Santo
Amargo da Purificação. O poeta Paulo Martins,
de Terra em Transe, surge e se estabelece como
o personagem-símbolo de uma consciência
que o Cinema Novo levara tempo para construir (ou assumir),
e que dali para adiante serviria como uma espécie
de oráculo das possibilidades de atuação
do cineasta enquanto gerador de um discurso que, errante,
falível, "amargo" que parecesse, não
tinha outra intenção que não a
"purificação", a transformação.
O percurso do poeta é feito de verdades cambiantes.
Enquanto existem e têm sua validade, são
levadas às últimas conseqüências,
para logo a frente serem abandonadas e substituídas
por outras. A verdade de Paulo Martins funciona pela
eliminação das contradições:
mesmo que suas idéias sejam opostas entre si,
esse choque será suavizado pela vontade, desde
sempre muito clara e inequívoca, de renovação
das estruturas em que está envolvido. O quociente
de seu dilema é a ambigüidade, e o instrumento
de exposição dela é o discurso.
Daí o famoso "distanciamento bretchiano",
a atuação em função tripla,
protagonista da própria memória, ao mesmo
tempo que narrador da história que revive e comentarista
crítico dela. O que garante a integridade de
Paulo Martins na passagem de um nível a outro,
o que torna legítimo seu sacrifício final,
o que faz compreensível sua flutuação
entre a esquerda populista e a direita totalitária
é a construção verbal que acompanha
estes momentos. O discurso como organizador de uma concepção
de mundo, forte o bastante para tornar maleável
a noção de verdade, mas nunca para poder
prescindir de uma.
É sob o signo dessa santidade que nasce o governante
que protagoniza Blá Blá Blá.
Num momento de crise, o político interpretado
por Paulo Gracindo vai à tevê fazer um
discurso à nação. Como diz mais
adiante um ativista cujos pequenos trechos de uma conversa
são colocados entre a fala do político,
"já não se trata mais de ideologia,
mas de temperamento". À Andrea Tonacci interessará
menos o conteúdo programático da fala,
suas idéias, sua tendência política,
e mais as reações que as nuances desse
discurso provocam em quem o profere, as variações
do estado de humor de Gracindo, correspondendo sempre
à carga dramática necessária para
dar força a este ou aquele dito, como uma espécie
de circuito que funciona bem desde que cada pequena
parte de suas engrenagens cumpra seu papel, mesmo que
uma não tenha rigorosamente nenhuma afinidade
com a outra. O discurso que atravessa todo o média-metragem
é como este circuito. Vai da defesa da paz ao
deslumbre militarista da guerra, do clamor pela recuperação
das estruturas de poder estabelecidas à decisão
firme pela luta armada, da vontade de adesão
e conquista daquele a quem o discurso é dirigido
(o povo) à sua total execração.
A semelhança com Paulo Martins não é
pouca.
"Chegou ao fim a ambigüidade do poder revolucionário",
eis a primeira frase do comício solitário
de Blá Blá Blá. A inconstância
do poeta de Terra em Transe já não
se sustentava, nem mesmo como a dúvida fundamental
de uma classe em crise quando chamada às pressas
a se posicionar dentro de um regime ditatorial. A resposta
a essa dúvida, a libertação como
saída para a crise, já não poderia
se dar pelo discurso. Tonacci, ao invés de tentar
eliminar as contradições de seu protagonista,
condensa-as, subtrai qualquer tipo de elemento dispersivo
e faz com que se sucedam de maneira calculada, torna
impossível negá-las como evidência.
A denúncia da verdade planejada do discurso se
dá também pela montanha-russa emocional
que Gracindo vive junto com as palavras que diz. Passa
da tensão leve à exaltação,
tosse, sua, recorre à goles de água, vai
rapidamente do tom de vencedor ao de vencido, até
se entregar ao clima de confidência sem esperança
com que encerra a transmissão. Existe aqui também
aquele mesmo distanciamento de Paulo Martins, potencializado
pelo dispositivo televisivo. O governante funciona ao
mesmo tempo como narrador e personagem da história
que cria em seu discurso. A televisão possibilita
sua existência imediata enquanto realidade e simulacro,
transmite ao vivo a narrativa que ele constrói
palavra a palavra. A câmera de tevê (mas,
na verdade, a câmera de cinema) deixa de ser mera
captadora da imagem e passa a ser cúmplice daquilo
que acontece à sua frente. Gracindo se vira para
ela, debruça-se derrotado sobre o púlpito,
exibe cada ruga, cada careta expressiva com a coragem
de quem se entrega de corpo e alma a cada frase dita
e que sofre as conseqüências das oposições
entre uma e outra. Essencializado, o discurso político
se transforma na situação quase patética
de um homem sozinho no escuro, com um microfone à
sua frente e uma série de contradições
escritas num papel. Amargo, mas sem qualquer expectativa
de purificação.
A terceira função do distanciamento não
poderia, portanto, ficar a cargo do político
– é como se a prática retórica
impedisse qualquer autocrítica. Os comentários
sobre a fala quem faz é o próprio Tonacci.
São imagens de arquivo que ao mesmo tempo que
ilustram as palavras de Gracindo mostram que a concretização
do que diz não pode se dar ao luxo da volubilidade,
a dúvida entre o sim ou não à guerra
pode até estar presente em frases consecutivas,
mas nunca no lançamento de um ataque aéreo;
a repressão às manifestações
públicas ou acontecem ou não acontecem,
é impossível meia barricada, meio confronto
com a polícia, meia pedra atirada para o alto.
Mais ainda, Tonacci forja algumas situações
dramáticas fora do estúdio de televisão
que dialogam diretamente com aquilo que é dito
dentro dele. Nelson Xavier e Irma Alvarez são
dois revolucionários ("agitadores",
diria o político), ele pragmático, pedindo
a luta armada, ela romântica, falando em futuro
e numa nova alvorada. Contrapontos morais àquilo
que Gracindo diz, usam na verdade os mesmos artifícios
discursivos, uma série de frases de efeito e
chamamentos que, se não os igualam ao governante,
pelo menos chamam atenção para a fragilidade
patente do discurso como forma de intervenção.
São, no entanto, os trechos de um grupo de capangas
que perseguem e matam dois supostos presos políticos
que ligam Blá Blá Blá mais
diretamente ao que acontecia no país naquele
momento. Essas imagens prenunciam aquilo que se exerceria
com muito mais força a partir de dezembro de
1968, com o AI-5. As restrições à
liberdade de expressão e manifestação
artística são radicalizadas, e com elas
todo tipo de repressão. Num regime de exceção
como o vivido no Brasil, a postura política do
grupo do Cinema Novo é posta definitivamente
em cheque. O que se desenhava no média de Tonacci
e que explode naquele ano como o chamado Cinema Marginal
era justamente a consciência da impossibilidade
de se manter qualquer discurso coerente e "verdadeiro"
sobre a realidade do país. Sai o Blá
Blá Blá monopolizador da verdade,
entra um outro, sem obrigações, sem culpas,
cuspido e escarrado com a força da garganta.
Sai o poeta, entram os boçais. Como pedia Sganzerla,
entram os filmes sujos, péssimos, "mentirosos".
E livres.
Rodrigo de Oliveira
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