SOY CUBA - O MAMUTE SIBERIANO
Vicente Ferraz, Brasil, 2005

Partindo de uma admiração declarada por um filme há pouco redescoberto, Vicente Ferraz concebeu o documentário Soy Cuba – O Mamute Siberiano. Sua principal motivação foi a simples curiosidade de saber o quanto mais sobre Soy Cuba (1964), do diretor soviético Mikheil Kalatozov, obra encomendada pelo governo cubano para ser um grande épico sobre a revolução e que acabou sendo considerada pouco revolucionária, tendo de amargar mais de trinta anos até ser lançada em vídeo.

A primeira coisa que salta aos olhos no documentário é a enorme preocupação do diretor estreante em ser o mais claro possível, utilizando uma narração em off didática e uma estrutura clássica de documentário na montagem – se iniciando em um contexto mais abrangente para aos poucos abordar as questões mais específicas, sempre se mantendo linear na ordem cronológica das etapas. O que poderia ser uma vantagem em um filme em que o próprio diretor se mostra surpreso com as inúmeras indagações que surgem a cada depoimento, tornando complexa a extração de conclusões por parte do espectador, se mostra o calcanhar de Aquiles de Ferraz. O excesso de “clareza” para com o espectador só serve para revelar que nem ele mesmo sabia que filme estava fazendo ao filmá-lo e ao montá-lo (ou aprovar a montagem, já que essa não é assinada por ele). A grande maioria das questões propostas pelo próprio na narrativa em off – como se deu surgimento do que ele chama “uma nova cinematografia latino-americana”, como o filme marcou o passado das pessoas que trabalharam nele, de que maneira foram realizados tecnicamente os planos mágicos do filme ou qual foi o processo de compreensão de Cuba por parte do diretor – é praticamente jogada para escanteio, e elas ficam perdidas no meio da enorme quantidade de material bruto (arquivos, trechos do filme, depoimentos e imagens de Cuba feitas ao léu) que o diretor reuniu durante a sua pesquisa. Seu dispositivo de investigação falha exatamente por sua falta de curiosidade de não ir mais fundo nas questões à medida que elas aparecem nos depoimentos ou na sua pesquisa em geral, como, por exemplo, quando nota que a assistente de direção foi a principal responsável pelo esforço de compreensão da cultura cubana, chama atenção para a constatação e a abandona no próximo segundo. Nesse sentido, ele parece se contentar em fazer um mosaico de peças pequenas que juntas formam muito poucas imagens.

No que diz respeito ao uso de imagens propriamente ditas, o filme sobre Soy Cuba parece divergir, ainda que talvez não de propósito, de seu objeto de estudo. Enquanto no filme de Kalatozov a preocupação com a estética parece vir sempre em primeiro plano, o que suscita uma interessante, embora pouco explorada, crítica do assistente de câmera do filme de 61, que o acusa de sobrecarregar a importância da imagem em detrimento do conteúdo, o documentário, por outro lado, não só dedica apenas dois comentários acerca das implicações do tipo de imagem que o filme privilegia, como parece ignorá-la em seu próprio filme, no qual utiliza imagens de Cuba com uma falta de tato impressionante. Mesmo assim, o conteúdo das imagens do Soy Cuba “original” ganha ainda mais importância do que os aspectos técnicos que possibilitaram a feitura de alguns dos planos mais mirabolantes e grandiloqüentes do cinema, provavelmente a maior curiosidade inicial do diretor. Ferraz cai em contradição ao afirmar, sempre através da narração em off, que essa curiosidade teria menos importância dentro do filme, quando acaba por não ter nenhuma. É interessante notar que se esse tivesse dado alguma atenção ao que chegou a ser seu principal interesse, o filme teria como dialogar com a crítica do assistente de câmera, que parece considerar Soy Cuba excessivamente tecnicista e virtuoso.

É através desse discurso falado, no mínimo, desorganizado, que o diretor tenta comunicar ao público todas as suas conclusões acerca do filme. Se a escolha de narrar todo ele utilizando um relato em primeira pessoa deveria conduzir o espectador, ao mesmo tempo em que o aproxima do diretor durante a jornada, ela acaba servindo apenas para confundir, fazendo afirmações no lugar do próprio material coletado. Nesse ponto, nota-se a falta de sintonia entre as intenções do diretor ao escolher determinados depoimentos e o que esses realmente estão dizendo. Tem-se a impressão de que a narração serve para dizer aquilo que o próprio entrevistador não conseguiu retirar do seu material.

Algumas histórias sem importância, aliadas a comentários extremamente pessoais por parte do diretor (em especial aquele em que diz ter tido dúvidas sobre o quanto o tempo não teria agido sobre o pianista compositor da trilha sonora) afastam do filme o aspecto proposto inicialmente, no formato de um processo de investigação, que aos poucos tomaria conhecimento dos pontos relacionados ao filme e os exploraria.

Não é de se estranhar que a parte mais interessante do filme seja quando diretor se foca em pontos que ele mesmo se propôs a trabalhar. Nos últimos 20 minutos, Ferraz se debruça sobre a recepção do filme no seu lançamento em 1964, depois focando seu relançamento na década 90 e entre os membros da equipe, que tiveram acesso a cópia em VHS e tomaram conhecimento do sucesso que aquele filme, a princípio, mal-fadado, tinha alcançado. Se há mais de 40 anos atrás o filme recebeu péssimas críticas, a ponto de sumir uma semana depois que entrou em cartaz, na década de 90, após Martin Scorsese e Francis Ford Coppola se unirem para lançar em vídeo “uma obra-prima perdida no tempo”, o filme foi amplamente elogiado, mesmo quando associado às intenções e ao contexto político da sua produção. Pessoas ao redor do mundo começaram a se perguntar quantas dessas obras de arte cinematográficas não estariam perdidas, preocupação que se encontra na cartela final do filme, servindo para unir o diretor ao coro dos apreensivos diante dessa “nova questão”. É nesse momento do filme que a fala dos personagens parece ser suficientemente satisfatória para inibir a narração. De fato, depoimentos interessantes aparecem questionando ou reiterando a verdadeira qualidade do filme. As melhores perguntas apresentadas no final, que o diretor habilmente evita responder, giram em torno de até que ponto Kalatozov teria feito um “Soy Cuba” que nega a afirmação do próprio título do início ao fim. Ao mesmo tempo, a função da crítica como formadora de opinião no sentido mais autoritário é posta em xeque. Seria interessante confrontar essas perguntas com as intenções de Kalatozov durante a produção do filme, com os processos utilizados por ele para compreender Cuba e com que tipo de exigências teve que conviver ao se fazer um filme cujo projeto era essencialmente ideológico. É uma pena que Soy Cuba – O Mamute Siberiano não nos forneça os meios para isso.


Bernardo Barcellos