Olho
por Olho pode ser definido, na falta de palavra
mais apropriada, como um filme-percurso, ou, de outra
forma, um filme-busca. Nas duas nomenclaturas, as palavras
exercem sentidos não equivalentes, mas complementares.
Afinal, todo percurso o é pois está atrás
de algo, buscando o que quer que seja. Este percurso-busca,
em Olho por Olho, serve não apenas aos
personagens, que transitam pelas ruas de São
Paulo à procura de algum sentido – mesmo o mais
imediato e banal – para suas vidas, mas também
para Tonacci, que busca no trânsito dos personagens
um sentido – mesmo o mais imediato e banal – para o
próprio cinema. E este sentido, Tonacci parece
afirmar, é não o que uma narrativa representa,
mas o próprio ato de se narrar, ou mais, o simples
ato de se assistir. Referência direta ao olhar,
o título do primeiro curta-metragem de Andréa
Tonacci é menos um ditado popular do que um manifesto.
Substituir o olho da câmera pelo olho dos personagens,
libertar o cinema do projeto ditatorial e demiúrgico
do diretor pelo conteúdo inerente à própria
obra (processo este que seria desenvolvido ao longo
de sua carreira, fosse no plano metalingüístico,
em Bang-Bang ou Blá-blá-blá,
no plano político, em seus encontros com os indígenas,
ou nas próprias referências diretas ao
ato de se encenar, como em Theatro Municipal ou
Jouez encore, payez encore).
Em Olho por Olho, o projeto se desmascara na
cara, olho por olho, dente por dente. Um número
de jovens passeia de carro pelas ruas de São
Paulo discutindo banalidades do dia-a-dia. A câmera
acompanha, simplesmente, o percurso dos jovens, como
se por acaso tivesse decidido estar por ali. Não
há razão maior de captar aquele momento
do que a própria razão de se captar aquele
momento. Tonacci revela, assim, não só
que isso basta, mas que este movimento é necessário,
pois movimento é. Dissemos que Olho por Olho
é um filme-percurso, e seria talvez importante
acrescentar que não é, por mais que se
assemelhe a, um filme-processo. Ao acompanhar da câmera
de Tonacci não interessa necessariamente que
os personagens passem por uma mudança ou aprendizado,
mas simplesmente que eles andem. Captar o movimento,
ir atrás dele, seja lá qual for a hora,
é este o objetivo do diretor. Os personagens
de Olho por Olho poderiam estar a pé,
de ônibus ou mesmo de avião, mas precisariam
estar indo de um lugar a outro. De onde para onde? Tal
qual Paulo César Pereio em Bang-Bang dando
ordens ao taxista para que se mova a alguma direção
indefinida, isso não importa. O importante é,
mesmo em círculos, andar.
"Não acontece nada", os personagens
refletem durante o percorrer do filme, e a reflexão
pode servir também ao próprio Tonacci.
Olho por Olho é, sinteticamente, um grito
contra a inércia. Seja a inércia do cinema
brasileiro após o fim do projeto inicial do Cinema
Novo, seja a inércia dos jovens paulistas do
fim da década de 1960. Enquanto eles buscam,
no percurso de carro, alguma forma de fazer aquela realidade
"acontecer", Tonacci busca, no percurso da
câmera – sempre movimentada – todas as formas
de fazer, naquela realidade, o cinema "acontecer".
Para isso contribui, de forma essencial, a montagem
entrecortada, fragmentada, não-linear, tanto
de imagem quanto, principalmente, de som (cujo responsável
foi Rogério Sganzerla). Olho por Olho é
não sobre o sentido da imagem, mas o movimento
dela. Não a clareza do som, mas sua confusão.
Como Sganzerla, Tonacci faz do caos seu modus operandi.
Cinema-movimento, por assim dizer. A realidade a 24
quadros por segundo. Porque os jovens realizadores paulistas
sabiam que a falta de infra-estrutura técnica,
os negativos gastos e parcos, a iluminação
precária, o amadorismo da equipe não eram
um desafio a ser superado, mas a própria essência
do cinema que deveria ser, urgentemente, feito. Terceiro-mundo
sim, e daí? O importante é que as coisas
andem.
Grito de protesto disfarçado de registro semi-documental.
Registro de realidade disfarçado de obra de ficção.
As duas oposições se juntam porque, naturalmente,
não são oposições, mas simbioses.
Para Tonacci, o cinema não acaba onde deveria,
porque simplesmente não acaba. Como o carro de
Olho por Olho levando os personagens a lugar
nenhum, repito, o importante é andar. Na última
seqüência do filme (se é que alguma
obra definida por seu fluxo pode ser dividida em seqüências),
os jovens resolvem estacionar seu carro e espancar um
outro qualquer. Um susto toma então o espectador.
Será que aquele elogio ao movimento termina por
ser apenas uma crítica rasa e simplista à
burguesia paulistana? Ou mais, será que aquela
obra sem início, meio ou fim decide, de um momento
a outro, estacionar a câmera e redefinir suas
intenções? Pois Tonacci, em um plano genial,
responde a nós que não. A cena do espancamento
juvenil é não uma crítica social,
mas uma afirmação de valores. Abandonando
os jovens (que já não interessam, pois
pararam), a câmera segue a mocinha, que continua
a andar, simplesmente andar, para lugar nenhum, ou para
qualquer lugar. A câmera se move, apenas. Porque
é de meios, e não de fins, que o cinema
é feito.
Leonardo Levis
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