Não deixa de ser irônico que
A Cadela comece com um teatrinho de bonecos,
e que os personagens briguem para ver qual deles terá
afinal o privilégio de declarar a “moral” do filme.
A ironia surge pelo fato de esse prólogo encerrar algumas
características que ligam toda a obra de Jean Renoir
e que imprimem a seus filmes qualidades que fazem dele
um dos maiores que já existiram. A primeira, mais famosa
e tornada quase uma fórmula quando aparece o nome de
Renoir, é o famoso “cada um tem suas razões” que aparece
como fala em A Regra do Jogo e reorganiza a distribuição
de papéis morais e atitudes exemplares em seus personagens.
A Cadela, então, não é nem uma comédia nem um
drama, e tampouco tem uma lógica narrativa pronta para
nos dizer quais os comportamentos certos e quais os
errados. O mundo se transforma, então, não numa lição
de moral e bons costumes, mas num terreno em que podemos
nos compadecer e debochar – muitas vezes ao mesmo tempo!
–, nos espantar e nos emocionar com o comportamento
humano, do gesto mais nobre ao mais deplorável. Já a
segunda característica é menos mencionada, mas talvez
diga ainda mais respeito à gênese da visão de mundo
de Renoir: a idéia de que em sociedade todas as pessoas
desempenham personagens e atêm-se a protocolos e formalidades
tão previsíveis e absurdos quanto as convenções cênicas
de uma trupe anacrônica. Daí o aparecimento de um Boudu
em Boudu Salvo das Águas ou do próprio protagonista
ao fim de A Cadela (ambos interpretados por Michel
Simon), como o mendigo que, por não participar das convenções
de gestualidade, vestimenta e dos jogos de aparência,
é o único que pode ser considerado “livre”, imune às
injunções que a vida social corrente nos obriga a aceitar
e reproduzir.
A Cadela dá início à série de obras-primas que
Jean Renoir realizará ao longo da década de 30, filmes
de um vigor absurdo, de uma leveza e ousadia estética
que só encontraremos, na época, num Ernst Lubitsch,
num Jean Vigo ou em Fritz Lang. Renoir é um desses cineastas
que, ao contrário de Chaplin, de Murnau, de Vertov,
precisavam da chegada do som para completar sua estética.
Pois o cinema de Renoir não vai se apoiar na pantomima
das atuações no cinema mudo e nem na plasticidade estática
da composição dos planos, mas num atrelamento à vida,
à sua fluidez, à naturalidade dos comportamentos. Num
filme de Jean Renoir, a caracterização dos personagens
é feita com tantos detalhes, os personagens falam, se
movem e olham de tal forma que nos assombramos com o
resultado e com a impressão de realidade. O mesmo se
dá com os movimentos de câmera e com o uso do som direto
em locação, inteiramente inovadores naquele momento.
O que Renoir faz com as convenções cinematográficas
é um pouco parecido com aquilo que ele faz com os jogos
de sociedade: despir o cinema de tudo que é posado,
ilusório, convencional, forçado, enfim, tudo aquilo
que pesa. Pois decisivo para ele era trazer ao cinema
o sopro da vida que há na natureza, uma vitalidade do
comportamento humano e, sobretudo, da passagem do tempo.
O filme é centrado em torno de três personagens, com
outros dois coadjuvantes. Nenhum desses personagens
está imbuído de valores sãos: cada um deles, à sua maneira,
tem uma forma própria de ser ao mesmo tempo amado e
odiado pelo espectador. Todos os cinco usam o poder
que têm – ou ao menos tentam usar – para submeter um
outro, e ao mesmo tempo apresentam pontos fracos que
serão utilizados por outro. Assim, a devoção que Maurice
tem por Lulu reflete a paixão de Lulu por Dédé, e ambas
culminam em níveis de humilhação fortes. Da mesma forma,
o golpe que o suboficial tenta aplicar em Maurice acaba
virando do avesso. Se Maurice parece mais adorável a
nós do que os outros, é principalmente porque ele parece
ter bom coração, pois, mesmo vivendo em seu mundo de
idiotia (o prólogo já o apresenta como um imbecil, alguém
que é cotidianamente zombado pela falta de inteligência
e ambição), ele tenta fazer boas ações e não deseja
mal a ninguém. Mesmo Lulu, a “cadela” a que o título
do filme se refere, não é inteiramente má e maquinadora.
Ao contrário, ela simplesmente deseja viver calmamente
com seu amado Dédé. Jean Renoir participa de um desejo
estético muito raro que é sempre dar mais do que uma
visão unidimensional de seus personagens, traçar relevos,
ampliar suas características – mesmo quando as figuras
principais da trama são quase caricaturais em sua construção,
como A Cadela (o otário, o malandro, a mulher
de malandro, a viúva sovina, o velhaco aproveitador).
Visto de perto, cada um tem sua forma de ser adorável
e sua forma de ser um escroque.
O final do filme, um pequeno epílogo simpático, apresenta
os dois “maridos” se reencontrando, depois de anos.
Os dois são mendigos. Antagonistas num determinado momento,
eles vibram quando se reconhecem, e contam sobre os
rumos que tomaram. Um movimento de câmera excepcional
nos afasta dos personagens, e passa a nos mostrar um
homem que sai de uma galeria de arte carregando o auto-retrato
pintado por Maurice, que não valia nada na época em
que ele o pintava, e que agora vale ouro. Quanto ao
próprio pintor, ele nem é reconhecido como artista (a
autoria deles é atribuída a “Clara Wood”, uma “americana”),
e tampouco goza das benesses do dinheiro que os quadros
valem. Ironia do destino? A maneira como a burguesia
desrespeita seus artistas? Nada disso. Renoir aqui não
faz nenhuma “reclamação”, não revela uma “injustiça”.
Simplesmente porque a mendicância aqui não significa
um estado deplorável de existência, mas, ao contrário,
uma maneira de se ver livre desse mundo de convenções
banais da sociedade burguesa (nesse sentido, Boudu
Salvo das Águas também tem um final parecido), uma
maneira de ser livre, de fugir do “bom tom” e do “bom
gosto” de uma vida de ornamentação sem nenhuma vitalidade.
Mais do que simplesmente criticar, Jean Renoir está
verdadeiramente interessado em esculpir novas formas
de vida. Anárquicas, grosseiras e cheias de vivacidade.
Autênticas a ponto de render a seus praticantes um zero
em comportamento. Pois um zero bem vivido vale mais
que um dez sem vigor.
Ruy Gardnier
Citações:
“Eu queria muito fazer A Cadela por um monte
de razões. Uma das razões mais importantes é o fato
de que eu adoro... gosto muito... enfim, é mais do que
isso... eu sou totalmente apaixonado, platonicamente,
pelas mulheres que ficam nas ruas de Paris, Eu queria
contar uma história que se passasse em torno de uma
dessas moças”
Jean Renoir
"Meu irmão tinha lido o folhetim em L’Oeuvre.
Eu entreguei a Renoir para ele ler,que adotou o texto
de primeira. Mas a idéia do meu irmão era que o filme
fosse a continuação de Nana. Que fosse uma espécie
de Zola moderno”
Pierre Braunberger, produtor
“No romance de Le Fouchardière, a moça é uma prostituta.
É um trabalho coo qualquer outro. Essa moça possui uma
das qualidades mais evidentes: ela é fraca. A fraqueza
é uma grande força, uma força da natureza, uma força
destruidora.”
Jean Renoir
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