Talvez
devêssemos fingir que não conhecemos nada do que foi
feito de relevante no cinema brasileiro das últimas
cinco décadas; por um instante, pelo menos, ignorar
as discussões em torno da representação do Nordeste
na arte, de Euclides da Cunha para cá, tudo o que já
foi levantado, defendido e abandonado sobre esse assunto.
Maior esforço deste duplo exercício de amnésia voluntária:
talvez a própria construção da imagem do Nordeste no
cinema precisasse ser momentaneamente esquecida, justo
ela, a mola propulsora de toda uma geração de filmes
que tinha nessa região do país uma reserva estética
e moral quase infinita – e já que deixamos tudo isso
de lado, coloquemos também na mesma bacia da falta de
memória tudo aquilo que se estabeleceu enquanto desenvolvimento
de uma linguagem, de uma dramaturgia vertida em encenação
para a câmera, da articulação ficcional de uma história
que nasce por si ao mesmo tempo que dialoga com o mundo
de outras histórias contadas antes e depois dela; enfim,
deixemos de lado esse conceito impreciso, quase fictício,
esse conceito, no entanto, ainda muito válido de “cinema
brasileiro”. Assim seria possível dividir com Árido
Movie alguma parte de sua vibração frenética, amalucada,
o não-me-interessa que o filme diz para tudo o que está
em volta dele (e que eventualmente migra para seu próprio
interior). Há uma patologia no filme, que passa longe
dessa “loucura” alardeada – é como se ele tivesse saído
diretamente da cabeça do Dr. Amnésio de O Signo do
Caos, e a única resposta possível seria acompanharmos
o filme em seu abismo de lembranças perdidas. Mas não.
Árido Movie, já na seqüência de créditos iniciais,
mostra imagens aéreas de uma praia, com uma música de
fundo que diz que “o sertão vai virar mar, e o mar vai
virar sertão”. Lírio Ferreira e seu filme sabem muito
bem com o que estão lidando e, citando esse quase-bordão,
agrupam em torno de si toda a carga que mencionamos
no começo. Se ignoram tudo isso, é por uma escolha consciente
– e o pior cego (mas também o pior filme) é aquele que
não quer enxergar.
A começar por seu protagonista. Num estúdio de tevê,
objetos nítidos em primeiríssimo plano deixam Jonas
esquecido no fundo do quadro, totalmente fora de foco.
Esta primeira (não-)impressão talvez devesse instalar
um ruído em sua construção: ali está a razão do olhar
do filme, aquele cuja trajetória acompanharemos, e que,
no entanto, existe apenas como uma massa desfocada,
impossível de se distinguir, pronta para sofrer e se
beneficiar de toda sorte de influências que a estrada
de retorno à origem possa oferecer. Contribui para essa
idéia inicial a profissão incomum de Jonas, um homem
do tempo, prevendo sol e chuva sobre o mapa virtual
de um telejornal qualquer. Supostamente resolvido por
estas duas metáforas prontas, o protagonista é deixado
à própria sorte, e se quiser chamar atenção para si
em algum momento, que exiba truques atraentes para a
câmera – poucas vezes se viu um personagem central servir
tão claramente de mera desculpa para que um filme desvie
sua atenção àquilo que realmente lhe interessa. Quando
o mostra desfocado, Árido Movie não pretende
nenhum tipo de significação mais completa: está ali
apenas se negando a ver seu protagonista. Eis o momento-chave
em que se separa o joio do trigo. Passado o furor “movimentista”
que colocava os filmes da nova geração nordestina no
mesmo saco, fica claro que não poderiam existir dois
filmes mais diferentes que Árido Movie e Cinema,
Aspirinas e Urubus. Se com Marcelo Gomes tudo o
que existia ou que pudesse vir a brotar de seu filme
era fruto direto das vontades de Johann e Ranulpho,
se estes dois, mais que personagens, eram quase co-autores
daquela narrativa, Lírio Ferreira seguirá seu riscado
à revelia de Jonas. Entre um e outro está a disposição
em ver na relação entre retratista e retratado a possibilidade
de uma parceria, o primeiro que cria condições narrativas
para que o outro existe em toda sua riqueza e complexidade.
Ao abandonado Jonas resta, lá pelo fim do filme, tomar
um chá entorpecente para, num ato de rebeldia típica
dos filhos rejeitados, chamar um pouco a atenção de
Árido Movie para aquele que parecia ser o motivo
de sua existência. Ledo engano. As drogas podem até
servir para emprestar algumas imagens alucinadas, ou
mesmo como alívio cômico dentro da trama pesada de assassinato,
coronelismo, seca, miséria. Mas que este alívio, no
entanto, não se confunda com subversão libertina: aos
que abusam (a trinca de amigos de Jonas que vai ao sertão
atrás de um oásis de maconha), está reservada a punição
severa da batida policial em uma estrada qualquer. A
sorte de Árido Movie é que o cinema, muito mais
generoso, não se preocupa em punir nem personagens entorpecidos
nem filmes de ressaca.
É a idéia da ressaca que melhor explica a relação que
Árido Movie estabelece com toda a cinematografia
ligada ao bordão do sertão-mar que faz surgir logo em
seus créditos. O trajeto de Jonas e Soledad, a videomaker
com quem o protagonista se envolve durante a viagem,
tem muito daquele um dia percorrido pelo Gaúcho de Os
Fuzis ou por Antonio das Mortes. Um personagem exterior
ao ambiente sertanejo (quase sempre urbano), que é obrigado
a se interiorizar, inicialmente apenas por motivos pessoais,
mas que o atraso e a miséria econômica e moral do Nordeste
profundo forçam a tomar partido daquela situação, e
assumir para si a tarefa de iluminação que as trevas
do povo local são incapazes de promover. Esse traço
distintivo entre a consciência plena de capacidade reativa
do “estrangeiro” e a pasmaceira ignorante intrínseca
ao nordestino talvez seja o grande equívoco desse primeiro
Cinema Novo, o único ponto em que o envelhecimento desses
filmes fica óbvio. Mas se eles ainda sobrevivem como
as obras-primas que são, isso se dá não somente pelo
deslumbramento que o trabalho de linguagem isolado provoca.
Mesmo essas teorias falíveis e um tanto preconceituosas
ainda se arranjam dentro dos filmes de maneira poderosa,
porque se não são mais tomadas como verdades gerais,
pelo menos existem no interior das narrativas como as
verdades particulares de cada uma dessas histórias,
uma crença que, mesmo abandonada, ainda se justifica
dentro de si.
Em Árido Movie, Jonas e Soledad dividem essa
tarefa de reforma/atualização das estrutura arcaicas
nordestinas. Ao homem do tempo cabe questionar o banditismo
automático, que transforma todo filho de um assassinado
no futuro assassino no algoz de seu pai – está em jogo
também a sucessão na máfia B que é o coronelismo retardado
ainda existente por aquelas bandas. A videomaker fica
com a cota do misticismo, quer registrar um profeta
da seca (sim, mais um) que diz tornar a água milagrosa.
Que o filme de Lírio Ferreira parta do mesmo diagnóstico
feito pelo cinema de quarenta anos atrás não é um problema
a priori. Desde aquela época a idéia de um Nordeste
unívoco já foi descartada, e tudo o que se diz dele
é tão somente a construção específica que se pretende
a partir desse recorte regional: faça-se da ficção aquilo
que a ficção precisar que seja feito. Essa possibilidade
de todos os Nordestes chega à Árido Movie como
Nordeste nenhum. Espaço híbrido e esquizofrênico em
que convivem um Antônio Conselheiro de barbas brancas
com um índio apache ao mesmo tempo borracheiro e mentor
espiritual, num sertão filmado com a vontade de ser
um Monument Valley sem alma, Árido Movie usa
a loucura como artifício para justificar as incoerências,
mas se esquece que mesmo os loucos têm seu sistema próprio
(e para eles muito coerente) de verdades. Por mais retrógrado
e anacrônico que seja atribuir as velhas pechas da cegueira
pelo crime e pela religiosidade, o mínimo que se espera
de um filme é que acredite nelas (mesmo que seja para
negá-las mais adiante). Árido Movie não acredita
em nenhuma de suas próprias imagens. Como denuncia a
iluminação de loja de perfumes que Murilo Salles forja
no santuário do profeta Zé Celso Martinez Corrêa, um
filme de boutique – ou melhor, de galeria de arte alternativa
paulistana, diminuído e ridicularizado ao ponto do consumo
fácil e bacana da gente experta e descolada. Fomos dormir
embriagados pelo porre homérico que vai de Os Fuzis
até Cinema, Aspirinas e Urubus, e no dia seguinte
acordamos com a dor de cabeça chamada Árido Movie.
Rodrigo de Oliveira
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