Como
podem se ligar os filmes às vidas e as vidas
aos filmes? Claro, por natureza se ligam (ora, filmes
são feitos e vistos por seres vivos) – mas como
essa ligação pode ser mais profunda, complexa,
fundamental? Como um filme pode tentar transmitir a
experiência de uma vida? Essa questão,
de certa maneira, norteia Serras da Desordem.
Certamente não é caso único – há
um número imenso de filmes em que se poderia
apontar a mesma questão – portanto, essa questão
essencial não bastaria para defini-lo. Mas é
preciso notar que ela em momento algum se apaga – ao
contrário, do início ao fim ela é
uma fonte crescente de força do filme, que parece
se renovar a cada instante em busca dessa ligação,
ao mesmo tempo integral e misteriosa.
Serras da Desordem reencena partes da vida do
índio Carapiru, cuja história apresenta
uma perspectiva impressionante da construção
dessa civilização latina do extremo ocidente,
a brasileira. É o próprio Carapiru, anos
mais velho, que interpreta a si mesmo nessa filmagem
de sua trajetória, que começa décadas
atrás, quando a tribo em que vivia foi massacrada
por criminosos. O filme então começa a
transitar entre ritmos diversos para nos relatar a sua
experiência, misturando registros a partir do
uso de encenações de momentos da vida
do índio, depoimentos e material de arquivo.
De aparentado do registro etnográfico, o filme
logo passa a um ritmo de montagem tradicional dos filmes
de ação, sucedido por uma seqüência
documental visualizando a construção de
uma civilização, seguida por um pequeno
filme familiar, e por aí ele segue – e, nessa
passagem de registros, Serras da Desordem imbrica
por completo as separações entre ficcional
e documental, entre atuação e vivência,
entre personagem e pessoa. Na verdade, o filme trabalha
sempre para manter uma tensão desconfiada entre
as oposições sugeridas – entre o micro
e o macro, entre a natureza e a civilização,
entre o indivíduo e a sociedade, entre o histórico
e o circunstancial, entre a vida e a representação.
Essa desconfiança aponta que estas oposições
não são estáticas, mas fluidas:
não há como separar o homem da sociedade,
não há como compreender um sem compreender
o outro, sem saber que, por bem ou por mal, cada pólo
se constitui fundamentalmente ligado ao seu oposto.
Não há como compreender a sociedade sem
compreender os indivíduos, e vice-versa; não
há como compreender a trajetória de Carapiru
sem compreender o mundo social que o cercou, tampouco
se torna possível compreender esse mundo ignorando
a experiência desse índio.
Para tentar entender a força que apresenta atualmente
Serras da Desordem, acho que vale a pena
procurar analogias e relações com alguns
casos semelhantes na história do cinema. Afinal,
o uso desse personagem-chave, ao mesmo tempo ator (agente)
e retratado (objeto), aproxima o filme de outros - traz
a ele um parentesco evidente com o princípio
do cinema documental (Flaherty encenando com o esquimó
Nannok), com os filmes africanos de Jean Rouch, com
Iracema, uma Transa Amazônica, do Jorge
Bodanzki e do Orlando Senna, com Close-up, do
Kiarostami, com O Prisioneiro da Grade de Ferro,
do Paulo Sacramento. Sim, decerto – mas com sua vontade
intensa de compreender a trajetória desse indivíduo,
sem qualquer pudor diante das numerosas situações
em que seu personagem cumpre o papel de vítima,
Serras da Desordem consegue dar sentido ao movimento,
a essa procura. A realização final do
percurso de Carapiru parece enriquecer a visão
sobre as relações entre homem e sociedade,
entre filme e vida; o índio nômade se vê
fora da tribo (de todas as tribos), ciente da violência
do convívio social, contando sua história
para uma câmera.
Como em Iracema, seu olhar sobre o específico,
o indivíduo, sempre está ligado, sem uma
oposição simplista, ao seu olhar amplo,
geral. Como em Iracema e em Close-up,
o próprio retratado participa da recriação
ficcional da cena (logo, da elaboração
dela). Como nos filmes documentais citados, a representação
que o filme oferece se liga à representação
em que crêem os retratados. Em todos eles, é
permanente a tensão entre a encenação
e uma possível verdade sendo filmada.
Mas o que impressiona em Serras da Desordem é
que, como em todos estes e para além deles, o
filme sempre mantém à tona a questão
da sua própria existência, do próprio
significado de existir um filme reportando esse mundo.
Isto fica evidente na mistura entre relatos, encenações
e material de arquivo, mas se torna explícito
no momento final, em que a trajetória de Carapiru
– depois de fugir e ser acolhido, depois de fazer amigos
e ser afastado deles, depois de reencontrar um filho
perdido e de voltar para sua tribo, depois de se perceber
diferente dos outros remanescentes da tribo e voltar
a se afastar – a trajetória termina com um registro
da própria filmagem. Como diz Rodrigo de Oliveira
no seu texto sobre Bang Bang presente nessa edição
da Contracampo sobre Tonacci, o cineasta trabalha em
seus filmes com uma tensão permanente (mais uma)
entre o filme e o cinema – pois aqui essa
tensão se evidencia novamente, quando o filme
parece se fechar ao se registrar e o cinema parece reencontrar
o seu vigor com esse registro.
A viagem de Carapiru é uma questão moral
– a força simbólica da vida dessa pessoa
apresenta um amplo olhar vivo sobre uma vida, um lugar,
um tempo, uma civilização, uma gente.
Tal como é contada, a história de Carapiru,
que só aprendeu a falar em português "é
bom" (e nem adiantava dizer o contrário),
com sua consciência do mundo e seu sorriso constante,
essa história parece insinuar um pouco dos mistérios
do mundo. Rogo ao leitor que me perdoe tamanhos superlativos
nesse texto, mas Serras da Desordem não
é um filme comum. Na verdade, é uma daquelas
obras raras, muito raras, das quais saímos com
a impressão de que algo em nossa visão
das coisas se tornou um pouco maior, de que passamos
a ter uma perspectiva mais ampla sobre nós, seres
humanos, sobre o cinema, sobre o mundo. Isso não
é pouca coisa, com certeza não é.
Daniel Caetano
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