Jane assiste a uma aula na faculdade.
Não sabemos ao certo o que ela estuda, mas vemos seu
professor discorrer sobre Fotografia. Ele projeta diferentes
slides de localidades próximas. Alguns são “retratos”
comuns e outros, fotografias “artísticas”. Pela comparação
entre eles, o professor defende que a Fotografia não
é a reprodução da realidade, mas um ato criativo. Esta
cena, aparentemente injustificada no andamento da narrativa
de Espíritos, apresenta uma colocação a ser imediatamente
articulada com a própria trama do filme: o aparecimento
de manchas nas fotografias tiradas por Thun, namorado
de Jane, constituem uma "prova" de que um
espírito está seguindo-o. A relação ontológica da fotografia
com o real é justamente o que permite que este argumento
cinematográfico seja criado. Não deixa de ser curioso,
no entanto, que tal declaração seja "plantada"
no filme, vinda da boca de um professor. A instigante
dialética entre a organização do filme como produto
audiovisual e os discursos e fatos que circulam no interior
da ficção é, assim, "oficialmente" apresentada.
Duas pessoas não tiram a mesma fotografia de um mesmo
espaço. E, sejam quais forem os parâmetros utilizados
(simples "retrato" ou trabalho de luz, cor
e enquadramento), a imagem que se obtém do ato fotográfico
é uma criação (o que também vale para o cinema). E é
exatamente aí que reside a inflexão mais interessante
de Espíritos: ainda que sejam uma criação do
fotógrafo, as fotografias derivam do real, logo, os
espíritos que nelas aparecem são dados da realidade
que se imprimem sobre a película, não obstante a vontade
de quem clica. A realidade toma de assalto o instrumento
de registro na composição da imagem. A menos que esta
apresente-se trucada, ou seja, forjada por um
ato criativo outro que o clique do obturador (o shutter
do título original). Em tempos de computação gráfica
e realidade virtual, o questionamento está instaurado:
devemos investigar as construções imagéticas que nos
chegam. Portanto, ao tomar conhecimento das "fotografias
de espíritos", Jane e Thun vão pesquisar sobre
o assunto e acabam esbarrando numa "empresa"
especializada em fotografias falsas. Indagando os responsáveis
sobre a "ética" dos seus atos, o casal escuta:
"as pessoas vêem o que querem ver. Elas não pedem
para ver espíritos? Nós as mostramos."
Os espíritos, que habitam o mundo, somente passam a
aparecer para alguém quando têm alguma coisa a acertar.
Trata-se essencialmente de uma questão de visibilidade,
portanto. E se toda a intriga de Espíritos (a
vingança de um espírito que não consegue descansar em
paz por ter morrido sofrendo, por conta de maus tratos)
é comum aos filmes do gênero, a forma como ela está
aqui apresentada surpreende, por tematizar indiretamente
a própria elaboração do filme como espetáculo audiovisual
e seus efeitos em quem assiste. A construção do suspense
está totalmente de acordo com o eixo narrativo: como
indica a fala do professor de Jane no início do filme,
não se trata exatamente da manipulação das imagens e
dos usos que se faz desta forma de representação e,
sim, da produção imagética em si, como forma de representação
que é. Assim, sendo, todos os sustos promovidos por
Espíritos derivam da visualidade. É a expectativa
de enxergar o espírito e o fato de vê-lo estampado na
tela que provocam o susto (além, obviamente, do uso
de uma trilha sonora de acordo com a tensão). Truque
do cinema, hábil construtor de realidades, que, pela
montagem, é capaz de fazer aparecer e desaparecer do
espaço-tempo de suas imagens um ator maquiado – ente
absolutamente concreto – que faz as vezes de fantasma.
Em Espíritos, o medo (para personagens e espectador)
vem do olhar sobre o real, mais do que de qualquer outra
forma de relação com o mundo. É a materialidade deste
imprimida em película (seja de fotografia still ou de
cinema) e a observação adequada do tempo (momento e
duração do clique ou do plano) que promovem o terror.
A exploração da relação entre imagem e realidade e a
hábil manipulação do tempo da visão pelos diretores,
além de compor um filme bastante assustador, traz um
interesse especial para esta produção, em meio à onda
de terror oriental. Estamos lidando com um meio propenso
ao ilusionismo e, curiosamente, um meio eleito para
fazer a apologia da reprodução da realidade e brincar
com isso (é a impressão de realidade e o saber-se enganado
toda a diversão de um filme de terror/suspense). Só
que o real (parâmetro para causar o pavor do espectador)
aqui aparece como fantasmático: o que podemos capturar
pelo uso de um instrumento aparentemente preciso não
é inequívoco. As manchas nas fotografias de Thun podem
ser entradas de luz na câmera ou efeitos de revelação.
Logo, Jane usa uma Polaroid para certificar-se que os
espíritos são dados concretos – embora eles não sejam
sempre presentes e visíveis a olho nu e por qualquer
um. No entanto, mesmo comprovando sua existência, não
é possível lidar com eles da forma como lidamos com
o restante do real: suas razões são obscuras (será preciso
desvendá-las), sua visibilidade (e forma) é flutuante
e seu deslocamento no tempo-espaço não obedece a leis
terrenas. Mas, conforme a intriga montada vai se desvelando,
o medo vai perdendo força, pois passamos a compreender
como esta entidade metafísica – o espírito de Natre
– se articula com a realidade (o mundo como o conhecemos):
não apenas ela foi real um dia, como possui uma história
e uma memória, relacionadas, precisamente, às de Thun,
personagem principal. A ficção vai perdendo os ares
de fantasia e ganhando contornos de conto moral. A elaborada
articulação entre enredo, estética e relação com o espectador
apresentada pelo filme se completa, sem que ele se torne
auto-reflexivo em momento algum.
Tatiana Monassa
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