SJÖSTRÖM NOS ESTADOS UNIDOS

Em 1923, Victor Sjöström deixa o país em que constituíra toda sua carreira para uma aventura americana sob a batuta de Louis B. Mayer: era chamado para ser diretor da Metro-Goldwyn-Mayer. Sjöström sai da Suécia deixando uma filmografia sólida e alguns filmes considerados como marcos do cinema sueco (O Fora-da-Lei e sua Mulher, 1918; A Carruagem Fantasma, 1921), além de um filão que vinha lhe rendendo trabalhos de grande reputação: a adaptação dos livros de Selma Lagerlöf (A Garota do Pântano, Os Filhos de Ingmar, Karin, FIlha de Ingmar, A Carruagem Fantasma). Pior de tudo: ele sai de um país em que é considerado um dos grandes nomes da indústria cinematográfica nacional para outro que já estava inflado de profissionais, e que jamais teve a tradição de cobrir de loas seus grandes gênios. O resultado é mais ou menos previsível: sem autonomia para levar a cabo projetos mais próximos de sua área de interesse, Sjöström – tornado então Seastrom para simplificar seu nome para os americanos – fica à mercê de roteiros desiguais, que ele nem sempre terá o talento de ultrapassar com sua qualidade de encenação. Assim é Aponte o Homem (Name the Man, 1924), seu primeiro filme feito em território americano, com um tema a princípio apropriado para o diretor – questões morais que surgem do comportamento de uma personagem feminina no seio de uma comunidade agrária puritana e hipócrita –, mas com uma economia dramática muito pouco matizada e solavancos de roteiro que por vezes jogam o filme no terreno da fantasia.

Aponte o Homem seria então o primeiro dos nove filmes dirigidos por ele em solo americano. Uma filmografia que envolve trabalhos com Greta Garbo, Lon Chaney, Edward G. Robinson e Lillian Gish, mas hoje é apenas conhecida pela menção de um filme, sem dúvida sua obra-prima, Vento e Areia (The Wind, 1928). A 29ª Mostra BR de Cinema só nos deu a conhecer uma pequena parte desse conjunto, exibindo três desses filmes e nos deixando observar apenas uma parte – mesmo que privilegiada – dessa trajetória tortuosa e encantadora. Além de Aponte o Homem e Vento e Areia, apenas a daptação de Nathaniel Hawthorne The Scarlet Letter – vertido displicente e vergonhosamente para A Carta Escarlate quando é de conhecimento geral (inclusive em filme com Demi Moore!) que o livro diz respeito a uma letra escarlate bordada na roupa da protagonista –, de 1926, foi exibida, deixando de fora filmes importantes como He Who Gets Slapped, de 1924, estrelado por Lon Chaney; A Lady to Love (1930), primeiro filme falado de Sjöström, com Edward G. Robinson e Vilma Banky no elenco, e o que resta de The Divine Woman (1928), único filme estrelado por Greta Garbo que está perdido em sua integridade mas que subsistem aproximadamente dez minutos. Assim, nos cabe apenas um retrato fragmentário do percurso de Sjöström pela indústria cinemtográfica americana, uma trajetória que, se devemos acreditar no relato que dela fazem René Jeanne e Charles Ford1, é repleta de incompreensões, injustiças, acidentes de percursos e projetos em que Sjöström não se sentia inteiramente à vontade.

No entanto, é impossível não notar uma consonância entre os projetos que são oferecidos a Sjöström nos EUA e alguns que ele realizara na Suécia. Se por um lado He Who Gets Slapped é uma adaptação de Andreiev que carrega um sentimento eslavo muito particular de humilhação, podemos ver por outro lado que em filmes como A Garota do Pântano ou Os Filhos de Ingmar que o tema não era estranho a Sjöström – muito pelo contrário, o corolário do típico sentimento das comunidades rurais puritanas da Suécia é o risco da humilhação quando se dá um passo em falso. Da mesma forma, se um filme como Confessions of a Queen tem mais a ver com a carreira de um Rex Ingram, igualmente não se deve esquecer que Sjöström na Suécia dirigiu intrigas de aventura e/ou suspense como O Beijo da Morte e O Monastério de Sendomir. E até a modificação do final de Tower of Lies – única adaptação de Selma Lagerlöf que Sjöström faria nos EUA – para uma saída conciliatória não é exatamente a única vez que tudo parece se acertar ao fim de seus filmes. O testemunho de Jeanne e Ford parece circular mais pelos lugares-comuns do poder de Hollywood contra os genuínos autores do que efetivamente tentar lidar com uma certa continuidade temática e formal nos filmes de seu biografado. Afinal, para cada imperfeição encontrável nos filme americanos, parece ter uma equivalente em sua obra sueca – mesmo Aponte o Homem, em seu relativo fracasso, não é pior do que o trivialíssimo O Monastério de Sendomir.

Pois, e é aí que gostaríamos de chegar, a arte de Victor Sjöström não traça uma filmografia inteiramente coerente e esteticamente coesa a cada filme, e por vezes ele é só um bom encenador de um determinado tipo de sensibilidade sueca – daí a prolífica utilização de obras de Lagerlöf, escritora que ganhou o Nobel em 1909. Onde Sjöström supera todos os outros diretores de sua era são em breves mas decisivos momentos em que a natureza sai do controle do homem, assumindo ora uma dimensão sobrenatural (A Carroça Fantasma) ora um caráter puramente físico, parecendo se revoltar contra a civilização e começar uma revolução toda própria (Vento e Areia principalmente). O grande achado de Sjöström foi ter trazido à tela a idéia de que o homem nunca está sozinho: ou ele convive com fantasmas (Os Filhos de Ingmar, A Carroça Fantasma) ou ele convive com a natureza que perde o prumo (Vento e Areia, alguns momentos de A Letra Escarlate) ou ele convive com o corpo imaterial dos códigos morais (ao longo de sua obra). Em parte por causa das poucas potencialidades visuais que o motivo pode evocar, em parte por causa mesmo da pouca diferença entre o modo como seus filmes diferiam de outros no mesmo gênero, o corpo imaterial nunca vai chegar a conferir uma real singularidade a esses trabalhos.

Restam, no entanto, as duas modalidades de natureza animada, ora por um poder mágico ora pelo poder físico. Em seus melhores momentos, a partilha Suécia-Estados Unidos é feita dessa forma: a natureza como fantasma cabe ao Velho Continente e a fúria dos elementos pertence ao Novo Mundo (sem que haja um motivo propriamente geográfico, e mais possivelmente algo que flui no sentido de uma progressão da obra). Assim, em A Letra Escarlate, nos momentos em que Hester Prynne e Dimmesdale caminham de mãos dadas pelo campo, a câmera inicia um movimento vertiginoso, cambaleando para a esquerda e para a direita, e finalmente desenquadrando os rostos dos personagens principais, que são vistos apenas do tronco para baixo. Mesmo quando a câmera mantém-se sobre seu eixo, existe sempre uma candura, um mistério último da natureza que é respeitado: se Hester Prynne se esconde no arbusto, a câmera não se deslocará para reenquadrá-la. Da mesma forma, quando ambos estão à beira do riacho, a câmera permanecerá interessada na presença física do mundo material – os rostos dos dois refletidos na água que aos poucos ganham contornos, a folhagem que tampa a figura de Dimmesdale. Já estamos aí num outro registro, fora do romantismo e da conjugação entre ímpeto (natureza) e razão (homem), mas diante da determinação direta do primeiro sobre o segundo.

Naturalmente, Vento e Areia será apenas mais uma etapa do processo. Verdadeiro prodígio de sensorialidade, o filme retoma a idéia de uma natureza animada – a metáfora do cavalo que retorna a cada vez que o vento começa a bater –, mas é acima de tudo presença bruta do vento e da areia que sobe e torna inóspita aquela localidade. Novamente, temos aqui Lillian Gish como heroína, como uma menina mimada da cidade que vê como única opção morar com seus parentes num rincão distante – pelo modo como é filmado, quase um não-lugar de tão destacado do resto do mundo. Se estava apenas esboçada em A Letra Escarlate (e até transformada em hipótese narrativa com o "navio espanhol"), a equação entre homem e natureza aqui ganha ares novos, numa belíssima fábula de adequação. Ao fim e ao cabo, Vento e Areia se articula na relação de aceitação/não-aceitação pela bela Letty à geografia que a circunda e que, no limite, a determina. Ela faz as vezes de menina limpa e linda (cena terrível em que ela recebe os carinhos dos sobrinhos ao passo que a mãe provoca nojo com as mãos sujas de sangue animal), sempre pronta a ser protegida pelo primo ou por seus pretendentes, mas quando está sozinha no mundo, é débil diante de tudo. Ela precisará de uma prova de fogo que envolverá um ataque sexual, um assassinato e, sobretudo, a cumplicidade do vento, para que afinal ela se reconcilie com o meio que a circunda. Uma vez realizada a proeza, o vento já não será tão mais ameaçador, aquela casa será seu paraíso particular e Lige finalmente poderá ser um marido. Naturalmente, tudo isso se dá na verdadeira cena de acoplamento do filme, que é a caminhada de Letty contra o vento. Momento símbolo do cinema de Sjöström, essa caminhada é o momento que retoma a fantasmagórica chegada da carroça e a fantasmagórica presença do cavalo que precede o vento, e carnaliza, ao mesmo tempo confrontando, o sentimento: o sobrenatural, a natureza animada, a fúria dos elementos, o ímpeto humano, tudo isso é transformado num só, e a vitória se dá. Não só de Letty, mas de Sjöström. Não só de Sjöström, mas do cinema. E, por conseguinte, nossa.

Ruy Gardnier

1. Sjöström, de René Jeanne e Charles Ford. Coll. Classiques du Cinéma (dirigida por Jean Mitry), Editions Universitaires. Paris, 1963.

 

 






A Letra Escarlate: a câmera corre...


...cambaleia, desenquadra o casal...


...e reenquadra no momento da rendição:
um plano seqüência que iguala o furor
dos homens com a força da natureza.


Vento e Areia: Letty finalmente se entrega ao clima