Na
retrospectiva dedicada a Victor Sjöström na
29ª Mostra BR de Cinema, os filmes mais antigos exibidos
foram O Jardineiro Cruel (1912), sua estréia
na direção, Ingeborg Holm (1913)
e Predadores do Mar (1916). Impressiona perceber,
já nas primeiras experiências do cineasta,
o poderoso entrosamento entre beleza plástica
e vigor narrativo, como acontece no notável tratamento
do espaço.
Em O Jardineiro Cruel, Sjöström explora
a profundidade de campo em sintonia com o drama do personagem,
além de promover, seja por meio da perspectiva
ou da composição do quadro, uma intensa
relação entre figura e fundo. Nesse melodrama
em torno das vicissitudes de uma jovem pobre, desonrada
pelo pai do rapaz por quem é apaixonada, a natureza
e seus elementos fornecem não só belos
cenários como uns tantos significados e comentários
à narrativa. O idílio dos jovens namorados
acompanha o fluxo do rio, durante um passeio de barco,
ou surge integrado à deslumbrante amplidão
da paisagem formada por lago e montanhas. Na melhor
tradição do cinema silencioso, tão
afeito às simbologias, é numa estufa de
flores que a protagonista terá sua virtude brutalmente
conspurcada, pelo mesmo proprietário que ali
domestica a natureza, impondo-lhe limites e exercendo
controle sobre ela. A disposição ordenada
dos vasos é reforçada pelo enquadramento
em perspectiva, com a câmera parada registrando
a corrida da moça desde o fundo do quadro até
o primeiro plano, quando é alcançada pelo
seu perseguidor.
Depois da morte do pai, sem mais dinheiro ou virtude,
a moça passa a viver na casa de um velho rico,
que a trata "como a uma filha" (tenta disfarçar
o letreiro). Acostuma-se ao ambiente libertino da cidade
grande e, quando volta para seu lugarejo de origem,
é para descobrir que não existe mais volta.
Sua chegada rende um dos planos mais bonitos do filme,
com a câmera fixa no barco em movimento, enquadrando
a moça de costas na proa, voltada para a margem
que preenche o fundo do quadro, com seu ambiente florido.
A silhueta da protagonista desliza sobre a paisagem
bucólica, figura e fundo parecem seguir cursos
diferentes. Mais adiante e ela está sentada à
mesa da casa de chá, bebendo e fumando na companhia
de um grupo de homens. Aqui, Sjöström compõe
o quadro em duas metades bem distintas: de um lado,
as mesas com os fregueses; de outro, as águas
agitadas que cercam o lugar. O cenário natural
invade a cena representada, tirando-lhe o privilégio
da centralidade e incidindo sobre ela toda uma carga
simbólica, que já anuncia o colapso final
da protagonista. Na cena seguinte, ela volta à
estufa e lá é encontrada morta pelo mesmo
homem que havia desencadeado seus infortúnios.
A fraqueza moral da jovem em O Jardineiro Cruel
contrasta com a virtude inabalável da protagonista
de Ingeborg Holm, figura exemplar de mãe
amantíssima. No seu caso, a trajetória
de infortúnios tem início com a morte
repentina do marido, sem o qual os negócios não
mais prosperam. Na miséria, a família
é recolhida a uma instituição pública,
que encaminha os filhos a pais adotivos. Depois que
uma de suas crianças morre e outra não
a reconhece quando a vê, a mãe enlouquece.
No hospício em que cada louco tem um gestual
particular e revelador, ela circula embalando nos braços
um pedaço de pano ou de pau, como se fosse um
bebê. Muito anos depois, seu filho mais velho
volta de uma longa viagem como marinheiro e a procura
no hospício. Novamente reconhecida como mãe,
ela retoma a razão.
Nesse filme realizado quase inteiramente em estúdio,
Sjöström explora a profundidade de campo nos
interiores. Uma das poucas exceções é
o plano do filho no convés do navio que se aproxima
da cidade, filmado de maneira bem semelhante à
volta da protagonista em O Jardineiro Cruel.
As cenas iniciais de Ingeborg Holm têm
como cenário a casa da família, com a
mesa de jantar ao centro e atrás dela uma porta
por onde se vê o quarto ao fundo. O diretor faz
uso da profundidade primeiro para alcançar efeito
cômico. Num plano fixo sem corte, a família
faz a refeição à mesa enquanto
à esquerda do quadro o bebê vai engatinhando
para o fundo, saindo por uma porta no canto do cenário
e voltando à cena logo em seguida. Ator irrepreensível
em sua movimentação, o bebê conduz
o olhar do espectador e proporciona ao filme um momento
"criança travessa", de apelo garantido
no cinema silencioso.
Se nos harmoniosos planos iniciais se vê a sala
com o quarto ao fundo, a morte do pai é filmada
de maneira a estabelecer um contracampo espacial e também
dramático, ao constituir o reverso da felicidade
doméstica, um acontecimento deflagrador da dissolução
familiar. Enquadrado em primeiro plano à direita,
o pai agoniza e morre deitado na cama do quarto, enquanto
ao fundo, à esquerda, as crianças brincam
em torno da mesa da sala. Esse plano é também
o exemplo mais bem-sucedido de outro procedimento recorrente
no filme, que traz diversos enquadramentos cuja composição
estabelece dois campos de ação ou de interesse,
cindindo o quadro ao meio. É curioso como, em
alguns momentos, se instala um evidente desequilíbrio
entre os dois campos, com a ação ou o
interesse visual se concentrando em um dos lados – como
numa cena dentro da loja do marido, em que toda a movimentação
se dá do lado esquerdo, por trás do balcão,
enquanto por uns longos instantes o espaço à
direita permanece vazio.
Isso poderia passar por um detalhe pouco relevante,
um desacerto da direção, não fosse
a freqüência com que ocorre. A impressão
é de que alguns desses momentos um tanto desacertados
constituem etapas fundamentais na concepção
de espaço off trabalhada em filmes posteriores.
O desequilíbrio na composição do
quadro é resolvido quando a câmera se concentra
em determinado recorte espacial, estabelecendo uma tensão
e mesmo um suspense em relação ao que
pode estar acontecendo no extracampo. Em Ritual do
Amor (1922), os aprendizes de um artista supostamente
assassinado pela esposa, condenada a morrer na fogueira
pelo crime, estão a velar o corpo do mestre na
igreja, quando um deles olha espantado para um ponto
fixo, fora do quadro. Chama um dos companheiros, que
também passa a olhar na mesma direção.
Só depois de alguns torturantes segundos a câmera
revela o que estava no extracampo, atraindo os olhares:
uma imagem de Cristo chorando, com lágrimas escorrendo
sobre seu rosto. No mesmo filme, a morte do artista
é mostrada com um lento travelling da
câmera em sua direção. Encostado
na parede, ele desfalece e cai, saindo de quadro.
Ainda em Ingeborg Holm, outra estratégia
de utilização da profundidade de campo
diz respeito à inclusão de paisagens e
movimentações dos atores que são
vistos no fundo do quadro, emoldurados por portas e
janelas do cenário que se abrem para o exterior.
É um procedimento, no entanto, que será
trabalhado com maior apuro e impacto em filmes posteriores,
como Predadores do Mar (1916), movimentada intriga
sobre contrabando na costa de uma ilha de formação
rochosa. A história em dois tempos tem na primeira
parte o assassinato de dois inspetores de alfândega
por dois contrabandistas que, na segunda parte, planejam
novo golpe, mas são detidos pelo novo inspetor,
filho de um dos homens assassinados.
Não faltam episódios no melhor estilo
seriado, mesmo tom que caracteriza O Beijo da Morte,
dirigido por Sjöström no mesmo ano. Apesar
de não se pautarem pela verossimilhança,
os seriados (e também seus fãs) valorizavam
o realismo das ações "de sensação",
como os atores a exemplo de Douglas Fairbanks que dispensavam
dublês nas cenas perigosas e nas lutas acrobáticas.
Em Predadores do Mar, a seqüência
do assassinato segue à risca essa cartilha. Vilões
e mocinhos se enfrentam no barco, numa luta corporal
seguida de tiros – tudo no minúsculo espaço
do convés, com as ondas agitadas balançando
a embarcação. Eliminados os dois inspetores,
um dos contrabandistas quebra a golpes de machado o
fundo do bote, numa ação mostrada em plano
detalhe. Em seguida, vem um impressionante plano geral
com os dois criminosos de pé no seu barco, enquadrados
de costas, e ao fundo o barco dos perseguidores se enchendo
de água, lentamente, até afundar e desaparecer
por completo. André Bazin decerto aprovaria essa
utilização da profundidade de campo, na
qual se permite que a ação tome seu tempo
próprio, sem que haja interferência na
sua duração "real" por meio
de cortes ou truques de efeito. Como se não bastasse,
o diretor ainda estabelece o desdobramento de pontos
de vista, já que o enquadramento da cena pode
bem ser uma câmera subjetiva do menino que, escondido
no barco, testemunha o pai matar dois homens. Além
de compor eficiente seqüência de ação,
que não desaponta as expectativas quanto a uma
trama de aventura, a imagem do barco submergindo nas
águas carrega toda a dor daquela criança,
que vamos encontrar na segunda parte do filme como um
rapaz demente e arisco, sem que ninguém desconfie
por quê.
Nesse filme empolgante pelas inventivas soluções
de linguagem, Sjöström retoma e aperfeiçoa
algumas das experiências anteriores. Como em O
Jardineiro Cruel, se impõe a presença
majestosa da natureza, integrada à trama e ao
drama dos personagens. Ao invés de tomar a paisagem
apenas como um belo cenário, a câmera se
insere no ambiente. E esse comprometimento com o espaço
é tão vigoroso que supera as dificuldades
técnicas, como movimentar a câmera na encosta
rochosa para acompanhar o diálogo dos inspetores,
fazendo um percurso que tanto faz avançar a intriga
quanto revela a personalidade da geografia local; ou
ainda nas filmagens dos botes em movimento, com a câmera
em permanente ajuste com o ritmo das ondas e colocada
em ângulos que reforçam a vulnerabilidade
dos personagens cercados pela agitação
do mar.
A mobilidade da câmera surpreende em diversos
momentos, nenhum entretanto comparado a um inesperado
travelling lateral entre dois ambientes do cenário.
Já na segunda parte, os dois contrabandistas
estão no escritório da casa e preparam
nova investida. A câmera se desloca lateralmente
para enquadrar também a sala contígua,
de onde o filho acompanha toda a conversa, com o ouvido
colado à parede. O enquadramento fica simetricamente
dividido, separado ao meio pela parede entre os dois
cômodos. Esse travelling lateral resolve
admiravelmente o desequilíbrio daqueles planos
nos quais o foco de interesse se concentra em um dos
lados (também presentes nesse filme), ao mostrar
primeiro a conversa para só depois introduzir
o espaço contíguo, já com o rapaz
a postos junto à parede. A transição
dispensa o corte mas não deixa de contrapor ambientes
distintos, reforçando a tensão entre eles
e também a diferença em relação
ao crime anterior, já que desta vez o rapaz não
é testemunha involuntária e passiva. Ele
aproveita a oportunidade, ouve a conversa e depois denuncia
os planos dos contrabandistas ao inspetor.
Em O Jardineiro Cruel, o trabalho com a profundidade
de campo privilegia a relação entre personagem
e natureza, enquanto em Ingeborg Holm ele se
mostra mais elaborado nas cenas em estúdio. Predadores
do Mar, por sua vez, empreende uma desconcertante
combinação entre os dois tratamentos.
O primeiro impacto é o cenário da sala,
na casa do contrabandista e sua família. Ao fundo,
uma porta se abre não para outro cômodo
(como em Ingeborg Holm) mas para o mar! Naquele
cenário construído em formato tradicional,
como o mais prosaico palco de teatro, a natureza se
faz presente (ainda que, nesse caso, provavelmente graças
a uma trucagem) e literalmente cria nova perspectiva
para a cena, insinuando o vasto horizonte para além
da aparência familiar e da conformidade social,
como a intriga irá comprovar.
A combinação entre cenário construído
e cenário natural surge também nos planos
do escritório do inspetor, com amplas janelas
que deixam ver toda a movimentação do
ancoradouro, com pessoas passando no cais, barcos atracados.
Aqui não se trata de efeito: o cenário
"interior" é montado ao ar livre (só
as paredes, sem o teto), de frente para a paisagem que
interessa e com a vantagem de poder contar com a luz
do sol. Esquema semelhante será utilizado em
Terje Vigen (1917), adaptação do
poema de Ibsen sobre velho marinheiro que se transforma
em ressentido ermitão, depois de ser preso injustamente
e perder a esposa e a filha. Em certo momento, ele abre
a porta de sua cabana e temos a inesperada visão
do mar, não a placidez de uma praia, mas com
a violência das ondas batendo nas pedras. É
como se a casa se transformasse ela mesma num rochedo
ou num barco à deriva, num simbolismo quase fantasmagórico.
No filme, a dramaticidade no embate entre homem e natureza
é levada a territórios mitológicos,
como no famoso plano do protagonista (interpretado por
Sjöström) que em sua indignação
levanta os punhos contra os céus, diante do mar
revolto – homem, natureza e divindade no mesmo plano.
O tratamento do espaço e, em especial, as experiências
com a profundidade de campo nos primeiros filmes de
Sjöström são admiráveis e, felizmente,
estão longe de constituir casos isolados na filmografia
do cinema silencioso. Um dos muitos diálogos
possíveis é pensar na relação
entre esses filmes do diretor sueco e La lutte pour
la vie (René Leprince e Ferdinand Zecca,
1914), produção francesa da Pathé.
Se no Sjöström dos primeiros tempos se sobressai
a relação entre homem e natureza em variados
matizes, no filme francês a profundidade de campo
e o trabalho com a perspectiva reforçam a interação
do personagem com os espaços urbanos. Numa seqüência
antológica, ele sai correndo pelas ruas de Paris,
seguindo uma carruagem. Fixada no veículo que
vai atrás, a câmera enquadra o personagem
de costas e, à medida que avança pelas
ruas, entram e saem de quadro alguns dos edifícios
históricos e pontos turísticos da cidade.
No final, quando acontece um incêndio na fábrica
onde o personagem trabalha, a ação tem
início e termina tendo como moldura as janelas
do seu escritório, através das quais se
vê o prédio em frente, que será
tomado pelas chamas. O tipo de construção
do cenário, a utilização de luz
natural e a ênfase na profundidade de campo são
bastante semelhantes ao que Sjöström irá
elaborar em Predadores do Mar.
Para além de procedimentos de linguagem, os dois
filmes compartilham também o traço moralista
que divide personagens entre bons e maus. No caso de
Sjöström (pelo menos dentro do universo dos
filmes exibidos na retrospectiva), essa convenção
narrativa ainda se sustenta nas primeiras obras, mas
a partir de Terje Vigen a ambigüidade moral
se impõe. É quando às invenções
de linguagem vêm se juntar, em seu variado mosaico
de perspectivas, as contradições da natureza
humana.
Luciana Corrêa de Araújo
|