"Não
dar espelhos aos macacos"
João Guimarães Rosa 1
A câmera dentro do filme. Ela aparece como objeto,
comparece. Ao mesmo tempo, é agente, realiza
a película. Neste sentido, eis o tema central
do longa-metragem Bang Bang de Andrea Tonacci:
o cinema.
A rede de lugares-comuns, a "chave para falar de todas
as coisas sem nelas pensar" (Merleau-Ponty) pode deturpar
as afirmações anteriores, mediante o emprego
de colocações dualistas: Bang Bang
é, então, uma paródia? Cinema
de arte criticando o cinema comercial?
O que se escamoteia atrás destas insinuações
é a trama de compromissos que mantém tanto
o cinema "comercial" quanto o cinema "de arte". A nosso
ver, o primeiro (a oposição comercial/artístico
tende a se diluir durante a análise) está
amarrado à noção de representação,
ou seja, da arte com imitação da natureza.
Na leitura que Jacques Derrida propõe de Antonin
Artaud, o limite da representação é
circunscrito: "...um autor-criador que, ausente e distante,
armado de um texto, vigia, reúne e comanda o
tempo ou o sentido da representação, deixando
esta representá-lo no que se chama
o conteúdo dos seus pensamentos, das suas intenções,
das suas idéias. Representar por representantes,
diretores ou atores, intérpretes subjugados que
representam personagens que, em primeiro lugar pelo
que dizem, representam mais ou menos diretamente o pensamento
do "criador". Escravos interpretando, executando
fielmente os desígnios providenciais do "senhor".
Que aliás — e é a regra irônica
da estrutura representativa que organiza todas estas
relações — nada cria, apenas se dá
a ilusão da criação, pois unicamente
transcreve e dá a ler um texto cuja natureza
é necessariamente representativa, mantendo com
o que se chama o "real" (o sendo real, essa "realidade"
acerca da qual Artaud escreve, no Advertissement
ao Moine, que é um "excremento do espirito"),
uma relação imitativa e reprodutiva. Finalmente
um público passivo, sentado, um público
de espectadores, de consumidores, de "usufruidores"
— como dizem Nietzsche e Artaud — assistindo a um espetáculo
sem verdadeiro volume nem profundidade, exposto, oferecido
ao seu olhar de curiosos.’’ 2 O cinema
"anti-representativo" sacrifica qualquer expectativa,
exige a liberação da percepção,
a fim desta moldar o material artístico, criar
nova montagem, habitar ou co-habitar o solo do diretor.
Ele propõe o espectador como co-diretor, co-piloto
do traveliing, assessor da grua, mestre da panorâmica,
numa palavra, propõe o ativismo. O único
compromisso que esse cinema mantém é o
mesmo que nos mantém no mundo (In der Welt
Sein): a presentação.
Bang Bang apresenta o cinema também através
da câmera dentro do filme. Mas onde se dá
essa reflexividade, essa ubiqüidade do lá
e do aqui (o filme engolindo até seu pressuposto,
a filmadora), o que quer dizer este tipo de cinema que
filma até sua própria origem?
Em vários momentos, a imagem da câmera
transparece refletida pelo espelho ou projetada pela
sombra. Se a câmera for uma extensão do
olho e do movimento, amplificação do visual
e do cinético, portanto, técnica corporal
e se ela participar do filme, nós também
estaremos nele, sem distância. Daí
a impossibilidade de um enredo, "acabado", isto é,
um rótulo fixo. Como a realidade, Bang Bang
é polissêmico também. Existe a personagem
principal – no filme, interpretada por Paulo César
Pereio – existe seu círculo, sua situação,
seus objetos. Mas o filme não possui enredo.
O enredo seria um constrangimento de um processo formal
do passado. Ele aparece em Bang Bang, mas com um objeto
absurdo entre outros absurdos, não é mais
a maneira privilegiada de um filme se processar: a tal
ponto que, quando uma personagem sai de sua função,
dirigindo-se diretamente ao espectador para narrar o
filme através das velhas modalidades de fabulação,
recebe de pronto um pastelão da direção.
Nem na metalinguagem a coerência começo-meio-fim
sobrevive.
Como muito bem analisou Paulo Emílio Salles Gomes
(Jornal da Tarde, 21/4/73) "a ausência
de uma armação dramática racionalmente
contínua torna o espectador muito exigente quanto
à coesão interna dos episódios
que se sucedem, e dentro desses, quanto a cada pormenor
visual ou sonoro". Justamente por haver colocado em
cheque a armação dramática, Tonacci
a explode e os destroços que se espalham por
todos os lados criam múltiplos episódios:
estes são Bang Bang. Os recursos
expressivos não se limitam à abolição
da tirania do enredo, pelo contrário, ganham
força a partir desta resolução.
Os objetos coexistem em litígio, devido a parentescos
incompossíveis. A trilha sonora acompanha este
despojamento de familiaridade, varrendo das cenas qualquer
ponto de referência.
Para lugar algum
A ação começa antes dos genéricos.
O ator principal toma um táxi, ou melhor, é
quase atropelado por um. O modelo do automóvel
é Chevrolet Belair dos anos 50, urna sucata
ambulante. Devido a defeitos mecânicos, confusão
de trânsito e teimosia do motorista, o caminho
é sempre extraviado. A situação
é tão patética quanto grotesca,
por causa dessas impossibilidades e da discussão
motorista/passageiro que não tem lógica,
é nonsense, não conduz para lugar algum.
Tudo é povoado sonoramente pela mudança
das marchas do automóvel. O emprego do tempo
real e do som local alojam a cena no mais rigoroso naturalismo.
Mas naturalismo para quê? Aqui, não há
ideologia atrás deste processo estilístico.
Desta maneira, a cena adquire uma concretude do gênero
da melhor arte pop.
Passemos a outra estrela da constelação
cinemática de Bang Bang: desta vez, a
personagem principal entra num bar e se senta ao lado
de um bêbado. O veículo do diálogo
é o porre. Em primeiro lugar, o bêbado
questiona a mediação da bebida, o consumidor.
Propõe apenas a cerveja e o mictório,
abolindo o intermediário do comércio etílico,
Neste bar insólito, não existe quem sirva
a cerveja, nem quem atenda um telefone que toca insistentemente.
Há a conversa mediada por um terceiro espectador:
a câmera que se reflete no espelho da espelunca.
O ator principal tenta instaurar alguma ordem neste
caos, atende o telefone, mas, se alguém responde
de outro lado da linha, o insulta. O bêbado propõe
outra totalização, agora sobre o telefone.
Aconselha seu interlocutor a se apropriar do aparelho
e da lista telefônica, menosprezando o uso.
Estas duas composições (a do motorista
de praça e a do bêbado) são simétricas
e revelam a arbitrariedade da presença humana
neste universo. Qualquer ato é gratuito, o desempenho
não tem sentido, nem modifica a história.
Ao invés da consciência manipular os objetos,
os objetos alugam a consciência, explodindo em
mediações absurdas. O taxi, na primeira
seqüência, a bebida e o telefone, na segunda,
são intermédios pré-históricos,
esqueletos incômodos, Esta estrutura nunca foi
mudada. Toda as revoluções a conservaram
integralmente, no máximo, a protegeram e a aperfeiçoaram.
O filme de Tonacci asfixia este mundo, não dá
respostas, propõe o ativismo, mas não
fornece a palavra de ordem. Bang Bang explicita
a origem de uma ética política, e étimo
do ético onde o espectador tem que se alistar,
uma pura possibilidade radical.
E, neste clima, em outro momento, a animalidade latente
da principal personagem se fisicaliza: é a cena
do homem-macaco se barbeando e cantando a valsa "Eu
sonhei que tu estavas tão linda", de Lamartine
Babo, no espelho do banheiro. No fundo do espelho ou
no reflexo dos óculos rayban do macaco,
a câmera. Esta meta-personagem sempre surge sozinha,
isto é, sem operador, mas, no entanto, registrando
efetivamente o que se passa. A tríade homem-macaco/camêra/espelho
poderia ser desvelada a partir da obra do fundador da
Escola Freudiana de Paris, Jacques Lacan.
Segundo Lacan, a fase do espelho é a fase da
constituição do ser humano e se situa
entre os seis e os dezoito meses, quando a criança,
ainda em estado de impotência de descoordenação
motora, antecipa imaginariamente a apreensão
e o domínio de sua unidade corporal. Esta unificação
imaginária se opera pela identificação
com a imagem do semelhante como forma total. Ela se
ilustra e se atualiza pela experiência concreta
na qual a criança percebe sua própria
imagem num espelho. Portanto o espelho constituiria
a matriz e o esboço do que será o ego.
Momento de jogo
A concepção de Lacan se apoia sobre
dados da psicologia comparada e da etologia animal:
"...a criança, que, por um tempo muito curto,
mas ainda por um tempo, é ultrapassada em inteligência
instrumental pelo chimpanzé, reconhece contudo
sua imagem como tal". 3 O ato de percepção
especular, "com efeito, longe de se esgotar como, no
macaco, em controle, uma vez adquirido, da inanidade
da imagem, desencadeia cedo na criança uma série
de gestos na qual ela experimenta ludicamente a re1ação
dos movimentos assumidos da imagem à sua ambiência
refletida..." 4
O que se dá, então, através do
espelho, é a passagem da indivisão do
ego e do id para sua diferenciação.
De um lado, o mundo natural, depois da passagem, o caminho
para a civilização. Tonacci, no entanto,
represa a passagem, filmando o desempenho do homem-macaco
executando ludicamente sua toilette. É
um momento de jogo e este ser primordial o pratica cantando
uma música singela que evoca um idílio
onírico da década dos quarenta. A parafernália
do plano e a interpretação do ator tornam
impossível qualquer referência fixa sobre
este quadro. Além do mais, a presença
da câmera deixa escancarada esta "obra aberta".
Uma certa tendência atual poderia considerar o
filme mágico. Porém, esta qualificação
não é implícita em Bang Bang,
ela se explicita. Existe, de fato, um personagem
que é, justamente, o mágico. Quando surge,
ele assume quase a direção da cena, é
onipotente: provoca a desaparição de personagens,
faz aparecê-los novamente, reversibiliza os sexos,
enfim, seu poder é tão grande quanto o
do cinema. Sua luta é contra o trio de gangters
pela posse de uma valise Esta trinca, que se apresenta
em um depósito de ferro velho com os genéricos
do filme, é anárquica, composta por um
cego que dispara tiros em todas as direções,
um gangster narcisista e uma mãe gorda.
Nesta batalha, o mágico é derrotado: Nem
a magia resiste à complexidade do real, os gangsters
se encarregam de exorcizar o intruso, executando-o.
Esta pequena análise poderia prosseguir, pois
as seqüências que descrevemos constituem
pequena parte do filme, um trailer. E é
isso que o artigo pretende ser: um trailer.
O filme está pronto desde 1970 e não
foi lançado comercialmente. As distribuidoras
gastam toda sua energia em um problema específico:
O que podemos fazer para não termos mais imaginação?
Bang Bang está encalhado para gáudio das
mediocridades históricas e/ou folclóricas.
Os Institutos de Cinema são pródigos em
lugares-comuns: Como atrair o público às
salas de cinema? Blá-blá-blá.
Nelson Alfredo Aguilar
(publicado no Suplemento Literário de O Estado
de São Paulo em 20 de maio de 1973)
1. Ave,
palavra, Livraria José Olympio Editora, Rio
de Janeiro, 1970, pg. 231.
2. A escritura e a diferença,
Editora Perspectiva, São Paulo, 1971 pg. 154.
3. Écrits 1, Editions
du Seuil, Paris, pg. 59. As referências à
fase do espelho podem ser encontradas no Vocabulaire
de la Psychanalyse de J. Laplanche e J. B. Pontalis,
P.U.F., Paris, 1968, pg. 452.
4. Idem, pp. 89/90
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