ESPÍRITOS - A MORTE ESTÁ AO LADO
Banjong Pisanthanakun e Parkpoom Wongpoom, Shutter, Tailândia, 2004

Jane assiste a uma aula na faculdade. Não sabemos ao certo o que ela estuda, mas vemos seu professor discorrer sobre Fotografia. Ele projeta diferentes slides de localidades próximas. Alguns são “retratos” comuns e outros, fotografias “artísticas”. Pela comparação entre eles, o professor defende que a Fotografia não é a reprodução da realidade, mas um ato criativo. Esta cena, aparentemente injustificada no andamento da narrativa de Espíritos, apresenta uma colocação a ser imediatamente articulada com a própria trama do filme: o aparecimento de manchas nas fotografias tiradas por Thun, namorado de Jane, constituem uma "prova" de que um espírito está seguindo-o. A relação ontológica da fotografia com o real é justamente o que permite que este argumento cinematográfico seja criado. Não deixa de ser curioso, no entanto, que tal declaração seja "plantada" no filme, vinda da boca de um professor. A instigante dialética entre a organização do filme como produto audiovisual e os discursos e fatos que circulam no interior da ficção é, assim, "oficialmente" apresentada.

Duas pessoas não tiram a mesma fotografia de um mesmo espaço. E, sejam quais forem os parâmetros utilizados (simples "retrato" ou trabalho de luz, cor e enquadramento), a imagem que se obtém do ato fotográfico é uma criação (o que também vale para o cinema). E é exatamente aí que reside a inflexão mais interessante de Espíritos: ainda que sejam uma criação do fotógrafo, as fotografias derivam do real, logo, os espíritos que nelas aparecem são dados da realidade que se imprimem sobre a película, não obstante a vontade de quem clica. A realidade toma de assalto o instrumento de registro na composição da imagem. A menos que esta apresente-se trucada, ou seja, forjada por um ato criativo outro que o clique do obturador (o shutter do título original). Em tempos de computação gráfica e realidade virtual, o questionamento está instaurado: devemos investigar as construções imagéticas que nos chegam. Portanto, ao tomar conhecimento das "fotografias de espíritos", Jane e Thun vão pesquisar sobre o assunto e acabam esbarrando numa "empresa" especializada em fotografias falsas. Indagando os responsáveis sobre a "ética" dos seus atos, o casal escuta: "as pessoas vêem o que querem ver. Elas não pedem para ver espíritos? Nós as mostramos."

Os espíritos, que habitam o mundo, somente passam a aparecer para alguém quando têm alguma coisa a acertar. Trata-se essencialmente de uma questão de visibilidade, portanto. E se toda a intriga de Espíritos (a vingança de um espírito que não consegue descansar em paz por ter morrido sofrendo, por conta de maus tratos) é comum aos filmes do gênero, a forma como ela está aqui apresentada surpreende, por tematizar indiretamente a própria elaboração do filme como espetáculo audiovisual e seus efeitos em quem assiste. A construção do suspense está totalmente de acordo com o eixo narrativo: como indica a fala do professor de Jane no início do filme, não se trata exatamente da manipulação das imagens e dos usos que se faz desta forma de representação e, sim, da produção imagética em si, como forma de representação que é. Assim, sendo, todos os sustos promovidos por Espíritos derivam da visualidade. É a expectativa de enxergar o espírito e o fato de vê-lo estampado na tela que provocam o susto (além, obviamente, do uso de uma trilha sonora de acordo com a tensão). Truque do cinema, hábil construtor de realidades, que, pela montagem, é capaz de fazer aparecer e desaparecer do espaço-tempo de suas imagens um ator maquiado – ente absolutamente concreto – que faz as vezes de fantasma. Em Espíritos, o medo (para personagens e espectador) vem do olhar sobre o real, mais do que de qualquer outra forma de relação com o mundo. É a materialidade deste imprimida em película (seja de fotografia still ou de cinema) e a observação adequada do tempo (momento e duração do clique ou do plano) que promovem o terror.

A exploração da relação entre imagem e realidade e a hábil manipulação do tempo da visão pelos diretores, além de compor um filme bastante assustador, traz um interesse especial para esta produção, em meio à onda de terror oriental. Estamos lidando com um meio propenso ao ilusionismo e, curiosamente, um meio eleito para fazer a apologia da reprodução da realidade e brincar com isso (é a impressão de realidade e o saber-se enganado toda a diversão de um filme de terror/suspense). Só que o real (parâmetro para causar o pavor do espectador) aqui aparece como fantasmático: o que podemos capturar pelo uso de um instrumento aparentemente preciso não é inequívoco. As manchas nas fotografias de Thun podem ser entradas de luz na câmera ou efeitos de revelação. Logo, Jane usa uma Polaroid para certificar-se que os espíritos são dados concretos – embora eles não sejam sempre presentes e visíveis a olho nu e por qualquer um. No entanto, mesmo comprovando sua existência, não é possível lidar com eles da forma como lidamos com o restante do real: suas razões são obscuras (será preciso desvendá-las), sua visibilidade (e forma) é flutuante e seu deslocamento no tempo-espaço não obedece a leis terrenas. Mas, conforme a intriga montada vai se desvelando, o medo vai perdendo força, pois passamos a compreender como esta entidade metafísica – o espírito de Natre – se articula com a realidade (o mundo como o conhecemos): não apenas ela foi real um dia, como possui uma história e uma memória, relacionadas, precisamente, às de Thun, personagem principal. A ficção vai perdendo os ares de fantasia e ganhando contornos de conto moral. A elaborada articulação entre enredo, estética e relação com o espectador apresentada pelo filme se completa, sem que ele se torne auto-reflexivo em momento algum.

Tatiana Monassa