A letra
ying significa mulher, terra. A
letra yang, marido, sol. Juntas,
ying e yang ganham novo sentido: felicidade.
Entrelaçando pansori e cinema, Im Kwon-Taek – mais importante
diretor coreano que, infelizmente, permanece desconhecido
no Brasil –, em Chunhyang, Amor Proibido, conjuga
romance, política e arte para realizar verdadeira obra-prima.
Im Kwon-Taek
adapta para as telas a narrativa mais popular de seu
país natal, o amor da plebéia e filha de cortesã Chunhyang
pelo nobre e letrado Mongryong Lee, na província de
Namwon. Para tanto, o cineasta utiliza-se o pansori,
estilo teatral coreano por excelência, em que somente
um ator, acompanhado por um percussionista, interpreta
todos os papéis – com participação ativa da platéia
–, ao mesmo tempo recitando e cantando o longo poema
(o espetáculo dura de quatro a seis horas) que lhe serve
como texto. Em virtude das diferenças sociais que os
separam, os jovens apaixonados casam-se em segredo.
No entanto, a partida de Mongryong para Seul, a fim
de completar os estudos, e a chegada do novo e despótico
prefeito testam os sentimentos e a fidelidade de Chunhyang,
que recusa a se tornar amante do corrupto dirigente,
à espera do marido, que finalmente retorna a Namwon
como emissário real.
Tão logo
chegou aos cinemas ocidentais – o filme estreou no mesmo
Festival de Cannes em que passaram Amor à Flor da
Pele, Eureka e As Coisas Simples da Vida
–, a saga romântica de Chunhyang foi instantaneamente
associada a Romeu e Julieta, Tristão e Isolda,
E o Vento Levou. Trata-se, para nós, herdeiros
da cultura greco-latina, do mito da alma gêmea, presente
desde O Banquete, de Platão: o discurso de Aristófanes
a respeito dos Andróginos, sexo composto que, castigado
e dividido por Zeus, busca se reunir de forma incessante
com a metade perdida para formar novamente um único
ser. A identificação ocidental com Chunhyang, Amor
Proibido se faz ainda mais completa pelo teor melodramático
da narrativa, uma vez que existe a rígida e autoritária
sociedade de castas interpondo-se entre os amantes:
Chunhyang, filha de cortesã, deve seguir a mesma carreira
da mãe, como determina a tradição, enquanto Mongryong
não pode se casar com uma plebéia, sob o risco de acabar
deserdado e impedido de realizar a prova em Seul. A
união do jovem casal desafia os costumes de uma Coréia
arcaica, mergulhada na pobreza e na injustiça, e marca
não apenas o desejo da heroína de que a vejam como ser
humano, mas também acompanha a transformação do herói,
do nobre mimado que age por interesses pessoais para
o emissário real que trabalha pelo bem do país.
No início
de Chunhyang, Amor Proibido, Mongryong, filho do prefeito,
abandona os estudos das letras e da literatura para
conhecer Namwon. Em seu passeio, durante o qual abre
o leque ao deixar os portões da cidade, encanta-se pela
plebéia que brinca no balanço. Tal como a borboleta
em relação à flor, pretende se divertir e ir embora,
mas apaixona-se por ela. O amor sincero que nutre por
Chunhyang altera a percepção do herói que, trajado de
mendigo, usa o mesmo leque para dar o sinal que por
fim derruba o cruel governante da província. Os dramas
afetivo dos amantes e social dos agricultores, ambos
tiranizados e humilhados pela estrutura política-econômica
carcomida e corrupta personificada no novo prefeito,
confluem e se completam, na medida em que remetem à
luta contra a opressão, a injustiça, a desigualdade
e os privilégios do sistema hierárquico e imobilista
das castas que paralisam a nação.
Em Chunhyang, Amor Proibido, Im Kwon-Taek trabalha
com interseções: pansori, relatos orais, canto, dança,
literatura e pintura, todos afluentes que desembocam
no enorme rio chamado cinema. O filme compendia e dialoga
com os métodos de apreensão do conhecimento humano,
seja nas histórias e nas músicas que cortesãs, agricultores
e mendigos dedicam a Chunhyang; seja no pansori que
pontua o ritmo da narrativa (a seqüência em que Pangia
aborda a heroína pela primeira vez, em perfeita consonância
com o texto recitado); seja nos enquadramentos de composições
asfixiantemente belas (e levadas ao extremo na ora seguinte
do cineasta, o ainda melhor Pinceladas de Fogo);
seja nas cenas em que primeiro o marido, e depois a
esposa, declaram seu amor por escrito, a fim de torná-lo
assim mais verdadeiro; seja, enfim, no cinema em si,
quando a perda da virgindade de Chunhyang é representada
pelo corte que conduz à vela sendo apagada, ou quando
a notícia de que Mongyong partirá para Seul leva a câmera
a se mover para trás de uma barreira que, obliterando
a visão do espectador, indicia o sofrimento que colocará
à prova os sentimentos do casal.
Im Kwon-Taek,
que em 2 de maio completa 70 anos, dirigiu quase 100
filmes ao longo de mais de 40 anos de carreira. Números
impressionantes, que não sensibilizaram os distribuidores
brasileiros: Chunhyang, Amor Proibido, permanece
sua obra isolada a chegar ao circuito comercial. Em
contrapartida, os intragáveis Primavera, Verão, Outono,
Inverno e... Primavera e A Casa Vazia, de
Kim Ki-Duk, foram exibidos recentemente, despertando
admiração em parcela da crítica especializada. É bom
avisar, ainda mais quando se lembra que, além de Im
kwon-taek, Hong Sang-Soo continua inédito no país: estão
exibindo o coreano errado em nossos cinemas.
Paulo Ricardo de Almeida
|