O
risco da simplicidade é ser confundida com a obviedade.
A imagem que norteia Ponto Final –indubitavelmente
um dos melhores filmes de Woody Allen em anos, e possivelmente
em toda a sua carreira – aquela da bola de tênis suspensa
no ar, capaz de cair de um lado ou de outro da rede,
enquanto figura do destino ou da sorte talvez corra
esse risco. Assim como o filme corre o risco de parecer
um mero discurso maniqueista por parte do seu diretor,
a ilustrar em tom excepcionalmente dramático sua tradicional
misantropia, a golpes de afirmações gastas sobre o bem
e o mal.
Esta imagem, porém, também serve como metáfora para
a ambigüidade: suspensa no ar, sem decisão tomada, a
bola não é nem contra nem a favor, muito pelo contrário.
Uma ambigüidade que permeia de cabo a rabo Ponto
Final. Privilegiando matizes e não contrastes, a
fotografia do filme traduz visualmente as tensões e
contradições do seu protagonista e a grande interrogação
do filme: o que separa a vítima (das circunstâncias,
das próprias escolhas) do monstro calculista? Em que
medida controlamos nossas escolhas, somos responsáveis
pelos nossos atos e suas conseqüência?
Desde o início, Woody Allen cultiva a ambigüidade do
seu protagonista. Em que medida Chris Wilton é um calculista
frio, um ambicioso hipócrita o bastante para atingir
seu objetivo, seja de que modo for? Até que grau é sincera
a sua aversão pelo circuito profissional de tênis, seu
amor pela ópera, sua amizade por Tom Hewet, seu rico
aluno? Nunca abordando frontalmente as situações, belo
e sedutor, Allen faz de Wilton um personagem ao mesmo
tempo antipático – repulsivo, até – e com o qual o espectador
não deixa de se identificar: frágil, em constante posição
de inferioridade e no fim das contas, em certa medida,
a primeira vítima das circunstâncias.
Mestre no jogo das aparências, o ex-tenista sabe a maneira
certa de se vestir, conhece os códigos da boa educação,
escolhe as palavras certas. Um sedutor, que trocou o
tênis por um jogo para o qual tem mais talento: nas
quadras, frente ao adversário, não há lugar para hipocrisias,
é preciso revelar quem se é e Chris Wilton viu que não
seria um grande campeão. A metáfora da competição é
uma das chaves da personalidade do protagonista. Antes
de mais nada, Wilton tem um plano de carreira. Numa
curta cena, vemo-no lendo Crime e Castigo. Porém,
ele rapidamente troca o romance por uma obra de vulgarização,
dessas que “explicam” a obra de Dostoievski. Mais adiante,
numa conversa informal, o pai de Chloe confia à família
a sua simpatia pelo jovem (em oposição à namorada de
Tom, Nola, rejeitada pela mãe na mesma conversa), com
o qual teve “uma conversa muito interessante a respeito
de Dostoievski”. De origem modesta, Chris Wilton tem
como objetivo ingressar na alta sociedade britânica
e sabe que deve conhecer os códigos da posição que almeja.
Sua inabalável ambição nunca é afirmada frontalmente
mas vai, ao longo do filme, sendo confirmado por gestos
e situações
A escolha de Allen em ambientar sua história num país
em que a hierarquia social tem importância histórica
permite instaurar com naturalidade o confronto entre
o arrivista Wilton e a alta burguesia londrina. Com
maravilhosa acuidade, o cineasta americano evidencia
o desprezo pelo qual deve passar seu protagonista antes
de ser aceito em cenas corriqueiras, nos diálogos “banais”,
a esconder uma impiedosa relação de forças. Chris não
tem mais o direito de pedir um banal frango com fritas
no restaurante, deve aceitar o prato mais sofisticado
que lhe impõe gentilmente a namorada. Gestos, atitudes,
palavras. Allen estabelece o lugar de cada personagem
na escala social pelo modo como se comporta em sociedade.
E é justamente na cena do restaurante que evidencia
a cumplicidade entre Chris Wilton e Nola Rice, a namorada
de Tom.
A americana Nola também é uma intrusa. Mas ao contrário
de Chris, não se submete às regras, ou não o consegue,
talvez por não ambicionar fazer parte da alta burguesia
e teimar em realizar seu sonho. Diferentemente de Chris,
Nola não quer admitir que nunca será uma grande atriz.
O preço a pagar por desagradar a família de Tom está
no assassinato psíquico praticado pela mãe, que com
sutil violência e uma crueldade tão crua quanto requintada
lhe dá a entender que não é bemvinda e deve obedecer
às regras impostas. Se Nola é má atriz, Chris, em compensação
é um ator nato, capaz de esconder os sentimentos, ocultar
os próprios desejos, para ser o que se espera dele.
O encontro, ou melhor, o confronto desses dois “outsiders”
estrutura o discurso de Woody Allen: frente a frente,
de cada lado da mesa de pingue-pongue, estão o ambicioso
arrivista que deseja inserir-se no sistema e a jovem
aprendiz de atriz que aceita o que lhe trazem sua beleza
e sensualidade, mas não aceita entrar nos trilhos. A
terrível ironia do diálogo (“Quem será minha próxima
vítima?” desafia Nola) sublinha o inevitável destino
dos personagens e o desiludido ponto de vista do diretor.
Quando não se pertence a ele, é preciso pagar com sangue
o ingresso no seleto mundo dos ricos. Ponto Final
nos mergulha num universo de luxo, beleza e quietude
que esconde em seu âmago desprezo, crueldade e violência.
Uma impiedosa, e inevitável violência. O mundo cão com
luvas de pelica.
Esse mundo vai sendo delineado pela trajetória de Nola
e principalmente Chris. E é nessa trajetória também
que vai se delineando toda a ambigüidade do protagonista.
O anti-herói de Woody Allen confronta-se regularmente
com a mesma escolha entre desejo e ambição. Mas essa
escolha vai paulatinamente se turvando. O que, exatemente,
sente por Nola, por Chloe? Afeto, carinho, amor, desejo,
tesão? Incapaz de dizer não, e no entanto capaz de obter
o que quer, como na cena em que convence Chloe a desistir
de uma noite em tête-a-tête por um cinema com Tom e
Nola, submisso, hipócrita, Chris vai mesmo assim nos
enredando no seu drama, na medida em que sua hesitação
parece sincera. Qual o grau de hipocrisia do protagonista?
Equilibrando-se acima da rede, Allen felizmente não
aponta para uma resposta clara. E é nesse jogo de repulsa
e identificação com seu personagem principal que o cineasta
consegue seu maior tento: instaurar uma tensão crescente,
hipnótica, sem apelar para tradicionais facilidades,
a medida em que nos desvela a parte monstruosa que há
em nós.
É nessa terrível revelação que a referência ao modelo
dostoievskiano deixa de ser uma piscadela em direção
ao espectador, mera vaidade erudita. Na fusão da liberdade
e do destino, no embate entre luz e sombra, no desenlace
dramático, Woody Allen mostra-se afinado e toca no mesmo
tom que o romancista russo. Como em Crime e Castigo,
para que Chris Wilton não perca o que construiu, duas
pessoas deverão morrer, uma das quais totalmente inocente.
A metáfora musical, porém, talvez não seja a mais apropriada.
O cineasta não enxerga a possibilidade de redênção ou
justiça moral. Do outro lado da rede, aponta para uma
visão mais pessimista do homem, ao mesmo tempo em que
mostra a mesma acuidade ao observar o comportamento
humano, tanto nos matizes do universo da alta burguesia,
quanto no dramático momento em que Chris executa seu
terrível plano. Uma desilusão irônica a mostrar que
já não vivemos no mesmo mundo que Dostoievski. Se Chris
conhece o “infermo da dúvida” antes de decidir resolver
sua situação, após isso, descobre que não há justiça.
O filho que finalmente consegue ter com Chloe, mais
do que talento, deverá possuir sorte.
Carim Azeddine
|