Os
primeiros letreiros de Jouez encore, payez encore
anunciam que o documentário foi rodado em Shiraz
e em Paris, no ano de 1974. Shiraz, no entanto, só
aparece no filme de Andrea Tonacci enquanto sombra.
Apenas as primeiras cenas, em pouco mais de trinta segundos
de imagens, justificam a referência à cidade
milenar iraniana. Nessas imagens, plasticamente diferentes
de todo o resto do filme, pois captadas em película
de alto contraste, somos jogados no meio do deserto,
num imponente portal de pedra em ruínas. Ao lado
desse portal, vemos três figuras humanas. Uma
mãe com um bebê no colo e uma menina já
crescida, ambas vestindo túnica e véu
do mesmo tecido negro, que só lhes deixam parte
do rosto exposto. A câmera, num registro entre
o documentário etnográfico e o filme de
cavação, se atém primeiro à
menina, que está agachada e ao levantar faz também
a câmera se levantar e acompanhar seu movimento.
Desse plano aberto das três figuras, partimos
para um close do rosto da mãe com o bebê.
Algumas moscas estão sobre a criança,
e com três tapas no ar a mãe espanta os
insetos – e também a imagem, que ao final dos
gestos é interrompida pelo corte. No plano seguinte,
o último a denunciar Shiraz, vemos um lagarto
andar de um lado para outro sobre uma superfície
arenosa, e por cima dessa imagem o título do
filme, em letras vermelhas garrafais. Daí para
frente o que teremos são registros da explosão
da crise nos bastidores franceses da montagem dos Autos
Sacramentais, de Calderón de la Barca, uma
produção brasileira de Ruth Escobar (que
contratou Tonacci para realizar o filme), com direção
e cenografia de Victor Garcia e mais de uma dúzia
de atores brasileiros. Haverá ainda uma única
referência verbal à passagem pelo Irã.
Na grande catarse coletiva que fecha o filme, um dos
atores tenta justificar os atrasos nos ensaios e a pouca
disposição do grupo lembrando dos acontecimentos
"traumatizantes" de Shiraz. Que traumas são
esses, o filme não nos informa. As cartelas finais
falam da recepção da peça pelos
palcos do mundo, encerram a polêmica entre Ruth
Escobar e Garcia, mas não mencionam o período
iraniano (não sabemos nem mesmo por que a produção
passou por lá). Restam as poucas imagens da mãe
com seus dois filhos, o portal, as moscas, uns gestos
e o corte.
Jouez encore, payez encore. O nome vem de uma
conversa entre Ruth Escobar e o financiador francês
do projeto, que responde à sugestão da
produtora de mais investimento na peça dizendo
que, se pagar mais, seria preciso que eles (atores,
diretor, produtora) interpretassem mais. É justo
nesse ponto que Tonacci localiza seu olhar sobre aquela
situação. O clima nervoso dos bastidores
da montagem se coloca sempre a partir dessa oposição
entre as necessidades pragmáticas para a veiculação
de um discurso artístico e a vontade de liberdade
desta arte (liberdade mesmo da obrigação
de ter que existir enquanto discurso). O ponto central
desta tensão é a máquina. O diretor
Victor Garcia desenvolve uma estrutura metálica
circular com partes móveis por sobre as quais
os atores encenariam a peça. A engenhoca se quebra,
e é a partir daí que Ruth vai pedir mais
dinheiro ao mecenas, que os ensaios são interrompidos,
que a produtora e o diretor se engalfinham, que os atores
devem tomar partido de uma parte ou outra na grande
briga final. A certa altura, conversando com os engenheiros
que tentarão fazer a máquina voltar a
funcionar, Victor Garcia deixa claro sua idéia
para a função desta estrutura na montagem
do espetáculo. Em seu francês macarrônico,
acha na câmera de Tonacci as palavras para explicar
sua intenções. Diz, apontando diretamente
para a lente e copiando seu enquadramento com uma das
mãos, que sua máquina será como
a "machine du monsieur": sua função
é dar perspectiva à encenação,
mostrar ao espectador que aqueles acontecimentos pertencem
a uma anterioridade e que só se estendem para
frente, para o presente, através da pretendida
movimentação de suas engrenagens.
Victor Garcia rende graças à máquina,
e pensa a arte a partir dela. Quebrada, inutilizada,
a máquina inutiliza (pelo menos num primeiro
grau) também os impulsos artísticos atrelados
a ela. Os ensaios param, os atores não se dedicam
ao texto, o diretor se ausenta, a produtora é
obrigada a resolver as questões práticas
do conserto e negligencia o andamento dos trabalhos.
O caminho de Andrea Tonacci será exatamente o
oposto. Se Bang Bang descortinava a independência
entre a arte e o veículo, e pensava a partir
disso a relação possível entre
um e outro dentro de um ambiente ficcional-ficcional,
em Jouez encore, payez encore, esta mesma relação
estará presente no nível real-ficcional.
Os pouquíssimos livros sobre cinema brasileiro
que mencionam esta experiência de Tonacci fazem
quase sempre uma aproximação com o cinema
direto americano, um cinema de observação
não-intervencionista. A idéia de "intervenção"
já fora desmontada em Bang Bang. Era preciso
que a máquina-câmera conquistasse seu espaço
dentro do universo chamado cinema para, a partir daí,
trabalhar na construção de um filme, que
é sempre um recorte infinitesimal de um mundo
de imagens muito mais amplo. Esse recorte só
seria possível no momento em que a máquina-câmera,
submissa às vontades do objeto de seu registro,
convencesse o cinema a trabalhar a seu favor, vendendo
a idéia de que aquilo que produz (o filme) só
o faria maior. Victor Garcia trabalha em outra lógica.
Quer fazer a arte (o texto de Calderón de la
Barca e o trabalho dos atores) funcionar sob intervenção
da máquina, ser menor que ela. Usar a máquina
para dar perspectiva à história, e não
ver que perspectivas a história mesma se atribui
e então apostar nelas.
A máquina teatral sai de cena, e junto com ela
vão os personagens, o texto, e a interpretação
dada a eles. Ficam os atores, é deles que se
alimenta a máquina cinematográfica, e
num jogo reverso, é também dela que se
alimentam os atores. A câmera em Jouez encore,
payez encore nunca é estrangeira. Não
é mera questão de incorporação
ao ambiente retratado, um passo decisivo na estratégia
de abdicar da intervenção. A máquina-câmera
e suas funções parecem conhecidas e dominadas
por todos ali, que se utilizam dela para extravasar
as pulsões artísticas reprimidas pela
quebra da outra máquina. "Passarei ao teatro
das verdades, pois essas foram cenas de ficção",
é o que diz o personagem de Antônio Pitanga
numa das passagens de texto. As verdades de cada um
vão se alterando, se somando ou se opondo, e
sempre parecem surgir por conta da consciência
que se tem da câmera. Ruth Escobar e a atriz Maria
Rita posam abraçadas sobre uma cama, fazem carinho
uma na outra, brincam, riem, conversam – exibem-se para
a câmera. Algum tempo depois, quanto Ruth se encontra
com o grupo de atores e cobra empenho e compromisso,
perde a doçura inicial e expõe o caráter
irascível ("me recuso ao embuste" ou
"vocês estão todos umas merdas").
O teatro das verdades será evidenciado quando
Carlos Augusto Strazzer, assistente de direção
contrário à posição da produtora,
rebate suas palavras duras dizendo que o "numerozinho"
dramático encenado para a câmera de Tonacci
a faria ganhar muito dinheiro, mas não tinha
validade na discussão dos acertos necessários
para a continuação da peça.
Um baque. A mesma intenção de ascendência
que Victor Garcia queria de sua máquina é
pretendida pela atuação de Ruth Escobar
e demais em relação à máquina
de Tonacci. A câmera distante, que não
se intrometia na ação, que no máximo
buscava através de enquadramentos mais fechados
e zooms uma aproximação maior daquilo
que registrava, cuja postura era reflexo direto do reconhecimento
de sua posição dentro de um mundo de verdades
próprias, é traída pela mecanização
das relações. Algo mais que a pura convivência
artística (dinheiro, reconhecimento, fama) se
coloca entre as duas instâncias. São valores
que pertencem à lógica prática
de um processo de fabricação maquinal
das verdades, e não de invenção
livre e espontânea delas. O contrato entre um
mundo real-enquanto-ficção e a câmera
a torná-lo ficção-enquanto-realidade
se quebra. Jouez encore, payez encore já
não deve nenhuma fidelidade a este lugar em que
se realiza, e a partir da revelação desta
quebra, assume a tarefa de significar por conta própria.
A montagem, até então mero instrumento
de colagem entre um plano e outro, passa a comentar
aquilo que cola. Tonacci soma os gritos do ataque nervoso
de uma atriz com os gritos dos personagens do texto
teatral num ensaio dos atores. A ponte entre o teatro
das verdades e as cenas de ficção vai
se estreitando, ao serem sobrepostos os últimos
trechos da briga entre elenco e produtora (como quando
uma das atrizes, tentando efetivar o domínio
mecânico sobre a câmera, vem em direção
à ela e a desliga) e o primeiro ensaio da peça
que parece dar certo. Levado a tomar uma posição
diante da pretensão controladora externa, o cineasta
assume (por força das circunstâncias) o
comando. No último plano, depois da briga apartada
e dos ânimos arrefecidos, Antônio Pitanga
vira-se para a câmera e com um tom de jocoso alívio
diz "Tonacci...", seguido de um sorriso, e
o filme termina. Para que não se esqueça
que há alguém ali atrás em busca
da liberdade das verdades e mentiras do mundo, e que
só espera em troca a disposição
em manter a validade deste princípio.
E então voltamos à mulher iraniana com
as duas crianças, no começo do filme.
Essas três figuras totalmente alienígenas
em Jouez encore, payez encore são, no
fundo, sua grande carta de intenções.
O deslumbre da menina com aquele troço grande
e barulhento (nem máquina, nem câmera,
apenas uma coisa fora de seu mundo), a curiosidade da
mãe com as possibilidades desse novo aparato
ao mesmo tempo atraente e repulsivo (espanta não
só as moscas, mas a própria câmera)
demonstram uma certa pureza da auto-construção
imagética que Tonacci dali para adiante passaria
a perseguir. O correspondente direto desta família
muçulmana são os índios Timbira
de Conversas no Maranhão, Os Arara
que dão nome à série de três
episódios feita para a tv, o Carapiru de Serras
da Desordem, gente que desconhece as possibilidades
do registro de uma câmera e que, por isso, se
entrega muito mais abertamente ao jogo de erros e acertos
da vida e, inconscientemente, do cinema. Eis aí
um dos possíveis "traumas" de Shiraz,
eis aí aquilo que a trupe de Ruth Escobar agregou
ao cinema de Andrea Tonacci. Dali em diante o diretor
passaria a usar a máquina justamente onde ela
não fosse imprescindível, para então
recolocá-la no lugar que mais lhe interessa:
no papel de catalisadora das emoções de
um mundo que se reflete constantemente e que muitas
vezes não pode ou não tem a chance de
gravá-lo, seja num milenar portal de pedra, na
memória dos ritos e lendas passados de geração
a geração, ou mesmo na película
de um filme.
Rodrigo de Oliveira
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