A LULA E A BALEIA
Noah Bambauch, The Squid and the Whale,
EUA, 2005

A Lula e a Baleia é um filme bonito. Curiosa economia de valores essa que prescreve a alguns filmes esse termo, tão afeito a pessoas sensíveis, senhoras freqüentadoras de bistrôs e gente de bom gosto em geral. Pois "filme bonito" representa uma série de operações para dar ao espectador um sentimento de "lição de vida", de grandeza da vida mesmo diante de toda adversidade, mas acima de tudo apresenta ao espectador um mundo que ele pode digerir com uma certa distância, não muito longe para criar um distanciamento, mas também não perto o suficiente para nos identificar com personagens desviantes. É, portanto, um ponto de vista do "bom senso", do "bem medido", utilizando ora a racionalidade, ora a emotividade para cativar o espectador. Um tal projeto, naturalmente, retira toda a acidez que poderia saltar aos olhos da lucidez racional da construção de um sistema em Stendhal ou em Balzac (ou em Renoir e Lubitsch), e tampouco a entrega sem freios aos hábitos mais anti-sociais, perversos de seus personagens, ou a suas escolhas apaixonadas, como em D. H. Lawrence ou William Burroughs (ou Sirk ou Vigo). A Lula e a Baleia poderia ser ocasião de um grande estudo de caso sobre o que seria um "filme bonito", ainda mais porque estrearam oportunamente nos últimos meses dois outros retratos de famílias disfuncionais em que certas cenas, intoleráveis, obrigam o espectador a uma tomada de posição extrema, uma identificação "imposssível". São Mistérios da Carne, de Gregg Araki, e Maldito Coração, de Asia Argento. Ambos taxados de filmes de exploração (o que, em alguma medida, até são, mas o problema principal não é esse), mas o certo é que eles vão com intimidade numa realidade de trauma infantil muito difícil de ser tratada pelo cinema.

No filme de Noah Baumbach, há também dois jovens traumatizados por uma separação pouco esperada, um adolescente e um menino descobrindo seu desejo sexual, um identificado com o pai e tomando-lhe o partido, outro identificado com a mãe e achando que ela está com a razão. A Lula e a Baleia não é só sobre esses dois meninos, mas sobre as fraquezas mui humanas de uma família que entra em estado de desagregação. A fotografia do filme, muito granulada, acresce ao filme um tom de fragilidade e de cotidiano que é adequado à trama. Mas naquilo que o filme escolhe mostrar, e na forma que ele decide mostrar, quase todo o filme resvala para um narrador em terceira pessoa que, longe da delicadeza fotográfica, decide nos instalar num lugar confortável para medir e julgar as decisões dos personagens. Mas Baumbach não é bobo, e sabe fazer um bom "filme bonito". Nele, há várias matizes de psicologia que nos fazem compreender até as fraquezas mais patentes, como plagiar uma música do Pink Floyd para ficar bem aos olhos do pai, se esfregar pelas paredes com uma aluna que poderia ser sua filha, passar a mão cheia de sêmen pelos livros da biblioteca ou dormir com o instrutor de tênis do filho. Só que Baumbach vai até certo ponto, e pára. O aparente clima de intimidade e cumplicidade que o filme ganha em certos momentos é substituído por um vago sentimento de impessoalidade que é a perfeita lógica do meio-termo.

Essa estética "no meio do caminho" não é exatamente uma novidade, muito pelo contrário. Também não é algo afrontoso, algo moral ou esteticamente espúrio. É algo que até cria momentos de verdadeira riqueza dramática. A questão é que, num filme desses, cheios de verdades parciais e decisões de personagens que são feitas em momentos de fraqueza emocional, assumir um tom moderado e bem distanciado acaba elevando o narrador – e conseqüentemente espectador – a uma situação superior em relação ao drama, impedindo qualquer adesão mais forte ou uma clareza pungente de compreensão. Os momentos mais fortes de A Lula e a Baleia não são aqueles em que há uma relação, um diálogo ou um conflito, mas aqueles em que os personagens, sobretudo os mais jovens, são confrontados às suas próprias solidões. É ali, na verdade, em que seus universos estão mais populados, só que fantasmaticamente, pela presença ausente de pai e mãe. É como filme especular e como processo de aprendizagem – ou influência direta – pai-filho que A Lula e a Baleia mais encanta, quando os meninos tentaqm se descobrir filisteus ou não, quando eles decidem tomar posições que os aproximam do pai e da mãe, ou relativizar o comportamento de ambos os pais porque possivelmente eles são tão fracos quanto os filhos – e é curioso que o filme recorra a duas situações sexuais para tanto. Em todo caso, é quando eles descobrem que precisam descobrir seus caminhos sozinhos, não mais apoiando-se no aval e no percurso dos pais. E uma descoberta dessas dificilmente vai deixar de comover.

A questão do "filme bonito", portanto, não é que ele seja incapaz de transmitir emoções ou simplesmente se atrelar a um ponto de vista óbvio do mundo – tanto que A Lula e a Baleia, como bom exemplo de um desses filmes, nos prova o contrário. É uma questão de intensidade. Por mais bonito que se apresente esse filme, ele reveste-se de uma armadura confortável para filtrar apenas parte do veneno e não ele todo, nos deixar entrar num mundo apenas pela metade, flertar com a intimidade e com a distância ao mesmo tempo, sempre quando a manutenção do ponto-de-vista confortável exige. Estamos aqui há zilhões de distância de um Eastwood ou de um Pialat, que realizam operações bem mais radicais de ponto de vista. Não é, portanto, uma questão de abjeção. É tão somente a sensação de quando se bebe um café descafeinado ou uma cerveja sem álcool: o gosto é bom, a sensação é agradável, mas de alguma forma o essencial não está lá. Uma sensação apropriada à distância com que geralmente se fala que X "é um filme bonito".

Ruy Gardnier