PELOS MIL MEIOS DO CINEMA
Olho por Olho, 1966

Olho por Olho pode ser definido, na falta de palavra mais apropriada, como um filme-percurso, ou, de outra forma, um filme-busca. Nas duas nomenclaturas, as palavras exercem sentidos não equivalentes, mas complementares. Afinal, todo percurso o é pois está atrás de algo, buscando o que quer que seja. Este percurso-busca, em Olho por Olho, serve não apenas aos personagens, que transitam pelas ruas de São Paulo à procura de algum sentido – mesmo o mais imediato e banal – para suas vidas, mas também para Tonacci, que busca no trânsito dos personagens um sentido – mesmo o mais imediato e banal – para o próprio cinema. E este sentido, Tonacci parece afirmar, é não o que uma narrativa representa, mas o próprio ato de se narrar, ou mais, o simples ato de se assistir. Referência direta ao olhar, o título do primeiro curta-metragem de Andréa Tonacci é menos um ditado popular do que um manifesto. Substituir o olho da câmera pelo olho dos personagens, libertar o cinema do projeto ditatorial e demiúrgico do diretor pelo conteúdo inerente à própria obra (processo este que seria desenvolvido ao longo de sua carreira, fosse no plano metalingüístico, em Bang-Bang ou Blá-blá-blá, no plano político, em seus encontros com os indígenas, ou nas próprias referências diretas ao ato de se encenar, como em Theatro Municipal ou Jouez encore, payez encore).

Em Olho por Olho, o projeto se desmascara na cara, olho por olho, dente por dente. Um número de jovens passeia de carro pelas ruas de São Paulo discutindo banalidades do dia-a-dia. A câmera acompanha, simplesmente, o percurso dos jovens, como se por acaso tivesse decidido estar por ali. Não há razão maior de captar aquele momento do que a própria razão de se captar aquele momento. Tonacci revela, assim, não só que isso basta, mas que este movimento é necessário, pois movimento é. Dissemos que Olho por Olho é um filme-percurso, e seria talvez importante acrescentar que não é, por mais que se assemelhe a, um filme-processo. Ao acompanhar da câmera de Tonacci não interessa necessariamente que os personagens passem por uma mudança ou aprendizado, mas simplesmente que eles andem. Captar o movimento, ir atrás dele, seja lá qual for a hora, é este o objetivo do diretor. Os personagens de Olho por Olho poderiam estar a pé, de ônibus ou mesmo de avião, mas precisariam estar indo de um lugar a outro. De onde para onde? Tal qual Paulo César Pereio em Bang-Bang dando ordens ao taxista para que se mova a alguma direção indefinida, isso não importa. O importante é, mesmo em círculos, andar.

"Não acontece nada", os personagens refletem durante o percorrer do filme, e a reflexão pode servir também ao próprio Tonacci. Olho por Olho é, sinteticamente, um grito contra a inércia. Seja a inércia do cinema brasileiro após o fim do projeto inicial do Cinema Novo, seja a inércia dos jovens paulistas do fim da década de 1960. Enquanto eles buscam, no percurso de carro, alguma forma de fazer aquela realidade "acontecer", Tonacci busca, no percurso da câmera – sempre movimentada – todas as formas de fazer, naquela realidade, o cinema "acontecer". Para isso contribui, de forma essencial, a montagem entrecortada, fragmentada, não-linear, tanto de imagem quanto, principalmente, de som (cujo responsável foi Rogério Sganzerla). Olho por Olho é não sobre o sentido da imagem, mas o movimento dela. Não a clareza do som, mas sua confusão. Como Sganzerla, Tonacci faz do caos seu modus operandi. Cinema-movimento, por assim dizer. A realidade a 24 quadros por segundo. Porque os jovens realizadores paulistas sabiam que a falta de infra-estrutura técnica, os negativos gastos e parcos, a iluminação precária, o amadorismo da equipe não eram um desafio a ser superado, mas a própria essência do cinema que deveria ser, urgentemente, feito. Terceiro-mundo sim, e daí? O importante é que as coisas andem.

Grito de protesto disfarçado de registro semi-documental. Registro de realidade disfarçado de obra de ficção. As duas oposições se juntam porque, naturalmente, não são oposições, mas simbioses. Para Tonacci, o cinema não acaba onde deveria, porque simplesmente não acaba. Como o carro de Olho por Olho levando os personagens a lugar nenhum, repito, o importante é andar. Na última seqüência do filme (se é que alguma obra definida por seu fluxo pode ser dividida em seqüências), os jovens resolvem estacionar seu carro e espancar um outro qualquer. Um susto toma então o espectador. Será que aquele elogio ao movimento termina por ser apenas uma crítica rasa e simplista à burguesia paulistana? Ou mais, será que aquela obra sem início, meio ou fim decide, de um momento a outro, estacionar a câmera e redefinir suas intenções? Pois Tonacci, em um plano genial, responde a nós que não. A cena do espancamento juvenil é não uma crítica social, mas uma afirmação de valores. Abandonando os jovens (que já não interessam, pois pararam), a câmera segue a mocinha, que continua a andar, simplesmente andar, para lugar nenhum, ou para qualquer lugar. A câmera se move, apenas. Porque é de meios, e não de fins, que o cinema é feito.


Leonardo Levis