Brasília,
sonho e pesadelo
Já se
falou com razão da importância da atmosfera brasiliense
na constituição de personagens e situações de Brasília
18%. Há, no entanto, algo que vale a pena apontar
para que não se perca o filme em uma má compreensão:
é preciso seguir a lógica onírica que rege esse universo,
ou pouco do que se narra manterá sua força. Sob esse
aspecto, não são pequenas as semelhanças que unem o
filme de Nelson Pereira a Mulholland Drive. – Cidade
Dos Sonhos, de David Lynch, que a seu modo era também
o retrato da atmosfera de uma cidade pela ótica do sonho
medonho de uma protagonista que não sabe diferir delírio
de realidade. Isso ocorre não apenas por causa dos delírios
evidentes de Olavo Bilac, seu protagonista - acredito
que seja mais do que isso: toda a lógica do enredo se
constitui como pesadelo.
Como se sabe, Brasília pretendia ser a concretização
do sonho do racionalismo moderno – uma cidade perfeita,
planejada inteiramente pela razão humana. A distância
entre esse sonho iluminista e o pesadelo de um universo
paralelo em que vive o Poder Central rege a lógica de
Brasília 18% - seja em seus momentos de realismo
detalhista (com diálogos e gestos em tom cotidiano),
nas situações dramáticas (como nas inúmeras cenas dentro
dos carros) ou nas representações aludindo a personagens
reais.
Se, no entanto,
a cidade de Brasília dá o tom do filme, com sua atmosfera
de pesadelo seco, ela não é a figura central, e sim
o fundo que lhe dá forma. Empobrece enormemente o filme
observar Brasília 18% como um olhar direto sobre
“a corrupção em Brasília”, como se fosse um mero
compêndio de vilanias – Brasília 18% não é apenas
sobre Brasília (o fundo), mas sobre a relação de seu
protagonista Olavo Bilac com esse universo. Não tenho
dúvida de que,
se o espectador enxergar em Bilac apenas um guia por
esse mundo podre e esperar dele os gestos heróicos que
irão lhe vingar, o filme será a história de uma decepção.
Tanto melhor que seja assim, mesmo que a opção venha
a desagradar quem espera do filme o que ele não entrega
– para compreender Brasília 18% é preciso compreender
o papel de Bilac, ao invés de esperar que lhe caiba
o figurino de herói romântico, assim como é preciso
compreender a crônica surreal de um ambiente sem pretender
que esta crônica seja a narrativa esclarecedora daquele
universo. Sendo aparentemente um filme de
mistério, Brasília 18% ao final revela ser
antes um filme sobre mistérios, sem soluções,
certezas ou fatos comprovados a apresentar. Nesta crônica
surreal há somente versões, suspeitas, ameaças e fracasso
cívico. Filme de mistério que não revela ao final os
enigmas da trama, Brasília 18% sugere vilões
(como o Silvio Romero interpretado por um impressionante
Carlos Vereza) e desmistifica seus heróis – como é o
caso tanto de Bilac quanto do cineasta Augusto dos Anjos.
Este, por exemplo, se ao final faz o discurso contundente
e amargo que é a tônica dominante do filme, já nos foi
apresentado como um omisso na hora da agonia de Eugênia
Câmara (afinal, segundo os relatos, ele não teria agido
na hora do presumível estupro) e como um arrivista,
antes de ser um artista (pois teria gastado altas verbas
sem apresentar as obras prontas) – vale lembrar também
que Augusto dos Anjos só denuncia os esquemas de corrupção
após ser acusado de assassinato. O filme não dá ao seu
discurso final, a rigor, maior sinceridade do que ao
discurso hipócrita de Silvio Romero – mas isto, no entanto,
não elimina a força desta sua fala, ao contrário.
“Minha terra tem dinheiro/ Onde canta o dinheirô”
soa como o lamento amargo do filme em meio a toda a
pantomima que se apresenta.
De herói
a cúmplice
Tampouco se mostra
consistente o heroísmo do protagonista. Diante de Brasília,
Olavo Bilac tem sentimentos comuns a muitos de nós,
espectadores: ele se sente fora de tudo aquilo, não
tem nenhuma responsabilidade diante do que vê, como
alguém que visita um zoológico de horrores – culpados,
se houver, são os outros. Ao longo da trama, Bilac entra
em contato com os mundos superficiais e com os mundos
ocultos da cidade – e, mesmo que nunca possa diferenciar
os fatos dos boatos, ele permanece absolutamente convicto
de que não está misturado ao que vê. É muito fácil achar
que não se tem nada a ver com a sujeira existente na
atmosfera seca brasiliense, e Bilac mais de uma vez
diz que seu trabalho “não é político” (como as suas
crenças).
Mas Olavo Bilac fracassa, se acovarda – e, a partir
de uma ameaça frágil (é evidente o tom ridículo das
“fotos que aparecerão no jornal”), ele acaba assumindo
o papel de cúmplice que a todo instante tentaram lhe
impor; ainda assim, sente-se vítima quando deixa de
fazer parte do teatro, após cumprir seu papel e assinar
o que lhe cabia. No entanto, o fato é que sua indignação
silenciosa não serve para nada.
O filme expõe a
desistência covarde de Bilac.
Cabe ao espectador compreendê-la ou compactuar com ela.
Brasília 18%, assim, parece dizer que desistir
diante de Brasília é uma solução fácil, mas é uma solução
cúmplice e covarde. Bilac chega e parte de avião, mas
entre sua chegada e sua saída descobrimos o quanto ele,
com seu temperamento instável, toma parte naquele mundo
– Bilac acha que está fora das estruturas de poder,
mas na verdade a sua omissão é parte integral da base
dessa estrutura. Em meio à sua incerteza em definir
o que é delírio e o que é realidade, sua integridade
vacila. Apesar de supor versões e perversões, Bilac
se torna cúmplice e foge daquela realidade. Ou seria
Brasília um pesadelo, como tudo mais?
Se mostra sua fraqueza e omissão, no entanto
o filme não o julga, não se afasta dele.
Em seu final farsesco, quase chanchadesco, Brasília
18% parece perceber como é difícil
enfrentar o choque entre o real e o imaginário,
entre a realidade e os sonhos. O filme não aponta
vileza em seu protagonista - apenas fragilidade.
Brasília
100%
O filme conseguiu
um feito incomum: a grandeza e a integridade de Brasília
18% são inversamente proporcionais às do universo
retratado.
Conseguiu
isso do seu modo:
- bem-humorado e
amargo;
- sendo ao mesmo
tempo a narração de um pesadelo de um personagem em
confronto com a realidade racional e um filme de mistério
que não se decifra;
- com seus personagens
de nomes bem conhecidos (poderiam ser políticos, mas
calham de ser escritores);
- com uma fotografia
criada sem medo do escuro (coisa rara atualmente), apresentando
personagens em meio à penumbra visual e moral do lugar;
- fazendo, ao mesmo
tempo, uma profissão de fé na importância do cinema
buscar a realidade (a partir do uso despudorado de regras
narrativas clássicas – o filme de gênero de mistério)
e, ao mesmo tempo, um alerta à impossibilidade desse
objetivo (como a trama nos mostra, a partir dos seus
paralelos com o nosso mundo e suas versões não-confirmadas);
- trazendo à tona
esse mundo de boatos e versões sujas que é a política
dos eleitos;
- vindo mais para
confundir do que para explicar;
- mostrando com
uma emoção notável os movimentos e os corpos, com beleza
incomum no olhar (no cinema recente, talvez apenas Madame
Satã seja comparável);
- descobrindo o
ambiente tipicamente brasiliense dos interiores de carros
e escritórios;
- a partir do seu
modo de olhar experiente, tranqüilo, sem firulas (qualidade
dos mestres, como acontece em Um Filme Falado,
de Manoel de Oliveira);
- a partir das atuações
irretocáveis do elenco (vale ressaltar o brilho de Ricelli
e sobretudo do já citado Vereza),
é
assim que o filme mais recente de Nelson Pereira dos
Santos se mostra raro, impressionante.
Daniel Caetano
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