpretação antes conseguida pelos grandes atores.
A substituição no universo diegético do filme, dos atores
novos e bonitinhos pelos grandes talentos, parece ser
uma crítica ao novo padrão, que valoriza mais os corpinhos
do que o talento. Pode não ter sido esta a opção da
diretora, mas o fato em si está presente no filme, e
não funciona, visto que uma nova gama de talentos se
apresenta no cenário contemporâneo.
E se Carla Camurati recorreu ao apego popular, seja
através da linguagem adotada, da temática abordada,
do gênero consagrado, ou mesmo através do compartilhamento
das dificuldades e dos problemas enfrentados pela indústria
do cinema, o filme não proporciona ao espectador momentos
de diversão, tornando-se um tanto monótono, ainda que
com apenas 80 minutos de duração. O desfecho da trama
torna-se um tanto bobo, distanciando-se do terror e
conseqüentemente do humor. Há sim uma certa dramatização
em torno dos objetivos individuais dos personagens,
que acabam humanizados, como visto no fim (nada engraçado)
de Cleide (interpretada por Marco Nanini) que canta
seu sucesso de infância, Banho de Lua, para uma
platéia inexistente. Por outro lado, o filme apresenta-se
otimista, pois soa a impressão de que o sucesso da peça,
tão desacreditada, corresponde a um suposto ressurgimento
do teatro e, por analogia, do cinema, o que infelizmente
não tem sido constatado nas salas de exibição de IrmaVap
– O Retorno. Ao contrário dos 11 anos que O Mistério
de Irma Vap permaneceu em cartaz, o filme deve durar
pouquíssimas semanas.
Raphael Mesquita
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