BRASÍLIA 18%
Nelson Pereira dos Santos, Brasil, 2006
 
Brasília, sonho e pesadelo

Já se falou com razão da importância da atmosfera brasiliense na constituição de personagens e situações de Brasília 18%. Há, no entanto, algo que vale a pena apontar para que não se perca o filme em uma má compreensão: é preciso seguir a lógica onírica que rege esse universo, ou pouco do que se narra manterá sua força. Sob esse aspecto, não são pequenas as semelhanças que unem o filme de Nelson Pereira a Mulholland Drive. – Cidade Dos Sonhos, de David Lynch, que a seu modo era também o retrato da atmosfera de uma cidade pela ótica do sonho medonho de uma protagonista que não sabe diferir delírio de realidade. Isso ocorre não apenas por causa dos delírios evidentes de Olavo Bilac, seu protagonista - acredito que seja mais do que isso: toda a lógica do enredo se constitui como pesadelo.

Como se sabe, Brasília pretendia ser a concretização do sonho do racionalismo moderno – uma cidade perfeita, planejada inteiramente pela razão humana. A distância entre esse sonho iluminista e o pesadelo de um universo paralelo em que vive o Poder Central rege a lógica de Brasília 18% - seja em seus momentos de realismo detalhista (com diálogos e gestos em tom cotidiano), nas situações dramáticas (como nas inúmeras cenas dentro dos carros) ou nas representações aludindo a personagens reais.


Se, no entanto, a cidade de Brasília dá o tom do filme, com sua atmosfera de pesadelo seco, ela não é a figura central, e sim o fundo que lhe dá forma. Empobrece enormemente o filme observar Brasília 18% como um olhar direto sobre “a corrupção em Brasília”, como se fosse um mero compêndio de vilanias – Brasília 18% não é apenas sobre Brasília (o fundo), mas sobre a relação de seu protagonista Olavo Bilac com esse universo. Não tenho dúvida  de que, se o espectador enxergar em Bilac apenas um guia por esse mundo podre e esperar dele os gestos heróicos que irão lhe vingar, o filme será a história de uma decepção.

Tanto melhor que seja assim, mesmo que a opção venha a desagradar quem espera do filme o que ele não entrega – para compreender Brasília 18% é preciso compreender o papel de Bilac, ao invés de esperar que lhe caiba o figurino de herói romântico, assim como é preciso compreender a crônica surreal de um ambiente sem pretender que esta crônica seja a narrativa esclarecedora daquele universo. Sendo aparentemente um filme de mistério, Brasília 18% ao final revela ser antes um filme sobre mistérios, sem soluções, certezas ou fatos comprovados a apresentar. Nesta crônica surreal há somente versões, suspeitas, ameaças e fracasso cívico. Filme de mistério que não revela ao final os enigmas da trama, Brasília 18% sugere vilões (como o Silvio Romero interpretado por um impressionante Carlos Vereza) e desmistifica seus heróis – como é o caso tanto de Bilac quanto do cineasta Augusto dos Anjos. Este, por exemplo, se ao final faz o discurso contundente e amargo que é a tônica dominante do filme, já nos foi apresentado como um omisso na hora da agonia de Eugênia Câmara (afinal, segundo os relatos, ele não teria agido na hora do presumível estupro) e como um arrivista, antes de ser um artista (pois teria gastado altas verbas sem apresentar as obras prontas) – vale lembrar também que Augusto dos Anjos só denuncia os esquemas de corrupção após ser acusado de assassinato. O filme não dá ao seu discurso final, a rigor, maior sinceridade do que ao discurso hipócrita de Silvio Romero – mas isto, no entanto, não elimina a força desta sua fala, ao contrário.

Minha terra tem dinheiro/ Onde canta o dinheirô” soa como o lamento amargo do filme em meio a toda a pantomima que se apresenta.


De herói a cúmplice

Tampouco se mostra consistente o heroísmo do protagonista. Diante de Brasília, Olavo Bilac tem sentimentos comuns a muitos de nós, espectadores: ele se sente fora de tudo aquilo, não tem nenhuma responsabilidade diante do que vê, como alguém que visita um zoológico de horrores – culpados, se houver, são os outros. Ao longo da trama, Bilac entra em contato com os mundos superficiais e com os mundos ocultos da cidade – e, mesmo que nunca possa diferenciar os fatos dos boatos, ele permanece absolutamente convicto de que não está misturado ao que vê. É muito fácil achar que não se tem nada a ver com a sujeira existente na atmosfera seca brasiliense, e Bilac mais de uma vez diz que seu trabalho “não é político” (como as suas crenças).

Mas Olavo Bilac fracassa, se acovarda – e, a partir de uma ameaça frágil (é evidente o tom ridículo das “fotos que aparecerão no jornal”), ele acaba assumindo o papel de cúmplice que a todo instante tentaram lhe impor; ainda assim, sente-se vítima quando deixa de fazer parte do teatro, após cumprir seu papel e assinar o que lhe cabia. No entanto, o fato é que sua indignação silenciosa não serve para nada.

O filme expõe a desistência covarde de Bilac.
Cabe ao espectador compreendê-la ou compactuar com ela.

Brasília 18%
, assim, parece dizer que desistir diante de Brasília é uma solução fácil, mas é uma solução cúmplice e covarde. Bilac chega e parte de avião, mas entre sua chegada e sua saída descobrimos o quanto ele, com seu temperamento instável, toma parte naquele mundo – Bilac acha que está fora das estruturas de poder, mas na verdade a sua omissão é parte integral da base dessa estrutura. Em meio à sua incerteza em definir o que é delírio e o que é realidade, sua integridade vacila. Apesar de supor versões e perversões, Bilac se torna cúmplice e foge daquela realidade. Ou seria Brasília um pesadelo, como tudo mais?

Se mostra sua fraqueza e omissão, no entanto o filme não o julga, não se afasta dele. Em seu final farsesco, quase chanchadesco, Brasília 18% parece perceber como é difícil enfrentar o choque entre o real e o imaginário, entre a realidade e os sonhos. O filme não aponta vileza em seu protagonista - apenas fragilidade.


Brasília 100%

O filme conseguiu um feito incomum: a grandeza e a integridade de Brasília 18% são inversamente proporcionais às do universo retratado.

Conseguiu isso do seu modo:
- bem-humorado e amargo;
- sendo ao mesmo tempo a narração de um pesadelo de um personagem em confronto com a realidade racional e um filme de mistério que não se decifra;
- com seus personagens de nomes bem conhecidos (poderiam ser políticos, mas calham de ser escritores);
- com uma fotografia criada sem medo do escuro (coisa rara atualmente), apresentando personagens em meio à penumbra visual e moral do lugar;
- fazendo, ao mesmo tempo, uma profissão de fé na importância do cinema buscar a realidade (a partir do uso despudorado de regras narrativas clássicas – o filme de gênero de mistério) e, ao mesmo tempo, um alerta à impossibilidade desse objetivo (como a trama nos mostra, a partir dos seus paralelos com o nosso mundo e suas versões não-confirmadas);
- trazendo à tona esse mundo de boatos e versões sujas que é a política dos eleitos;
- vindo mais para confundir do que para explicar;
- mostrando com uma emoção notável os movimentos e os corpos, com beleza incomum no olhar (no cinema recente, talvez apenas Madame Satã seja comparável);
- descobrindo o ambiente tipicamente brasiliense dos interiores de carros e escritórios;
- a partir do seu modo de olhar experiente, tranqüilo, sem firulas (qualidade dos mestres, como acontece em Um Filme Falado, de Manoel de Oliveira);
- a partir das atuações irretocáveis do elenco (vale ressaltar o brilho de Ricelli e sobretudo do já citado Vereza),

é assim que o filme mais recente de Nelson Pereira dos Santos se mostra raro, impressionante.

Daniel Caetano