A CONCEPÇÃO
José Eduardo Belmonte, Brasil, 2006

José Eduardo Belmonte pratica um cinema assumidamente regional, o que é menos comum do que se pensa. A Concepção é um filme de Brasília, sobre Brasília. O que de cara nos leva a um interessante aspecto da abordagem do cineasta: afinal, qual é a Brasília de A Concepção? Não um espaço físico, o que em si já causa um primeiro choque. Para um filme tão obcecado com sua cidade, A Concepção é estranhamente desprovido da presença concreta dela. Não se trata simplesmente de evitar o lugar comum que veríamos num filme de turista, mas de centrar a ação entre quatro paredes e quando sair para exteriores garantir que o foco jamais esteja no espaço, e ao mesmo tempo reforçando junto ao espectador que o que ele está vendo não poderia acontecer em nenhum outro lugar. A Concepção não é um filme que se passa num lugar nenhum, mas é sim um filme que se passa num não-lugar. Só por realizar a contento esta operação de anulação/afirmação do espaço, já é preciso destacar A Concepção num patamar acima da maior parte da nossa produção recente e reconhecer que Belmonte é um dos nossos cada vez mais raros cineastas que pensa cinema.

A Brasília de A Concepção logo se afirma não como espaço geográfico, mas como conceito, uma idéia que parece pairar sobre seus personagens (daí o filme assumir seu princípio de fuga impossível, afinal pode-se fugir de uma paisagem bem mais facilmente do que de um conceito). Esta aí uma das grandes sacadas do filme de Belmonte: se o que caracteriza Brasília como projeto urbanístico/arquitetônico é sua lógica extremamente racional, logo fazer com que este espaço se dissolva numa idéia faz muito sentido. Isto casa perfeitamente também com a lógica do movimento que dá nome ao filme, onde este espaço não recebe complemento de uma ideologia da não-identidade, da dissolução do ego (e não deixa de ser curioso que a desrazão dos concepcionistas tenha raiz numa lógica quase cartesiana que se complementa perfeitamente na montagem/estrutura imposta por Belmonte). Para o cineasta, tal não-identidade só pode surgiu como principio num espaço regido por uma lógica como a de Brasília. A idéia de que o funcionalismo de Brasília seja disfuncional, de que a cidade tenha sido projetada sem levar em conta sua população é quase tão antiga quanto a própria Brasília, mas Belmonte arranja sempre boas maneiras de articulá-la formalmente.

Isto tudo encontra vazão na tensão imposta por Belmonte a suas imagens. De um lado a câmera de Belmonte parece embriagada por todo e qualquer elemento concreto que filma, revelando um interesse enorme num cinema físico e direto (o cineasta é especialmente feliz e evocativo quando capta seus atores em primeiro plano); por outro lado a excelente montagem de Belmonte e Paulo Sacramento, aliada à opção de captar o filme nos mais variados formatos, termina por desenraizá-lo desta mesma matriz física que parece fascinar o cineasta e jogá-lo de volta neste campo do não-lugar/não-identidade em que seus personagens parecem presos (visto por este ângulo mais formalista, o ato final é mais libertário do que alguns críticos querem ver). A missão formal de Belmonte parece ser dar espaço para que cada plano respire vida dentro de uma estrutura agonizante. O filme está nos seus momentos mais fortes justamente quando maximiza as tensões presentes nesta abordagem (e tende a fazer água quando um dos dois registros domina por demais o outro).

Em método, A Concepção está bem distante de ser Os Idiotas revisto pelo Oficina, que muitos viram, e se filia de forma bem mais próxima – embora com objetivos diferentes – do cinema de Arnaud Desplechin. Assim como o cineasta francês, Belmonte é fascinado por performance, ao mesmo tempo em que é incapaz de simplesmente deixar seus atores trabalharem por si mesmos (algo como o que aconteceria se os filmes de John Cassavetes tornassem explícito o extenso trabalho na moviola do cineasta). Se é verdade que Milhem Cortaz é o único ator à disposição do cineasta completamente à vontade com o formato, deve-se dizer que o próprio José Eduardo Belmonte o domina com bastante talento e vigor. Pode-se gostar ou não de A Concepção, mas é inegável que trata-se de um alento no cinema brasileiro recente.

Filipe Furtado