A maior qualidade do primeiro
A Era Do Gelo (2002) era a sua simplicidade,
tanto na forma quanto na narrativa. Sobre a primeira,
pode-se pensar em uma inferioridade técnica da Fox em
relação à líder de mercado e já quase veterana no ramo
da animação digital Pixar – ou até em uma carência de
um savoir-faire por parte dos animadores ainda
inexperientes do estúdio. Seja qual for a razão, embora
a opção “proposital” não pareça ser o caso aqui, o gráfico
do desenho não era cativante e nem tinha aquela mobilidade
fantástica, tanto na atuação dos personagens como na
composição realista dos cenários, já transformada em
padrão de qualidade pelos filmes de sucesso (como Toy
Story, Procurando Nemo e Monstros S.A.).
Assumindo a impossibilidade de se fazer um desenho nos
parâmetros de sua concorrente, a Fox e o diretor Chris
Wedge optaram por contar uma história simpática e engraçada,
apelando para o carisma dos personagens bem pouco explorados
e bastantes rasos, porém fiéis às características mais
explícitas que os compõe (o mamute bondoso e mal-humorado,
por exemplo, nunca ia mais longe do que isso), evitando
sentimentalismos forçados e questionamentos sobre o
caminho que a história segue. Parece claro que as qualidades
citadas se assemelham mais a defeitos, mas nunca se
deve subestimar a leveza de uma história, principalmente
quando o seu próprio meio, a animação, consegue transmitir
essa leveza com uma facilidade inigualável. Aquela trama
não vai mais longe pelo simples motivo de optar pelo
prazer raso, do riso fácil, do não-questionamento sobre
o mundo, mandando o espectador de volta para casa com
nada mais do que um breve sorriso no rosto criado pelas
piadas rápidas e inteligentes, assim como pelas situações
estilo pastelão. A própria composição das imagens do
filme nos mostra isso. O gráfico que constrói o cenário
é chapado, plano, não inspira uma continuação daquele
mundo para além da história contada e, sim, torna a
era do gelo nada mais que um imenso mundo gelado, sem
implicar nenhum diálogo com o espaço. Esse mundo é apenas
um pano de fundo pra história, do qual se aproveita
apenas a presença de animais como um mamute e um tigre
dente-de-sabre para ela se desenvolver.
Analisar o primeiro filme e ressaltar suas qualidades
é essencial para se pensar o segundo. Isso porque A
Era do Gelo 2 tem características diametralmente
opostas às do seu predecessor. A começar pela composição
gráfica: bem mais ousada, tecnicamente superior à do
primeiro, mais realista, criando uma impressão de uma
possível penetração naquele mundo. Acontece que esse
mundo não tem nada a nos mostrar, só servindo para ressaltar
o vazio que é o espaço em A Era do Gelo 2. Estranho
que essa mudança de estilo, bastante ligada à maneira,
mais complexa e ambiciosa, de se construir o filme,
afete todo o resto da obra.
È claro que não se pode chamar de fácil a tarefa de
fazer uma continuação para qualquer filme, principalmente
quando se trata de uma tentativa de repetir o sucesso
se utilizando dos mesmos personagens e da mesma ambientação,
além da esquisita, porém quase implícita obrigação de
demonstrar um avanço técnico de um filme para o outro.
Parece aceitável, e é, termos um primeiro filme deixando
a desejar no espetáculo da animação digital, todavia
é quase que proibido (e, para mim, não é) que o segundo
da série mantenha esse visual, como se o sucesso do
primeiro tivesse de alguma forma ajudado a Fox a se
firmar como uma produtora de animações digitais, tornando
óbvia a melhora de sua tecnologia de um filme para o
outro. Não se considera a possibilidade de uma opção
estilística. Mesmo que esse não seja o motivo – talvez
seja apenas a tentativa de impressionar o espectador
pelo simples espetáculo de imagem, devido à péssima
qualidade do roteiro – essa visível melhora nos gráficos
de um desenho para o outro não acrescentou nada de bom
ao filme.
Pelo contrário, além do problema já mencionado com o
novo espaço mais (mal) trabalhado, o filme parece ter
se deixado levar pela pressão de fazer sucesso e também
ficou um tom acima em quase todos os aspectos. Na tentativa
de se aprofundar nos personagens, tornou-os chatos e
com dramas sem nexo. A história paralela do mamute que
desconfia ser o último de sua espécie é tratada com
um melodrama de novela mexicana para tentar nos aproximar
dos novos integrantes do grupo. A progressão do caminho
para a salvação se limita a passagens de perigo onde
aparecem bizarros e desnecessários animais aquáticos
(qual o propósito da existência deles se a água, por
si só, já é um perigo para os animais terrestres? O
fim da era do gelo não é um antagonista grande o suficiente?).
Por fim, a maior prova de que o próprio Carlos Saldanha
não sabia para onde levar a história está nas inúmeras
aparições do esquilo perseguidor de noz no filme – são
tantas que a história dele se torna realmente uma trama
paralela – arrancando algumas risadas, mas deixando
de lado o grupo principal sempre que sua aventura está
perdendo o fôlego, o que acontece quase o tempo todo.
O que sobra de mais interessante é algo que os próprios
realizadores se complicaram na hora de trabalhar. A
raiz da história, mesmo que propositalmente não-alinhada
com o que a ciência sabe sobre aquela época, é uma brincadeira
com o evolucionismo de Darwin unido a uma história bíblica.
Sim, no filme existe um grande barco que se assemelha
à arca de Noé e salva os animais de uma catástrofe,
mas tanto ele não é feito por um homem a mando de Deus
como nem todas as espécies conseguem se salvar. Apenas
as “aptas”, as mais fortes, sobrevivem à jornada e chegam
sãs e salvas no barco, escapando das garras da evolução,
estranhamente representadas pelos animais aquáticos,
que na escala da evolução são os predecessores dos terrestres.
Seria o fim da era do gelo uma involução? Em uma época
em que o tema do aquecimento global é de nítida importância
para a “sobrevivência” da nossa espécie, não seria loucura
ver o filme mais como um aviso da nossa alarmante involução
diante do mundo do que apenas portador de uma história
confusa e sem embasamento. Ou seria?
Bernardo Barcellos
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