Partindo
de uma admiração declarada por um filme há pouco redescoberto,
Vicente Ferraz concebeu o documentário Soy Cuba –
O Mamute Siberiano. Sua principal motivação foi
a simples curiosidade de saber o quanto mais sobre Soy
Cuba (1964), do diretor soviético Mikheil Kalatozov,
obra encomendada pelo governo cubano para ser um grande
épico sobre a revolução e que acabou sendo considerada
pouco revolucionária, tendo de amargar mais de trinta
anos até ser lançada em vídeo.
A primeira coisa que salta aos olhos no documentário
é a enorme preocupação do diretor estreante em ser o
mais claro possível, utilizando uma narração em off
didática e uma estrutura clássica de documentário
na montagem – se iniciando em um contexto mais abrangente
para aos poucos abordar as questões mais específicas,
sempre se mantendo linear na ordem cronológica das etapas.
O que poderia ser uma vantagem em um filme em que o
próprio diretor se mostra surpreso com as inúmeras indagações
que surgem a cada depoimento, tornando complexa a extração
de conclusões por parte do espectador, se mostra o calcanhar
de Aquiles de Ferraz. O excesso de “clareza” para com
o espectador só serve para revelar que nem ele mesmo
sabia que filme estava fazendo ao filmá-lo e ao montá-lo
(ou aprovar a montagem, já que essa não é assinada por
ele). A grande maioria das questões propostas pelo próprio
na narrativa em off – como se deu surgimento
do que ele chama “uma nova cinematografia latino-americana”,
como o filme marcou o passado das pessoas que trabalharam
nele, de que maneira foram realizados tecnicamente os
planos mágicos do filme ou qual foi o processo de compreensão
de Cuba por parte do diretor – é praticamente jogada
para escanteio, e elas ficam perdidas no meio da enorme
quantidade de material bruto (arquivos, trechos do filme,
depoimentos e imagens de Cuba feitas ao léu) que o diretor
reuniu durante a sua pesquisa. Seu dispositivo de investigação
falha exatamente por sua falta de curiosidade de não
ir mais fundo nas questões à medida que elas aparecem
nos depoimentos ou na sua pesquisa em geral, como, por
exemplo, quando nota que a assistente de direção foi
a principal responsável pelo esforço de compreensão
da cultura cubana, chama atenção para a constatação
e a abandona no próximo segundo. Nesse sentido, ele
parece se contentar em fazer um mosaico de peças pequenas
que juntas formam muito poucas imagens.
No que diz respeito ao uso de imagens propriamente ditas,
o filme sobre Soy Cuba parece divergir, ainda
que talvez não de propósito, de seu objeto de estudo.
Enquanto no filme de Kalatozov a preocupação com a estética
parece vir sempre em primeiro plano, o que suscita uma
interessante, embora pouco explorada, crítica do assistente
de câmera do filme de 61, que o acusa de sobrecarregar
a importância da imagem em detrimento do conteúdo, o
documentário, por outro lado, não só dedica apenas dois
comentários acerca das implicações do tipo de imagem
que o filme privilegia, como parece ignorá-la em seu
próprio filme, no qual utiliza imagens de Cuba com uma
falta de tato impressionante. Mesmo assim, o conteúdo
das imagens do Soy Cuba “original” ganha ainda
mais importância do que os aspectos técnicos que possibilitaram
a feitura de alguns dos planos mais mirabolantes e grandiloqüentes
do cinema, provavelmente a maior curiosidade inicial
do diretor. Ferraz cai em contradição ao afirmar, sempre
através da narração em off, que essa curiosidade
teria menos importância dentro do filme, quando acaba
por não ter nenhuma. É interessante notar que se esse
tivesse dado alguma atenção ao que chegou a ser seu
principal interesse, o filme teria como dialogar com
a crítica do assistente de câmera, que parece considerar
Soy Cuba excessivamente tecnicista e virtuoso.
É através desse discurso falado, no mínimo, desorganizado,
que o diretor tenta comunicar ao público todas as suas
conclusões acerca do filme. Se a escolha de narrar todo
ele utilizando um relato em primeira pessoa deveria
conduzir o espectador, ao mesmo tempo em que o aproxima
do diretor durante a jornada, ela acaba servindo apenas
para confundir, fazendo afirmações no lugar do próprio
material coletado. Nesse ponto, nota-se a falta de sintonia
entre as intenções do diretor ao escolher determinados
depoimentos e o que esses realmente estão dizendo. Tem-se
a impressão de que a narração serve para dizer aquilo
que o próprio entrevistador não conseguiu retirar do
seu material.
Algumas histórias sem importância, aliadas a comentários
extremamente pessoais por parte do diretor (em especial
aquele em que diz ter tido dúvidas sobre o quanto o
tempo não teria agido sobre o pianista compositor da
trilha sonora) afastam do filme o aspecto proposto inicialmente,
no formato de um processo de investigação, que aos poucos
tomaria conhecimento dos pontos relacionados ao filme
e os exploraria.
Não é de se estranhar que a parte mais interessante
do filme seja quando diretor se foca em pontos que ele
mesmo se propôs a trabalhar. Nos últimos 20 minutos,
Ferraz se debruça sobre a recepção do filme no seu lançamento
em 1964, depois focando seu relançamento na década 90
e entre os membros da equipe, que tiveram acesso a cópia
em VHS e tomaram conhecimento do sucesso que aquele
filme, a princípio, mal-fadado, tinha alcançado. Se
há mais de 40 anos atrás o filme recebeu péssimas críticas,
a ponto de sumir uma semana depois que entrou em cartaz,
na década de 90, após Martin Scorsese e Francis Ford
Coppola se unirem para lançar em vídeo “uma obra-prima
perdida no tempo”, o filme foi amplamente elogiado,
mesmo quando associado às intenções e ao contexto político
da sua produção. Pessoas ao redor do mundo começaram
a se perguntar quantas dessas obras de arte cinematográficas
não estariam perdidas, preocupação que se encontra na
cartela final do filme, servindo para unir o diretor
ao coro dos apreensivos diante dessa “nova questão”.
É nesse momento do filme que a fala dos personagens
parece ser suficientemente satisfatória para inibir
a narração. De fato, depoimentos interessantes aparecem
questionando ou reiterando a verdadeira qualidade do
filme. As melhores perguntas apresentadas no final,
que o diretor habilmente evita responder, giram em torno
de até que ponto Kalatozov teria feito um “Soy Cuba”
que nega a afirmação do próprio título do início ao
fim. Ao mesmo tempo, a função da crítica como formadora
de opinião no sentido mais autoritário é posta em xeque.
Seria interessante confrontar essas perguntas com as
intenções de Kalatozov durante a produção do filme,
com os processos utilizados por ele para compreender
Cuba e com que tipo de exigências teve que conviver
ao se fazer um filme cujo projeto era essencialmente
ideológico. É uma pena que Soy Cuba – O Mamute Siberiano
não nos forneça os meios para isso.
Bernardo Barcellos
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