"A
realidade se impõe sobre a ficção",
é o que diz logo no começo de seu discurso
o governante interpretado por Paulo Gracindo em Blá-Blá-Blá.
Dita em 1968, esta frase soa quase como o último
canto de uma consciência que estaria, dali para
adiante, condenada a desaparecer. Não mais a
imposição de uma instância sobre
a outra, fosse qual fosse a ordem dos fatores, mas sim
a dinamitação dessa barreira. O cinema
de Andrea Tonacci se prenderá justamente no exame
dessa junção entre realidade e ficção,
a partir da própria encenação dela.
Interessarão ao cineasta as implicações
particulares que essas duas expressões terão
quando começam a se conectar, e o estatuto de
suas especificidades no instante em que a contaminação
mútua estiver realizada.
Todos os longas de Tonacci poderiam ter a mesma sinopse.
O que acontece na tela é sempre o encontro de
uma câmera com um mundo e com os temas que surgem
dele, não apenas como aquele caminho obrigatório
pelo qual passa qualquer um que faça um filme,
mas como a própria motivação em
fazê-lo. A realidade de uma equipe que se encontra
com a ficção de um universo particular
– e isso se dá até mesmo nos documentários
do diretor, particularmente em Jouez Encore, Payer
Encore e Conversas no Maranhão que,
mais que documentos da montagem de uma peça teatral
na França ou da luta por terra de uma tribo indígena,
são a ficção da relação
que Tonacci estabelece com estes dois ambientes. Se
o encontro é o objeto do esforço do realizador,
o que vira filme é o processo, e esse processo
sempre envolve busca. Ou, no caso específico
de Bang Bang, perseguição, caça
mesmo.
Estamos no meio de um descampado, uma estrada de terra
com algumas montanhas ao fundo. Há um jipe andando
por essa estrada, guiado pelo protagonista. Durante
o filme inteiro, esta figura bizarra de múltiplas
personalidades (passageiro de táxi brigão
+ homem-macaco + herói boçal = Paulo César
Pereio-personagem) é perseguida por uma trinca
de bandidos não menos bizarros e múltiplos.
A esta altura da narrativa, depois de ter sido capturado,
liberto, e então novamente capturado, Pereio-personagem
parece ter conseguido se desvencilhar mais uma vez de
seus carrascos, e seu trajeto pela estrada aparenta
ser um recorte de sua fuga. Não só a alta
velocidade, mas sobretudo a trilha sonora, emocional
e incisiva, anunciando o perigo, confirmam essa impressão.
A música é pinçada do Hatari!
de Howard Hawks. No clássico americano ela
serve de base para a primeira seqüência do
filme, quando John Wayne e sua equipe de caçadores
de animais partem em busca da jóia rara das savanas
africanas, o rinoceronte. Em Bang Bang, logo
percebemos, o clima de uma perseguição
dramática fica mesmo só no clima, nunca
se materializa. Não há nenhum carro de
bandido à reboque do jipe do herói, o
ambiente não oferece nenhum perigo, a ameaça
sugerida pela música simplesmente não
existe. Mas a música permanece, o plano se estende,
e então percebemos que há sim uma perseguição
ali, de espécie totalmente diversa. É
o carro da equipe, onde está a câmera,
que persegue o jipe, onde está o personagem.
Tonacci/John Wayne caça o rinoceronte Pereio.
Tonacci, o filme, caça Pereio, o cinema.
Posto que cinema e filme são coisas diferentes.
O filme corresponde à realidade, é a pragmática
de um grupo de profissionais que precisam armar seus
equipamentos para registrar na película os contornos
de luz que interessem à peça que queiram
criar. O domínio do cinema é a ficção,
os universos particulares que acontecem quase espontaneamente
mundo afora, regidos por suas próprias regras,
que produzem histórias, situações,
personagens. O trabalho do diretor seria partir pelo
mundo à caça desse fenômeno, saber
reconhecer onde ele se realiza e então registrá-lo,
ou seja, passar do cinema (manifestação
livre e que se realiza no presente) ao filme (manifestação
dominada, encerrada dentro de um negativo, tornada passado).
Realidade e ficção, passado e presente,
filme e cinema, expressões de uma mesma oposição.
Se Tonacci escolhe justamente o momento do encontro
dessas duas últimas forças como a matéria-prima
de Bang Bang, dá a seu trabalho um caráter
metalingüístico inegável. Mas faz
uso de um procedimento que o diferencia da massa de
"filmes sobre cinema". Logo na quarta seqüência
do filme, Pereio-personagem, vestindo uma máscara
de macaco, faz sua higiene pessoal diante do espelho
de um banheiro, e cantarola Eu Sonhei Que Tu Estavas
Tão Linda acompanhado de um ruído
indefinido. A medida que vai terminando de fazer a barba
ou passar fio dental, fecha aos poucos o armarinho onde
fica esse espelho, mostrando a câmera que está
atrás dele, filmando-o (e nos damos conta que
o tal ruído era o barulho do motor da própria
câmera). Não há ninguém comandando
a máquina, nem sinal da equipe. Há apenas
a denúncia do aparato, devidamente dominado pela
vontade do homem-macaco, afinal é ele quem move
o espelho e decide quando devemos ver que há
ali uma câmera. A realidade da máquina
está sob o controle do agente da ficção.
É essa operação simples que faz
de alguns filmes metafilmes. Mas isso é pouco
para Bang Bang. Porque a questão aqui
não passa pelo "o que é o cinema?"
(cuja resposta, nesse caso, seria "cinema é
isso, uma câmera que registra uma situação
a 24 quadros por segundo"). O que Bang Bang
pergunta o tempo todo é "aonde está
o cinema?" e, mais ainda, "como faço
para ele trabalhar a meu favor?". Tonacci localiza
o cinema através de suas representações
mais clássicas e reconhecíveis: um herói,
uma mocinha, três bandidos. Inicialmente, pede
licença a cada um para olhá-los de perto,
o herói andando de táxi e depois vestido
de macaco no banheiro, os bandidos no esconderijo de
um depósito de carros, se preparando para a perseguição,
a mocinha deitada languidamente na cama, à espera
do herói. Em cada um desses momentos, apresenta
a realidade da câmera aos personagens, como que
tentando convencê-los a fazer parte daquilo que
ela produz: não só o próprio aparecimento
da máquina no espelho do macaco, mas o travelling
que acompanha os bandidos em sua primeira aparição
e que é feito a partir de um andaime móvel
ativado por um deles, ou o fechamento da íris
que escurece a tela e deixa em destaque apenas o rosto
de Jura Otero-personagem, olhando diretamente para a
câmera. A relação câmera-personagem
é amistosa, mas ainda trata de elementos diferentes
entre si.
Um corte e saímos do quarto para o lobby do hotel.
Pereio-personagem sai do elevador no fundo do quadro
e vem andando em direção à câmera.
Quando chega bem próximo à ela, é
empurrado de volta com violência. A seqüência
da ação mostra que os três bandidos
finalmente o encontraram, e supomos que veio de um deles
o ataque que derrubou o herói. Mão não
haviam mãos sobre ele, nem um gesto que pudesse
realmente confirmar que os bandidos o fizeram cair.
A impressão é que partiu da própria
câmera o empurrão. Fica claro, a partir
daí, qual a idéia de metalinguagem que
interessa a Andrea Tonacci. A câmera é
incorporada à cena, não somente como a
observadora do começo: é tão parte
dela quanto os personagens, e pode até mesmo
atuar como um. Realidade incorporada à ficção.
Mais tarde, no cativeiro de um quarto de hotel, esta
relação fica mais clara. Soma-se ao quarteto
formado por bandidos e mocinho a figura de um mágico,
e através de estalos de dedo esse mágico
ordenará a seu bel-prazer a composição
do quadro, que o tempo inteiro é fixo, e controlará,
acima de tudo, a montagem, pois cada estalo indica um
corte. O mágico, figura pertencente ao mundo
da ficção, tem o poder não só
de rearranjá-la, mas também de intervir
na própria realidade. É o cinema fazendo
o filme.
O primeiro ato de Bang Bang, encerrado quando
a situação da cena inicial se repete (Pereio-personagem
toma um táxi na rua e vai brigando com o motorista
durante a corrida) trabalha nessa chave do cinema acontecendo
espontaneamente e da câmera que precisa estar
lá para registrá-lo em filme, uma relação
de certa subserviência que chega ao cúmulo
na atuação do mágico-montador.
O desequilíbrio dessa relação será
desfeito a partir do momento em que a câmera assuma
sua independência dentro desse novo paradigma.
Ela já está plenamente integrada ao universo
ficcional, e justamente por isso é capaz agora
de passear por ele com liberdade. Isso acontece quando
se instala em Bang Bang a lógica de um
"pró-fílmico total". Tradicionalmente,
faz parte do pró-fílmico tudo aquilo que
se coloca à frente da câmera: personagens,
cenários, situações. Se a câmera
agora é um personagem, se sua fisicalidade serve
como componente do cenário, se sua presença
serve para forçar situações, então
ela já não existe como limite entre o
que se coloca à frente e o que se coloca atrás
dela mesma: tudo está potencialmente na frente.
A instância de registro não está
mais meramente incorporada a instância de ação,
ela é agora também uma instância
de ação. O pró-filmico total serve
para tornar o filme cinema.
Voltamos agora àquela perseguição
que comentamos no começo. Ela só é
possível a partir desse trajeto realizado no
interior de Bang Bang. A câmera não
precisa mais pedir um espaço no lugar em que
a ficção acontece (fixa na traseira de
um táxi, justo o táxi que o protagonista
toma; presa ao mesmo andaime móvel que o bandido
ativa em seu quartel-general), ela pode ir atrás
da ficção, caçá-la. Pode,
mais ainda, ser seletiva no que quer observar, como
na conversa de bar entre o herói e a mocinha,
quando realiza um campo/contracampo sem cortes à
lá O Desprezo, movendo-se lateralmente
de acordo com seu próprio interesse em captar
um ou outro. E a mesma transformação acontece
com o que está atrás da câmera.
A equipe de Bang Bang finalmente entra no filme.
No momento anterior a essa conversa, Pereio-personagem
chega ao bar e vai para o balcão, onde é
importunado pela insistência de um bêbado
(dublado por Pereio-ator, numa outra manifestação
da união realidade-ficção). No
fundo do balcão existe um espelho, e assim como
na seqüência do homem-macaco, a câmera
aparece refletida nele. Mas, diferente de lá,
agora há uma equipe manejando-a, e ela também
surge no espelho. Mais à frente, num intervalo
da perseguição não-realizada na
estrada de terra, membros da equipe aparecerão
inteiramente em cena, preparando a mocinha para também
entrar no jipe guiado pelo herói. E não
aparecem apenas como décor, são também
atuantes: atiram uma torta num dos bandidos, gargalham
na cena final.
Frente e trás da câmera harmonizados, o
estado de graça é absoluto. A expressão
mais emblemática do casamento efetivo desses
dois lados se dá naquele que Jairo Ferreira disse
ser um dos três mais belos movimentos de grua
da história do cinema (e que na falta da identificação
dos outros dois, fica sendo o mais belo de todos). Bang
Bang é repleto de ciclos que são sugeridos
mas que nunca se realizam, situações jogadas
na tela e das quais se espera algum desfecho mas que
nunca realmente se completam. O clima de vale-tudo da
parca narrativa, com personagens errantes, jogados em
não-ações cujo único propósito
é o próprio constrangimento da irrealização,
e a partir dele, o gozo dessa situação-limite
de figuras que existem por si só, dão
a Bang Bang uma instabilidade gigantesca, sugerindo
que ali dentro tudo e qualquer coisa pode acontecer,
e no entanto, "não acontece nada" (e
não é coincidência que seja esta
última frase o grande bordão de Olho
por Olho, primeiro curta-metragem de Tonacci). O
grande acontecimento do filme se dá num acidente
automobilístico que, é claro, não
vemos. O que aparece é apenas o resultado do
acidente, o carro dos bandidos virado no acostamento,
em chamas, e os próprios jogados pela estrada.
Bang Bang, cinema, oferece quase como um brinde
essa situação dramática extrema
e de certa forma conclusiva e Bang Bang, filme,
devolve a gentileza registrando o momento com uma grua
espetacular.
O congraçamento não apaga a natureza inicial
dessa relação. Cinema é rinoceronte,
e que não se esqueça disso. Como os caçadores
de John Wayne em Hatari!, Bang Bang-filme
recebe de Bang Bang-cinema uma porção
de chifradas. É quase um aviso, dizendo que,
apesar de ter possibilitado essa união (que no
filme de Hawks não se realiza), é preciso
sempre lembrar quem aqui é o objeto de desejo,
o motivo da caça. Um dos bandidos vem em direção
à câmera e pela primeira vez tenta formular
um fio narrativo que explicaria a trama e a posição
de seu personagem, e é interrompido pela equipe,
que lhe joga a já referida torta na cara. Depois
disso, na última cena, Pereio (que a essa altura
é tanto personagem quanto ator) repete sua higiene
pessoal no banheiro, e segue cantando a música
de Lamartine Babo. Diferente daquela primeira situação,
onde a câmera era apenas um dado na cena, agora
Pereio se exibe exclusivamente para ela, encena seu
número musical com empenho de vedete. A resposta
do filme vem na forma de uma gargalhada nervosa e estridente
que vai tomando a faixa sonora, e depois a própria
imagem, até aparecer graficamente na tela, como
o traço irregular e esquizofrênico da banda
óptica do som. Ao abuso dessa atitude corresponde
o ataque final do cinema-rinoceronte: com três
letras vindas do fundo da tela ("fim"), o
filme acaba. Todo o esforço de aproximação,
de metamorfose, de liberação, todo esse
trajeto cumprido pelo filme Bang Bang é
encerrado de maneira peremptória. Porque os filmes
acabam. O cinema? Esse continua, tem a duração
da vida. Caso sirva de consolo (e a palavra "consolo"
aqui é pura figura de linguagem), fica a certeza
de que Andrea Tonacci faz de Bang Bang – como
poucos – um legítimo "filme de cinema".
Rodrigo de Oliveira
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