A
Lula e a Baleia é um filme bonito. Curiosa
economia de valores essa que prescreve a alguns filmes
esse termo, tão afeito a pessoas sensíveis,
senhoras freqüentadoras de bistrôs e gente
de bom gosto em geral. Pois "filme bonito"
representa uma série de operações
para dar ao espectador um sentimento de "lição
de vida", de grandeza da vida mesmo diante de toda
adversidade, mas acima de tudo apresenta ao espectador
um mundo que ele pode digerir com uma certa distância,
não muito longe para criar um distanciamento,
mas também não perto o suficiente para
nos identificar com personagens desviantes. É,
portanto, um ponto de vista do "bom senso",
do "bem medido", utilizando ora a racionalidade,
ora a emotividade para cativar o espectador. Um tal
projeto, naturalmente, retira toda a acidez que poderia
saltar aos olhos da lucidez racional da construção
de um sistema em Stendhal ou em Balzac (ou em Renoir
e Lubitsch), e tampouco a entrega sem freios aos hábitos
mais anti-sociais, perversos de seus personagens, ou
a suas escolhas apaixonadas, como em D. H. Lawrence
ou William Burroughs (ou Sirk ou Vigo). A Lula e
a Baleia poderia ser ocasião de um grande
estudo de caso sobre o que seria um "filme bonito",
ainda mais porque estrearam oportunamente nos últimos
meses dois outros retratos de famílias disfuncionais
em que certas cenas, intoleráveis, obrigam o
espectador a uma tomada de posição extrema,
uma identificação "imposssível".
São Mistérios da Carne, de Gregg
Araki, e Maldito Coração, de Asia
Argento. Ambos taxados de filmes de exploração
(o que, em alguma medida, até são, mas
o problema principal não é esse), mas
o certo é que eles vão com intimidade
numa realidade de trauma infantil muito difícil
de ser tratada pelo cinema.
No filme de Noah Baumbach, há também dois
jovens traumatizados por uma separação
pouco esperada, um adolescente e um menino descobrindo
seu desejo sexual, um identificado com o pai e tomando-lhe
o partido, outro identificado com a mãe e achando
que ela está com a razão. A Lula e
a Baleia não é só sobre esses
dois meninos, mas sobre as fraquezas mui humanas de
uma família que entra em estado de desagregação.
A fotografia do filme, muito granulada, acresce ao filme
um tom de fragilidade e de cotidiano que é adequado
à trama. Mas naquilo que o filme escolhe mostrar,
e na forma que ele decide mostrar, quase todo o filme
resvala para um narrador em terceira pessoa que, longe
da delicadeza fotográfica, decide nos instalar
num lugar confortável para medir e julgar as
decisões dos personagens. Mas Baumbach não
é bobo, e sabe fazer um bom "filme bonito".
Nele, há várias matizes de psicologia
que nos fazem compreender até as fraquezas mais
patentes, como plagiar uma música do Pink Floyd
para ficar bem aos olhos do pai, se esfregar pelas paredes
com uma aluna que poderia ser sua filha, passar a mão
cheia de sêmen pelos livros da biblioteca ou dormir
com o instrutor de tênis do filho. Só que
Baumbach vai até certo ponto, e pára.
O aparente clima de intimidade e cumplicidade que o
filme ganha em certos momentos é substituído
por um vago sentimento de impessoalidade que é
a perfeita lógica do meio-termo.
Essa estética "no meio do caminho"
não é exatamente uma novidade, muito pelo
contrário. Também não é
algo afrontoso, algo moral ou esteticamente espúrio.
É algo que até cria momentos de verdadeira
riqueza dramática. A questão é
que, num filme desses, cheios de verdades parciais e
decisões de personagens que são feitas
em momentos de fraqueza emocional, assumir um tom moderado
e bem distanciado acaba elevando o narrador e
conseqüentemente espectador a uma situação
superior em relação ao drama, impedindo
qualquer adesão mais forte ou uma clareza pungente
de compreensão. Os momentos mais fortes de A
Lula e a Baleia não são aqueles em
que há uma relação, um diálogo
ou um conflito, mas aqueles em que os personagens, sobretudo
os mais jovens, são confrontados às suas
próprias solidões. É ali, na verdade,
em que seus universos estão mais populados, só
que fantasmaticamente, pela presença ausente
de pai e mãe. É como filme especular e
como processo de aprendizagem ou influência
direta pai-filho que A Lula e a Baleia
mais encanta, quando os meninos tentaqm se descobrir
filisteus ou não, quando eles decidem tomar posições
que os aproximam do pai e da mãe, ou relativizar
o comportamento de ambos os pais porque possivelmente
eles são tão fracos quanto os filhos
e é curioso que o filme recorra a duas situações
sexuais para tanto. Em todo caso, é quando eles
descobrem que precisam descobrir seus caminhos sozinhos,
não mais apoiando-se no aval e no percurso dos
pais. E uma descoberta dessas dificilmente vai deixar
de comover.
A questão do "filme bonito", portanto,
não é que ele seja incapaz de transmitir
emoções ou simplesmente se atrelar a um
ponto de vista óbvio do mundo tanto que
A Lula e a Baleia, como bom exemplo de um desses
filmes, nos prova o contrário. É uma questão
de intensidade. Por mais bonito que se apresente esse
filme, ele reveste-se de uma armadura confortável
para filtrar apenas parte do veneno e não ele
todo, nos deixar entrar num mundo apenas pela metade,
flertar com a intimidade e com a distância ao
mesmo tempo, sempre quando a manutenção
do ponto-de-vista confortável exige. Estamos
aqui há zilhões de distância de
um Eastwood ou de um Pialat, que realizam operações
bem mais radicais de ponto de vista. Não é,
portanto, uma questão de abjeção.
É tão somente a sensação
de quando se bebe um café descafeinado ou uma
cerveja sem álcool: o gosto é bom, a sensação
é agradável, mas de alguma forma o essencial
não está lá. Uma sensação
apropriada à distância com que geralmente
se fala que X "é um filme bonito".
Ruy Gardnier
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