Em
Impacto Fulminante, há aquela cena, ainda
no início, quando "Dirty" Harry Callahan
invade a festa de um magnata e lhe faz graves acusações
diante de toda sua família, acabando por provocar
o infarto do velho corrupto. Antes do ataque cardíaco,
porém, com ar debochado, o adversário
havia dito uma frase extraordinária: "Callahan
é a única constante num universo em incessante
mudança". Feito em 1983 (mesmo ano de O
Retorno de Jedi, por exemplo), Impacto Fulminante
é um filme revelador, embora freqüentemente
tido como "menor", ou ignorado como ponto
cego de uma carreira (o protótipo de filme que
os "novos admiradores" de Eastwood dificilmente
aprenderão a amar). Nesse filme fica demarcado
algo muito maior e mais enigmático do que uma
resistência às transformações
que Hollywood então atravessava. A qualidade
de "constante num universo que sempre muda"
extrapola a questão do anacronismo de uma dramaturgia
ou de uma técnica. A frase do adversário
de Callahan constata um modo de comportamento muito
próprio da persona de Clint Eastwood: basta observar
e perceber que uma mesma imagem perpassa seus filmes.
De Josey Wales a Frankie Dunn, é possível
encontrar o mesmo olhar e o mesmo semblante – ainda
que não o mesmo rosto.
A cada filme, a cada reimpressão de sua persona,
Clint se mostra o suporte de sua própria aparição,
o corpo que receberá o fantasma de si mesmo (num
verdadeiro curto-circuito da luz). Toda vez que se filma
como ator, a tarefa de Clint é fazer retornar
uma figura do passado; seu rosto é a superfície
que hospeda desde sempre a mesma imagem. Essa superfície,
no entanto, vem mudando de textura, ganhando rugas,
criando vincos, salientando cicatrizes. A mudança
não está na imagem projetada, portanto,
mas antes no seu local de projeção. A
partir disso, Clint desnuda seu rosto, transforma sua
pele numa tela com memória, superfície
sensível o suficiente para conservar traços,
vestígios de outras viagens – ao contrário
da tela de cinema que precisa começar uma nova
sessão sem nenhuma reminiscência da sessão
anterior; que precisa esquecer cada imagem que passa
para dar lugar à imagem seguinte. Na pele do
rosto de Clint, o cinema encontra uma tela viva, com
as artérias pulsando na testa – um muro que se
descasca enquanto assistimos à impassibilidade
da imagem que a ele se lança. Essa imagem resiste
aos efeitos de passagem (afinal de contas, o que são
esses efeitos para um fantasma?), mas a força
de sua permanência está na maneira mais
profunda e mais corajosa com que expõe tudo que
diz respeito à ação temporal.
Rosto e imagem, aqui, começam descolados um do
outro apenas para, no fim das contas, se reunirem numa
só coisa, o rosto se vendo iluminado por sua
própria imagem. Essa estratégia de Clint
constitui um modo até conceitual de filmar seu
rosto envelhecendo: a melhor forma de perceber a mudança
é colocando-a ao lado de algo imutável
– ou, no caso, sobrepor ambos. A dialética entre
aquilo que se mantém – a imagem, o ícone
– e aquilo que se modifica – a pele, o ator – é
o modelo em cima do qual seu rosto se redescobre. E
a estratégia é uma só, frontal
e direta: o olhar de Clint quase cruza com o nosso quando
ele aparece em primeiro plano.
A cena de Poder Absoluto em que Clint se esconde
atrás do espelho, imagem por si mesma evocativa
– mais que isso, um dispositivo realmente complexo –,
preenche a dupla equação da sua mise
en scène. Seu personagem vai parar naquela
situação quando é surpreendido,
enquanto praticava mais um de seus roubos artesanais,
pela chegada do casal formado pelo presidente da república
e sua amante, que mora naquela mansão. Ao ficar
escondido na penumbra, vendo a cena sem ser visto (o
vidro é transparente para ele e reflexivo para
quem está do outro lado), Clint soma à
ação de alguém que pratica uma
arte com as mãos – o roubo, mas também
os desenhos que seu personagem gosta de fazer entre
um "trabalho" e outro – aquela do observador
imóvel, do voyeur que se recolhe ao anonimato
para testemunhar uma cena (e não uma qualquer,
mas sim uma de sexo e assassinato, os combustíveis-padrão
do voyeurismo). Ele perfaz também uma tripla
via de diretor-ator-espectador. Ao se esquivar à
visão de quem está no filme, Clint se
entrega exclusivamente a nossa visão:
essa cena é uma confissão íntima,
ele se esgueira ao silêncio e ao escuro daquele
compartimento para nos sussurrar que ainda é
o mesmo, embora tenha mudado. O mais impressionante
da cena está no que ela revela sobre o rosto
de Eastwood se esgarçando da escuridão,
com melancolia, mas também com o vigor do ator/cineasta
gigante que ele já se tornara naquele momento.
Ele refaz ali, como já havia sido em Os Imperdoáveis,
seu auto-retrato crepuscular. Uma máscara pétrea
brota das trevas, quase em alto relevo, mais uma escultura
do que uma imagem bidimensional. Ou uma gravura, como
as que ele rabisca no início do filme.
Clint afronta e atualiza a assombração
do perecimento do corpo: ele rejeita as inscrições
simbólicas da passagem do tempo, aquilo que o
homem, nos seus ritos e nas suas artes, no mais das
vezes preferiu representar somente para manter à
distância. Para muitos, o cinema é menos
a escrita luminosa da vida do que a morte em marcha,
o universo em procissão fúnebre (o próprio
Bazin, em sua intuição profunda da ontologia
do cinema, falava de um "embalsamamento" das
coisas filmadas ao mesmo tempo em que exaltava a dimensão
epifânica acrescida à vida registrada pela
câmera). Ao se filmar no escuro, reduzido ao estado
de espectro, Clint sugere a realidade fantasmática
de um lugar de trabalho que pertence ao passado (o métier
do artesão). A luz que incide somente em
parte no rosto de Clint não alivia a obscuridade,
mas é antes "o paradoxo que faz a noite
durar". É como uma fagulha fulgurante da
memória, ou a tradução de um suspense
da consciência (por quanto tempo um rosto é
capaz de durar no cinema?). Eclipse parcial: uma aventura
dramática da luz, um trajeto de raios que se
esforçam em vão na tentativa de ultrapassar
a sombra (Menina de Ouro é o filme que
de fato traz ao primeiro plano esse tom de "em
vão").
Sarah Bernhardt, a grande estrela do final do século
XIX, falava da "atividade física do ator
que constrói no palco uma personalidade sobreposta
à sua própria". Na cena do principal
confronto em Impacto Fulminante, o rosto de Clint
em contra-luz corresponde ao momento em que sua persona
se constrói na negativa dessa fórmula,
na supressão da face. Ele esvazia sua imagem
sob o risco limítrofe da impostura, tornando-se
a própria escuridão personificada, o próprio
nada de onde seu herói emerge para socorrer a
sociedade de que ele mesmo se vê à margem.
Cabe a nossa consciência e nossa memória
restituir a face oculta – ou encarar o vazio como sua
manifestação legítima. A tradição
prescreve o oposto, isto é, que o fundo da imagem
seja apagado para fazer ressair o mito em primeiro plano.
Mas Clint prossegue em contra-luz (auto-iconoclasta?).
Antes de uma reticência a ser recoberta por uma
imagem, trata-se de uma reflexão no vácuo,
pois quando imagem e suporte se dão as costas
um para o outro, o resultado é o sumiço
de ambos – eclipse total. Permanece a silhueta inconfundível.
De onde vem essa dispersão súbita dos
raios, essa anti-reflexão ocorrida entre a imagem
de Clint e seu rosto-tela? Simplesmente da posição
que Impacto Fulminante ocupa em sua obra, a meio-caminho
entre um crepúsculo e outro, entre o cowboy
fantasma dos westerns e o treinador hesitante
de Menina de Ouro. Em 1983, é meia-noite
no jardim de Clint Eastwood.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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