ÁRIDO MOVIE
Lírio Ferreira, Brasil, 2005

Talvez devêssemos fingir que não conhecemos nada do que foi feito de relevante no cinema brasileiro das últimas cinco décadas; por um instante, pelo menos, ignorar as discussões em torno da representação do Nordeste na arte, de Euclides da Cunha para cá, tudo o que já foi levantado, defendido e abandonado sobre esse assunto. Maior esforço deste duplo exercício de amnésia voluntária: talvez a própria construção da imagem do Nordeste no cinema precisasse ser momentaneamente esquecida, justo ela, a mola propulsora de toda uma geração de filmes que tinha nessa região do país uma reserva estética e moral quase infinita – e já que deixamos tudo isso de lado, coloquemos também na mesma bacia da falta de memória tudo aquilo que se estabeleceu enquanto desenvolvimento de uma linguagem, de uma dramaturgia vertida em encenação para a câmera, da articulação ficcional de uma história que nasce por si ao mesmo tempo que dialoga com o mundo de outras histórias contadas antes e depois dela; enfim, deixemos de lado esse conceito impreciso, quase fictício, esse conceito, no entanto, ainda muito válido de “cinema brasileiro”. Assim seria possível dividir com Árido Movie alguma parte de sua vibração frenética, amalucada, o não-me-interessa que o filme diz para tudo o que está em volta dele (e que eventualmente migra para seu próprio interior). Há uma patologia no filme, que passa longe dessa “loucura” alardeada – é como se ele tivesse saído diretamente da cabeça do Dr. Amnésio de O Signo do Caos, e a única resposta possível seria acompanharmos o filme em seu abismo de lembranças perdidas. Mas não. Árido Movie, já na seqüência de créditos iniciais, mostra imagens aéreas de uma praia, com uma música de fundo que diz que “o sertão vai virar mar, e o mar vai virar sertão”. Lírio Ferreira e seu filme sabem muito bem com o que estão lidando e, citando esse quase-bordão, agrupam em torno de si toda a carga que mencionamos no começo. Se ignoram tudo isso, é por uma escolha consciente – e o pior cego (mas também o pior filme) é aquele que não quer enxergar.

A começar por seu protagonista. Num estúdio de tevê, objetos nítidos em primeiríssimo plano deixam Jonas esquecido no fundo do quadro, totalmente fora de foco. Esta primeira (não-)impressão talvez devesse instalar um ruído em sua construção: ali está a razão do olhar do filme, aquele cuja trajetória acompanharemos, e que, no entanto, existe apenas como uma massa desfocada, impossível de se distinguir, pronta para sofrer e se beneficiar de toda sorte de influências que a estrada de retorno à origem possa oferecer. Contribui para essa idéia inicial a profissão incomum de Jonas, um homem do tempo, prevendo sol e chuva sobre o mapa virtual de um telejornal qualquer. Supostamente resolvido por estas duas metáforas prontas, o protagonista é deixado à própria sorte, e se quiser chamar atenção para si em algum momento, que exiba truques atraentes para a câmera – poucas vezes se viu um personagem central servir tão claramente de mera desculpa para que um filme desvie sua atenção àquilo que realmente lhe interessa. Quando o mostra desfocado, Árido Movie não pretende nenhum tipo de significação mais completa: está ali apenas se negando a ver seu protagonista. Eis o momento-chave em que se separa o joio do trigo. Passado o furor “movimentista” que colocava os filmes da nova geração nordestina no mesmo saco, fica claro que não poderiam existir dois filmes mais diferentes que Árido Movie e Cinema, Aspirinas e Urubus. Se com Marcelo Gomes tudo o que existia ou que pudesse vir a brotar de seu filme era fruto direto das vontades de Johann e Ranulpho, se estes dois, mais que personagens, eram quase co-autores daquela narrativa, Lírio Ferreira seguirá seu riscado à revelia de Jonas. Entre um e outro está a disposição em ver na relação entre retratista e retratado a possibilidade de uma parceria, o primeiro que cria condições narrativas para que o outro existe em toda sua riqueza e complexidade. Ao abandonado Jonas resta, lá pelo fim do filme, tomar um chá entorpecente para, num ato de rebeldia típica dos filhos rejeitados, chamar um pouco a atenção de Árido Movie para aquele que parecia ser o motivo de sua existência. Ledo engano. As drogas podem até servir para emprestar algumas imagens alucinadas, ou mesmo como alívio cômico dentro da trama pesada de assassinato, coronelismo, seca, miséria. Mas que este alívio, no entanto, não se confunda com subversão libertina: aos que abusam (a trinca de amigos de Jonas que vai ao sertão atrás de um oásis de maconha), está reservada a punição severa da batida policial em uma estrada qualquer. A sorte de Árido Movie é que o cinema, muito mais generoso, não se preocupa em punir nem personagens entorpecidos nem filmes de ressaca.

É a idéia da ressaca que melhor explica a relação que Árido Movie estabelece com toda a cinematografia ligada ao bordão do sertão-mar que faz surgir logo em seus créditos. O trajeto de Jonas e Soledad, a videomaker com quem o protagonista se envolve durante a viagem, tem muito daquele um dia percorrido pelo Gaúcho de Os Fuzis ou por Antonio das Mortes. Um personagem exterior ao ambiente sertanejo (quase sempre urbano), que é obrigado a se interiorizar, inicialmente apenas por motivos pessoais, mas que o atraso e a miséria econômica e moral do Nordeste profundo forçam a tomar partido daquela situação, e assumir para si a tarefa de iluminação que as trevas do povo local são incapazes de promover. Esse traço distintivo entre a consciência plena de capacidade reativa do “estrangeiro” e a pasmaceira ignorante intrínseca ao nordestino talvez seja o grande equívoco desse primeiro Cinema Novo, o único ponto em que o envelhecimento desses filmes fica óbvio. Mas se eles ainda sobrevivem como as obras-primas que são, isso se dá não somente pelo deslumbramento que o trabalho de linguagem isolado provoca. Mesmo essas teorias falíveis e um tanto preconceituosas ainda se arranjam dentro dos filmes de maneira poderosa, porque se não são mais tomadas como verdades gerais, pelo menos existem no interior das narrativas como as verdades particulares de cada uma dessas histórias, uma crença que, mesmo abandonada, ainda se justifica dentro de si.

Em Árido Movie, Jonas e Soledad dividem essa tarefa de reforma/atualização das estrutura arcaicas nordestinas. Ao homem do tempo cabe questionar o banditismo automático, que transforma todo filho de um assassinado no futuro assassino no algoz de seu pai – está em jogo também a sucessão na máfia B que é o coronelismo retardado ainda existente por aquelas bandas. A videomaker fica com a cota do misticismo, quer registrar um profeta da seca (sim, mais um) que diz tornar a água milagrosa. Que o filme de Lírio Ferreira parta do mesmo diagnóstico feito pelo cinema de quarenta anos atrás não é um problema a priori. Desde aquela época a idéia de um Nordeste unívoco já foi descartada, e tudo o que se diz dele é tão somente a construção específica que se pretende a partir desse recorte regional: faça-se da ficção aquilo que a ficção precisar que seja feito. Essa possibilidade de todos os Nordestes chega à Árido Movie como Nordeste nenhum. Espaço híbrido e esquizofrênico em que convivem um Antônio Conselheiro de barbas brancas com um índio apache ao mesmo tempo borracheiro e mentor espiritual, num sertão filmado com a vontade de ser um Monument Valley sem alma, Árido Movie usa a loucura como artifício para justificar as incoerências, mas se esquece que mesmo os loucos têm seu sistema próprio (e para eles muito coerente) de verdades. Por mais retrógrado e anacrônico que seja atribuir as velhas pechas da cegueira pelo crime e pela religiosidade, o mínimo que se espera de um filme é que acredite nelas (mesmo que seja para negá-las mais adiante). Árido Movie não acredita em nenhuma de suas próprias imagens. Como denuncia a iluminação de loja de perfumes que Murilo Salles forja no santuário do profeta Zé Celso Martinez Corrêa, um filme de boutique – ou melhor, de galeria de arte alternativa paulistana, diminuído e ridicularizado ao ponto do consumo fácil e bacana da gente experta e descolada. Fomos dormir embriagados pelo porre homérico que vai de Os Fuzis até Cinema, Aspirinas e Urubus, e no dia seguinte acordamos com a dor de cabeça chamada Árido Movie.


Rodrigo de Oliveira