José Eduardo Belmonte pratica
um cinema assumidamente regional, o que é menos comum
do que se pensa. A Concepção é um filme de Brasília,
sobre Brasília. O que de cara nos leva a um interessante
aspecto da abordagem do cineasta: afinal, qual é a Brasília
de A Concepção? Não um espaço físico, o que em
si já causa um primeiro choque. Para um filme tão obcecado
com sua cidade, A Concepção é estranhamente desprovido
da presença concreta dela. Não se trata simplesmente
de evitar o lugar comum que veríamos num filme de turista,
mas de centrar a ação entre quatro paredes e quando
sair para exteriores garantir que o foco jamais esteja
no espaço, e ao mesmo tempo reforçando junto ao espectador
que o que ele está vendo não poderia acontecer em nenhum
outro lugar. A Concepção não é um filme que se
passa num lugar nenhum, mas é sim um filme que se passa
num não-lugar. Só por realizar a contento esta operação
de anulação/afirmação do espaço, já é preciso destacar
A Concepção num patamar acima da maior parte
da nossa produção recente e reconhecer que Belmonte
é um dos nossos cada vez mais raros cineastas que pensa
cinema.
A Brasília de A Concepção logo se afirma não
como espaço geográfico, mas como conceito, uma idéia
que parece pairar sobre seus personagens (daí o filme
assumir seu princípio de fuga impossível, afinal pode-se
fugir de uma paisagem bem mais facilmente do que de
um conceito). Esta aí uma das grandes sacadas do filme
de Belmonte: se o que caracteriza Brasília como projeto
urbanístico/arquitetônico é sua lógica extremamente
racional, logo fazer com que este espaço se dissolva
numa idéia faz muito sentido. Isto casa perfeitamente
também com a lógica do movimento que dá nome ao filme,
onde este espaço não recebe complemento de uma ideologia
da não-identidade, da dissolução do ego (e não deixa
de ser curioso que a desrazão dos concepcionistas tenha
raiz numa lógica quase cartesiana que se complementa
perfeitamente na montagem/estrutura imposta por Belmonte).
Para o cineasta, tal não-identidade só pode surgiu como
principio num espaço regido por uma lógica como a de
Brasília. A idéia de que o funcionalismo de Brasília
seja disfuncional, de que a cidade tenha sido projetada
sem levar em conta sua população é quase tão antiga
quanto a própria Brasília, mas Belmonte arranja sempre
boas maneiras de articulá-la formalmente.
Isto tudo encontra vazão na tensão imposta por Belmonte
a suas imagens. De um lado a câmera de Belmonte parece
embriagada por todo e qualquer elemento concreto que
filma, revelando um interesse enorme num cinema físico
e direto (o cineasta é especialmente feliz e evocativo
quando capta seus atores em primeiro plano); por outro
lado a excelente montagem de Belmonte e Paulo Sacramento,
aliada à opção de captar o filme nos mais variados formatos,
termina por desenraizá-lo desta mesma matriz física
que parece fascinar o cineasta e jogá-lo de volta neste
campo do não-lugar/não-identidade em que seus personagens
parecem presos (visto por este ângulo mais formalista,
o ato final é mais libertário do que alguns críticos
querem ver). A missão formal de Belmonte parece ser
dar espaço para que cada plano respire vida dentro de
uma estrutura agonizante. O filme está nos seus momentos
mais fortes justamente quando maximiza as tensões presentes
nesta abordagem (e tende a fazer água quando um dos
dois registros domina por demais o outro).
Em método, A Concepção está bem distante de ser
Os Idiotas revisto pelo Oficina, que muitos
viram, e se filia de forma bem mais próxima – embora
com objetivos diferentes – do cinema de Arnaud Desplechin.
Assim como o cineasta francês, Belmonte é fascinado
por performance, ao mesmo tempo em que é incapaz de
simplesmente deixar seus atores trabalharem por si mesmos
(algo como o que aconteceria se os filmes de John Cassavetes
tornassem explícito o extenso trabalho na moviola do
cineasta). Se é verdade que Milhem Cortaz é o único
ator à disposição do cineasta completamente à vontade
com o formato, deve-se dizer que o próprio José Eduardo
Belmonte o domina com bastante talento e vigor. Pode-se
gostar ou não de A Concepção, mas é inegável
que trata-se de um alento no cinema brasileiro recente.
Filipe Furtado
|