Quando
realizou Paris, Texas, Wim Wenders acreditava
que o cinema havia se tornado uma atividade difícil.
Toda beleza possível nasceria de um sofrimento – o sofrimento
de fazer cinema em meio à sua morte. Nick’s Movie,
O Estado das Coisas, O Amigo Americano:
o cinema deixou de ser o espaço dos mitos, virou depósito
de zumbis. O encantamento do filme se dava à revelia,
através dessa dificuldade mesmo diante das formas mais
antigas do cinema – levando o cineasta a construir o
mais complexo dispositivo somente para encenar um campo-contracampo
(o jogo de luzes e reflexos na cabine de peep show
ao final de Paris, Texas). Mas vieram os anos
90 e o cinema se reinventou sem tomar o passado como
assombração.
Wenders, contudo, não sobreviveu à sobrevivência do
cinema. Continuou apostando na desafecção de seus signos,
assim como na distância assexuada instalada entre os
homens. Ou no contrário: deslumbramento com as distâncias
encurtadas virtualmente. Wim Wenders tornou-se um filósofo
raso, além de um cineasta sem vontade de cinema. Antes
ele citava seus mestres, aludindo à história do cinema
que pesava sobre seus ombros e o fazia demorar a ir
adiante (uma vez que a perfeição da forma clássica já
fora atingida por Ray, Ford, Hawks, Walsh e a capacidade
de experimentar se exaurira com o cinema moderno). Agora
que a melancolia se transfigurou em rancor – de ex-queridinho
dos júris de festivais e dos críticos a motivo de paródia,
ele não apreciou em nada a mudança –, Wenders cita seus
próprios filmes: a meia vermelha que Sam Shepard usa
em Don’t Come Knocking já é uma citação menos
a Nicholas Ray do que a Nick’s Movie.
Um olhar para os últimos dez (talvez quinze, talvez
vinte) anos da carreira de Wenders é desanimador: o
Asas do Desejo para dummies de Tão
Longe Tão Perto, o panoptismo pueril de O Fim
da Violência, o angelismo noir de O Hotel
de Um Milhão de Dólares, a derrisória busca de uma
nova inocência da imagem sob o céu de Lisboa... O novo
filme de Wenders tem até um enredo que propõe
um retorno a Paris, Texas (roteiro também de
Sam Shepard), mas sem a poesia crepuscular que existia
em 1984. Don’t Come Knocking traz só as migalhas
de um cinema que se ressente da ausência de uma família.
Pois se o pai que Wenders adotou é Nicholas Ray, é Yasujiro
Ozu (Tokyo-ga), quais serão seus filhos? Há até
uma fraternidade possível, por exemplo, em Flores
Partidas, também uma jornada do pai em busca do
filho. Mas Wenders reconhece, menos triste e mais pateticamente,
que seu cinema não está cultivando seguidores. Don’t
Come Knocking é a constatação rancorosa da falta
de descendentes. Por isso Howard Spence (Sam Shepard)
precisa abandonar o set de filmagem de um western
à moda antiga – pastiche de uma Hollywood que nem
mais existe – partindo a cavalo pela paisagem rochosa
do oeste americano. O filme começa quando o cinema acaba
(O Estado das Coisas, ainda): a deambulação embriagada
e desmotivada é a forma de ficção que Wenders primeiro
concebe. O personagem precisa sair de um certo estado
cataléptico para voltar à vida.
Tudo se desenvolve de forma muito óbvia: um ator decadente
abandona o set de um filme chamado Phantom of the
West e visita a mãe (Eva Marie Sant) que não via
há trinta anos, retornando à sua pequena cidade movida
a álcool e luzes de cassinos. A mãe de Howard fala de
um filho que ele não conhece, que possivelmente nasceu
após seu caso com Doreen (Jessica Lange, surpreendentemente
em má atuação). Howard parte à procura dela, que lhe
mostra o filho, Earl, cantando num bar na cidadezinha
em que a narrativa se instala – dando o clima off
country do filme. No meio do caminho surge Sky (Sarah
Polley – boa atriz, mas personagem risível, quase um
alívio cômico em suas aparições sempre carregando a
urna com as cinzas da mãe recém falecida), que logo
se percebe ser uma outra filha que ele ignorou, e que
perambula pelo filme como um anjo onipresente. Para
os filhos, Howard é apenas um fantasma – e continuará
sendo, após sair algemado no final por Sutter (Tim Roth),
vilão fastidioso, agente da seguradora que o persegue
como se fosse um fugitivo de presídio, para garantir
que o contrato do filme não seja quebrado (subtrama
que reinveste toda a fragilidade do filme).
Como em outras ocasiões, Wenders quer aqui reconciliar
o mito com o homem, a paisagem monumental com a cidadezinha
prosaica, a ficção familiar com o individualismo moderno.
A memória do parente sumido não se constrói desta vez
por arquivos em super-8 ou imagens de vídeo, mas por
uma coletânea de recortes de jornal e revistas noticiando
os escândalos em que Howard se metia, que foi o que
a mãe dele guardou sem muito orgulho. A partir disso,
está preparado o terreno para um novo aprendizado pelo
erro, e para uma nova catarse pela sua admissão tardia.
O restante de Don’t Come Knocking, dilatado e
filmado com a gratuidade de uma câmera capaz de rodar
em volta de Sam Shepard do meio da tarde até o anoitecer,
parece apenas a espera indiferente pelos créditos finais.
Wenders precisa urgentemente desfibrilar o coração do
seu cinema.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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