ParadiseNow
é daqueles trabalhos cuja fama (fundada na polêmica)
se cria alheia à própria materialidade do filme. Primeiro,
uma história que trata dos momentos finais de dois palestinos
prestes a explodir junto de suas bombas em algum canto
de Israel e que carrega, fatalmente, uma idéia de humanização
dos terroristas, ou pelo menos a consideração de que,
bestiais que sejam essas ações, são levadas a cabo por
gente comum (consideração essa impensável em certos
círculos político-sociais). Depois, o burburinho que
se criou quanto à nacionalidade do filme. Aceito pelo
Oscar como um filme da Palestina, logo provocou a reação
do governo e de entidades israelenses, que afirmam que
a Palestina não existe enquanto país, apenas como uma
Autoridade autônoma. Quanto a este último dado, há algo
de realmente relevante na decisão dos realizadores em
bancar o filme como "palestino", mesmo que
seu financiamento seja todo estrangeiro. Essa marca
empresta ao filme uma propriedade imediata, credita
o olhar sobre estes personagens (conhecidos enquanto
estatística e notícia de jornal mas totalmente obscuros
enquanto indivíduos) como um "olhar de dentro",
ou mais ainda, como a expressão particular de um povo
e de uma nacionalidade que poucas vezes têm a chance
de fazê-lo. Por esse ponto de vista, a humanização referida
inicialmente é mais que uma mera conseqüência do tema
escolhido; é sim o ponto de partida, a declaração de
uma postura.
Mas aí esse discurso exterior ao filme se encontra com
o ParadiseNow que está lá na película,
jogado na tela, e essas duas instâncias não se casam.
Num primeiro momento, Hany Abu-Assad parece querer lidar
com a normalização do conflito e de suas bases mais
imediatas. Perto de um posto de checagem na estrada,
vemos um estreito caminho de terra cortando uma colina,
e por ali o trânsito de palestinos a pé é intenso. Quando,
ao longe, acontece uma explosão ensurdecedora, todos
os passantes imediatamente abaixam-se, esperam alguns
segundos até se certificarem de que o barulho está realmente
distante, e então seguem normalmente sua caminhada.
Tão natural quanto o ato de olhar o semáforo antes de
atravessar uma rua, essa reação é um sinal de que aquilo
que deveria ser extraordinário, uma exceção, já foi
cruelmente admitido como regra, já foi acomodado nas
vidas das pessoas como mais um dos elementos que as
compõem. Um passo à frente dessa normalização, Abu-Assad
encontra a banalização. Khaled, um dos homens-bomba,
está gravando seu vídeo de despedida antes da ação suicida,
e uma série de interferências transformam o clima pesado
da situação num momento de comicidade pura. Mais adiante,
vemos que esse mesmo tipo de fita é comercializado e
alugado numa vídeo-locadora como se fosse um blockbuster
americano. A martirização sai do registro do heroísmo
político-ideológico e passa à esfera do heroísmo folhetinesco,
num reflexo direto daquela mesma disposição da população
em se proteger rapidamente de uma explosão e logo seguir
em frente: se é preciso encarar a exceção da guerra
com naturalidade, o registro daqueles que lutam contra
essa distorção deve se localizar no máximo da artificialidade.
A resposta ao documentário do conflito é a ficção do
herói.
Mas que não se confunda a vontade de ficcionalizar a
figura do suicida-mártir com a simples fabricação de
protótipos dele. A humanização imaginada inicialmente
é apenas aparente, disfarce para uma estranha robotização.
Os personagens de ParadiseNownão falam,
cospem conceitos; não conversam, encenam discussões.
Levado às últimas conseqüências, o tal "olhar de
dentro" não consegue disfarçar que se realiza mesmo
é de fora. Hany Abu-Assad domina totalmente os protagonistas,
exerce sobre eles uma força aniquiladora: suas reações
à proximidade da morte, a relação de suas convicções
políticas e religiosas com o pragmatismo das funções
da causa, tudo parece estar devidamente controlado.
Um controle que se expressa no nível do banal – e não
como o reflexo do diagnóstico enxergado pelo diretor
em seu tema e que se volta para dentro do filme enquanto
auto-referência, mas tão somente como a simplificação
absoluta do significado daquilo que se quer dizer. Esse
domínio fica muito claro no uso que Abu-Assad faz da
câmera, tomada especialmente em comparação ao que vemos
em Munique, filme de Steven Spielberg com o qual
Paradise Now divide uma série de aproximações
(a mesma localização geográfica e política; a tentativa
de se pensar um grande tema a partir da mais baixa célula
atuante, os operários da guerra, de um lado os agentes
do serviço secreto israelense, do outro os homens-bomba
palestinos; a idéia da operacionalização do ativismo,
cujo efeito direto é uma espécie de linha de montagem
onde o produto final é a manufatura da crise; a presença
decisiva da figura paterna sobre os personagens centrais
como o fantasma de uma atuação que não pode ser repetida).
Enquanto rezam no esconderijo secreto do grupo terrorista,
durante a preparação dos atentados, Khaled e Said são
alvos da câmera, que se atira quase voluptuosamente
sobre os dois. Essas aproximações são o reflexo direto
da relação do diretor com estes dois personagens: dominados
seus sentimentos, conhecidos de cor, não há propriamente
a investigação de seu universo ou uma tentativa de compreensão
ou simples acompanhamento das suas trajetórias; há apenas
o registro direto, soberano (alguns diriam arrogante),
e por isso ignora-se o espaço entre personagem e câmera.
Spielberg quer igualmente olhar de perto os protagonistas
de seu filme. Mas quando dirige esse olhar a Avner Kauffman
e seus comparsas, utiliza quase sempre o zoom. A decisão
de contar a história desses agentes invisíveis (tão
invisíveis quanto Khaled e Said), ao mesmo tempo que
pede uma proximidade, reconhece, através do zoom, que
há uma distância enorme separando o realizador e seu
tema, e que, por mais perto que se possa chegar (por
um truque óptico, no máximo), sempre haverá esse espaço
– tradução direta de um mundo de significados subterrâneos
que dúzias de filmes não dariam conta de desvendar –
que não pode ser vencido, nem mesmo pelo virtuosismo
de algum movimento de câmera. Não deixa de ser curioso
que, justo no último plano, Abu-Assad use pela primeira
vez a aproximação pelas lentes, direto nos olhos de
Said, prestes a explodir o ônibus em que está, e como
esse artifício aparece totalmente esvaziado de sentido,
sugerindo um mistério que o resto da narrativa inteiro
já deu conta de "resolver". O zoom instala
em Munique o domínio do incerto, e em Paradise
Now parece acontecer o oposto. Um filme cheio de
certezas, sobre um assunto do qual nem sabemos ao certo
quantas e quais exatamente são as dúvidas.
Rodrigo de Oliveira
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