Quando
iniciou sua formação. Andrea Tonacci provocou
muita perplexidade. Seu talento era evidente, ele tentava
ser acadêmico mas não conseguia. Os filmes
que apresentava nos concursos amadores eram bem feitos,
requintados, repletos de fórmulas estéticas
e destituídos de vida. Essa foi pelo menos a
impressão que guardei.
Depois de um intervalo cuja natureza ignoro, Tonacci
realizou uma espécie de documentário reconstituído
e satírico sobre o discurso de um homem público
pronunciado numa situação de crise: Blá-Blá-Blá.
A personagem emana de uma terra em transe e não
seria de espantar que essa ficção acabasse
adquirindo um valor de documento histórico a
respeito da debilidade do poder civil brasileiro. A
temática de Blá-Blá-Blá
é porém mais ampla e ultrapassa o tempo
em que a fita foi produzida. Num país sem crise
e sem poder civil, a eloqüência ingênua
e delirante que o filme satiriza continua triunfante.
Basta ler os jornais: "arma psicológica...
sutil e mascarada... de difícil identificação...
O inimigo é indefinido e mimetista... se traveste
de padre ou de professor, de aluno ou de camponês,
de defensor da democracia ou de intelectual avançado...
farda ou traje civil..." Eis em plena força
o universo brenhoso do Blá-Blá-Blá.
Esse Bang-Bang de Andrea Tonacci, que a Sociedade
Amigos da Cinemateca projetou na semana passada, está
pronto há três anos. Desta voz a barreira
não foi a censura mas o comércio cinematográfico.
Trata-se de um filme que provavelmente não interessará
em igual medida todos os públicos, mas é
ao mesmo tempo evidente que existem em São Paulo
milhares de espectadores à espreita da oportunidade
de assistir a uma obra nacional deste gênero.
Na sessão especial da SAC, a sala Mário
de Andrade, superlotada, foi constrangida a recusar
espectadores. Tive o prazer de identificar alguns alunos
de cinema da USP, Salma, Adilson e Allain, pelo menos
além de jovens professores de teoria literária
e comunicações.
A liberdade godardiana pode ser liberadora: essa é
a primeira lição de Bang-Bang.
Muito jovem de toda parte acabou confusamente tolhido
ao se lançar na prática da desenvoltura
mas isso não sucedeu com Tonaccl. A eficácia
com que constrói a gratuidade e a desordem acabam
excluindo do filme essas duas caracteristícas.
A ausência de uma armação dramática
racionalmente contínua torna o espectador muito
exigente quanto à coesão interna dos episódios
que se sucedem, e dentro desses, quanto a cada pormenor
visual ou sonoro.
O personagem principal de Bang-Bang mantém
prolongados diálogos ocasionais com um chofer
de táxi ou com um bêbado e uma moça
num bar. Como essas seqüências não
derivam e não levam propriamente a nada é
em si mesmas que acabam nos interessando intensamente:
cada instante de faia, gesto, ruído e ambiente
adquire uma responsabilidade dramática decisiva.
O estilo em que tudo é tratado se situa aparentemente
no mais corriqueiro naturalismo, que engloba a própria
câmara, mas a repetição visual das
seqüências — integral ou parcial —, com pequenas
variantes apenas na trilha sonora, ajuda a revelar a
carga ritual que possuem.
As outras partes de Bang-Bang são fortemente
estilizadas, mágicas mesmo e emergem delas situações
e personagens marcantes: a toilette do homem-macaco,
a gorda gulosa ou o cego irrequieto que pontua sua presença
dando tiros a esmo. A vocação profunda
de Tonacci parece ser o mistério da realidade,
mas ele circula à vontade entre diferentes pólos
e estilos narrativos. É preciso sublinhar o talento
todo especial com que filma automóveis, de dentro
ou de fora, parados e em movimento.
É escandaloso que Bang-Bang ainda não
tenha sido programado comercialmente por um de nossos
cinemas de arte. Isso do ponto de vista do público.
No que se refere a Andrea Tonacci, pessoalmente, eu
imagino como deve estar prejudicando sua carreira de
cineasta a imobilidade do filme durante três anos.
Paulo Emilio Salles Gomes
(publicado no Jornal da Tarde em 21 de abril de 1973)
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