Após os marcos surrealistas Um
Cão Andaluz e A Idade de Ouro e dos documentários
Terra Sem Pão e Espanha Leal em Armas (pró-república),
Luis Buñuel mudou-se para os EUA, onde trabalhou na
Warner Bros., supervisionando as dublagens em espanhol
para o estúdio, e no MoMA, remontando O Triunfo da
Vontade para que servisse como propaganda antinazista,
além de ter sido expulso por Greta Garbo de um set de
filmagem. Persona non grata na ditadura franquista,
Dom Luis foi para o México, em 1946, à procura de emprego:
bem ao gosto do sistema de produção cinematográfico
daquele país, realizou as comédias de aventura Gran
Casino e El Grande Calavera. O sucesso comercial
do último, no entanto, permitiu a Buñuel dirigir o audacioso
Os Esquecidos, com que retornou definitivamente
ao primeiro plano do cinema mundial, ao ganhar, inclusive,
o prêmio de melhor direção no Festival de Cannes.
A fase mexicana, quando se juntou ao roteirista Luis
Alcoriza e ao fotógrafo Gabriel Figueroa, reúne os melhores
filmes de Luis Buñuel (exceção aos estupendos O Diário
de Uma Camareira e Tristana, Uma Paixão Mórbida,
feitos na França). Se Um Cão Andaluz e A Idade
de Ouro, como projetos ligados à vanguarda do surrealismo,
pregavam a ruptura a quaisquer convenções narrativas,
os filmes de Dom Luis no México, ao contrário, mostram-se
justamente clássico-narrativos. Em Os Esquecidos,
por exemplo, a história contada é límpida e cristalina:
o menino Pedro se envolve com a pequena bandidagem de
rua liderada por El Jaibo que, para se vingar de quem
supostamente o entregou à polícia, assassina Julian.
A fim de conquistar o amor da mãe ausente, Pedro se
emprega como aprendiz de ferreiro, mas é acusado de
roubo e vai para o reformatório. Ao sair, o reencontro
com El Jaibo precipita a tragédia.
Os Esquecidos, O Anjo Exterminador, O
Alucinado, Ensaio de Um Crime, Viridiana,
Nazarin: filmes narrativos que, todavia, sabotam
a si próprios, na medida em que tornam ambíguas e mesmos
incompreensíveis as motivações dos personagens. Por
que, depois de presenciar tanta injustiça e maldade,
padre Nazário se arma com um abacaxi e permanece teimosamente
honesto, íntegro e bondoso em Nazarin? Por que
os burgueses de O Anjo Exterminador não conseguem
deixar a casa onde estão reunidos? Por que Francisco
Córdoba, Archibaldo de La Cruz e Dom Jaime (protagonistas,
respectivamente, de O Alucinado, Ensaio de
Um Crime e Viridiana) afundam no amor obsessivo
e controlador, embora sejam cidadãos respeitados dentro
da comunidade? Pedro, em Os Esquecidos, admite
não ser bom, declara que deseja mudar, mas que não sabe
como: seus atos não se adequam às explicações racionais,
uma vez que se pautam pelos impulsos, pelos desejos
e pelas emoções que explodem sem aviso, como na seqüência
em que, com raiva e desconhecendo o motivo, mata as
galinhas à paulada (embora, ao final, concorde com a
nada convincente teoria do diretor do reformatório).
Pedro, El Jaibo, Ojitos, Metche e as demais crianças
e adolescentes que vagam pelos subúrbios miseráveis
da Cidade do México representam os esquecidos e os abandonados
pelo mundo dos adultos que, preocupados em impor a lei
e a disciplina, negam-lhes amor, carinho, afeto e compaixão
(o assustador discurso de Dom Carmelo, que prefere trata-los
como simples criminosos ou como meros animais). Em Os
Esquecidos, todos os adultos são personagens ausentes,
frios ou abjetos: a mãe de Pedro, que o odeia e que
o chama de vagabundo; o pai de Ojitos, que o deixa à
própria sorte na feira; os pais que El Jaibo nunca conheceu;
o avô surdo de Metche, mais zeloso com os animais do
que com a neta; o pedófilo que aborda Pedro em frente
à vitrine da loja; o velho cego que escraviza Ojitos,
assedia Metche e provoca a morte de El Jaibo. Dos casos
particulares ao coletivo, há o Estado em si, que deixa
os mais indefesos (e a quem deveria proteger) viverem
na desesperança e na desolação. Para Buñuel, a sociedade
em que seus jovens personagens estão imersos se encontra
tão viciada e tão corrupta que até a inocência infantil
já se perdeu por completo.
Não há, pois, redenção possível, em Os Esquecidos,
tanto para Pedro quanto para El Jaibo, que vivem e morrem
no abandono e na injustiça. Cidade do México, Paris,
Nova York, Rio de Janeiro, não importa: cada qual possui
o Dom Carmelo que merece, pregando aos quatro ventos,
como saída definitiva para qualquer crise, o retorno
ao poder dos tempos assassinos de Porfírio Diaz .
Paulo Ricardo de Almeida
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