Chunhyang
de Im Kwon-Taek, Chunhyang, Coréia do Sul, 2000

A letra ying significa mulher, terra. A letra yang, marido, sol. Juntas, ying e yang ganham novo sentido: felicidade. Entrelaçando pansori e cinema, Im Kwon-Taek – mais importante diretor coreano que, infelizmente, permanece desconhecido no Brasil –, em Chunhyang, Amor Proibido, conjuga romance, política e arte para realizar verdadeira obra-prima.

Im Kwon-Taek adapta para as telas a narrativa mais popular de seu país natal, o amor da plebéia e filha de cortesã Chunhyang pelo nobre e letrado Mongryong Lee, na província de Namwon. Para tanto, o cineasta utiliza-se o pansori, estilo teatral coreano por excelência, em que somente um ator, acompanhado por um percussionista, interpreta todos os papéis – com participação ativa da platéia –, ao mesmo tempo recitando e cantando o longo poema (o espetáculo dura de quatro a seis horas) que lhe serve como texto. Em virtude das diferenças sociais que os separam, os jovens apaixonados casam-se em segredo. No entanto, a partida de Mongryong para Seul, a fim de completar os estudos, e a chegada do novo e despótico prefeito testam os sentimentos e a fidelidade de Chunhyang, que recusa a se tornar amante do corrupto dirigente, à espera do marido, que finalmente retorna a Namwon como emissário real.

Tão logo chegou aos cinemas ocidentais – o filme estreou no mesmo Festival de Cannes em que passaram Amor à Flor da Pele, Eureka e As Coisas Simples da Vida –, a saga romântica de Chunhyang foi instantaneamente associada a Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, E o Vento Levou. Trata-se, para nós, herdeiros da cultura greco-latina, do mito da alma gêmea, presente desde O Banquete, de Platão: o discurso de Aristófanes a respeito dos Andróginos, sexo composto que, castigado e dividido por Zeus, busca se reunir de forma incessante com a metade perdida para formar novamente um único ser. A identificação ocidental com Chunhyang, Amor Proibido se faz ainda mais completa pelo teor melodramático da narrativa, uma vez que existe a rígida e autoritária sociedade de castas interpondo-se entre os amantes: Chunhyang, filha de cortesã, deve seguir a mesma carreira da mãe, como determina a tradição, enquanto Mongryong não pode se casar com uma plebéia, sob o risco de acabar deserdado e impedido de realizar a prova em Seul. A união do jovem casal desafia os costumes de uma Coréia arcaica, mergulhada na pobreza e na injustiça, e marca não apenas o desejo da heroína de que a vejam como ser humano, mas também acompanha a transformação do herói, do nobre mimado que age por interesses pessoais para o emissário real que trabalha pelo bem do país.

No início de Chunhyang, Amor Proibido, Mongryong, filho do prefeito, abandona os estudos das letras e da literatura para conhecer Namwon. Em seu passeio, durante o qual abre o leque ao deixar os portões da cidade, encanta-se pela plebéia que brinca no balanço. Tal como a borboleta em relação à flor, pretende se divertir e ir embora, mas apaixona-se por ela. O amor sincero que nutre por Chunhyang altera a percepção do herói que, trajado de mendigo, usa o mesmo leque para dar o sinal que por fim derruba o cruel governante da província. Os dramas afetivo dos amantes e social dos agricultores, ambos tiranizados e humilhados pela estrutura política-econômica carcomida e corrupta personificada no novo prefeito, confluem e se completam, na medida em que remetem à luta contra a opressão, a injustiça, a desigualdade e os privilégios do sistema hierárquico e imobilista das castas que paralisam a nação.

Em Chunhyang, Amor Proibido, Im Kwon-Taek trabalha com interseções: pansori, relatos orais, canto, dança, literatura e pintura, todos afluentes que desembocam no enorme rio chamado cinema. O filme compendia e dialoga com os métodos de apreensão do conhecimento humano, seja nas histórias e nas músicas que cortesãs, agricultores e mendigos dedicam a Chunhyang; seja no pansori que pontua o ritmo da narrativa (a seqüência em que Pangia aborda a heroína pela primeira vez, em perfeita consonância com o texto recitado); seja nos enquadramentos de composições asfixiantemente belas (e levadas ao extremo na ora seguinte do cineasta, o ainda melhor Pinceladas de Fogo); seja nas cenas em que primeiro o marido, e depois a esposa, declaram seu amor por escrito, a fim de torná-lo assim mais verdadeiro; seja, enfim, no cinema em si, quando a perda da virgindade de Chunhyang é representada pelo corte que conduz à vela sendo apagada, ou quando a notícia de que Mongyong partirá para Seul leva a câmera a se mover para trás de uma barreira que, obliterando a visão do espectador, indicia o sofrimento que colocará à prova os sentimentos do casal.

Im Kwon-Taek, que em 2 de maio completa 70 anos, dirigiu quase 100 filmes ao longo de mais de 40 anos de carreira. Números impressionantes, que não sensibilizaram os distribuidores brasileiros: Chunhyang, Amor Proibido, permanece sua obra isolada a chegar ao circuito comercial. Em contrapartida, os intragáveis Primavera, Verão, Outono, Inverno e... Primavera e A Casa Vazia, de Kim Ki-Duk, foram exibidos recentemente, despertando admiração em parcela da crítica especializada. É bom avisar, ainda mais quando se lembra que, além de Im kwon-taek, Hong Sang-Soo continua inédito no país: estão exibindo o coreano errado em nossos cinemas.

Paulo Ricardo de Almeida