Na primeira seqüência de Orgulho e Preconceito
vemos Elizabeth (Keira Knightley) fechar um livro após
um passeio no campo e entrar em sua agitada casa. Mrs.
Bennet (Brenda Blethyn) convence o marido a levar as
filhas, em idade de casamento, a um baile realizado
na cidade. Mary Bennet (Talulah Riley) toca piano, e
as outras filhas correm pra todos os lados, ouvem a
conversa dos pais atrás da porta e ficam alvoroçadas
pela idéia do baile que ocorrerá. Com longos travellings,
a câmera vai se infiltrando na casa de Mr. Bennet (Donald
Sutherland), trazendo o espectador pra junto daquele
ambiente simples e acolhedor, inserindo-o na conturbada
vida social da família. Após um passeio no universo
privado dos Bennet, somos conduzidos ao universo público
do interior da Inglaterra. Já na seqüência seguinte
estamos no baile. Música alta, muita gente, e uma ainda
agitada movimentação de câmera. Com longos planos somos
inseridos no ambiente de festa, e também apresentados
à sociedade local, sempre conduzidos pelas irmãs Bennet.
A construção narrativa utilizada pelo diretor Joe Wright
é bastante convencional. Ainda na seqüência da festa,
junto das irmãs Bennet, o espectador é apresentado a
Mr. Bingley (Simon Woods) e Mr. Darcy (Matthew Macfadyen).
Uma vez localizado espaço, tempo (a Inglaterra do século
XIX), e personagens, como numa apresentação, os conflitos
começam a se desenvolver, centrados na figura da protagonista
Elizabeth, a segunda das cinco irmãs. A estrutura clássica
já aponta, desde o princípio do filme, as personalidades
(muitas vezes calcadas em cima de estereótipos), e a
opção é menos pela surpresa de caráter psicológico ou
sociológico, e sim pelo desenvolver de acontecimentos,
que remontam a uma época marcada por tradições, segmentação
social e, por que não, rupturas.
Ainda que numa primeira leitura Elizabeth pareça ser
o contraponto de uma sociedade, essa visão tende a se
diluir quando pensamos nas demais personagens presentes
no filme. Se por um lado Mr. Darcy representa a austeridade
e a postura inglesa, por outro Mr. Bingley é a inocência
e espontaneidade, sendo ambos representantes de uma
classe abastada, que nem por isso sofre diferenciação
no tratamento dentro do filme (o balanço da câmera nas
coreografias no baile não pende para nenhum lado, e
atinge a mesma altura independente de fatores externos).
Bem como na literatura de Jane Austen, autora do livro
homônimo que deu origem ao filme, o interesse é mais
pela particularidade do indivíduo inserido no contexto
social (com barreiras rompíveis) e menos por um embate
de classes. Pois se a irmã de Mr. Bingley pode ser vista
como vilã, o contrário se faz valer quando se trata
da irmã de Mr. Darcy, aparentemente amável. Essa contraposição
de personalidades, construída com freqüência, obtém
seu ápice no duelo estabelecido entre Elizabeth e Lady
Catherine de Bourg (Judi Dench). Se a segunda é a incorporação
do preconceito, a primeira é do orgulho. Lady Catherine
ataca sem escrúpulos a família, a postura, os costumes
e atitudes de Elisabeth. Esta, no entanto, através de
respostas ácidas e dotadas de ironia, demarca seu território,
propondo uma força de sua personalidade, tomando partido
e defendendo, com orgulho, seus princípios e interesses.
O orgulho de Elizabeth é elemento bastante controverso
no filme, e trabalhado com sutileza, pois se por ora
ela defende sua origem, em determinados momentos é vencida
pelo amor, pela simplicidade e mesmo pelas circunstâncias
(vide o envolvimento com Mr. Darcy), deixando seu orgulho
de lado e tomando decisões que a aproximam mais da felicidade,
em detrimento de uma falsa representação. É através
de Elizabeth que o diretor rui com as barreiras sociais,
fugindo da esfera pública e de uma representação de
povo, e apelando para sentimentos pessoais e envolvimentos
amorosos, pois em Orgulho e Preconceito é o sentimento
dos personagens que se faz determinante.
Num filme em que o lado emocional se faz valer, é curioso
pensar que no ambiente privado da família Bennet ele
é representado pela figura paterna. É Mr. Bennet que
está do lado das suas filhas, que pensa suas vontades,
que não julga suas atitudes. O lado racional, incorporado
na figura de Mrs. Bennet, é o lado interessado no dinheiro,
patrimônio, fortuna, prosperidade. E é ela que de certo
modo impulsiona as filhas para a vida, contrapondo-se
à figura pacata do pai. A partir da própria casa dos
Bennet, podemos pensar a figura feminina no século XIX.
São as mulheres que conduzem a sociedade e paralelamente
(ou conjuntamente) o filme (inclusive pela presença
de Jane Austen e da roteirista Deborah Moggach). A força
motriz de Orgulho e Preconceito está toda centrada
na figura da mulher. São elas, como protagonistas, a
alavanca que desenvolve os acontecimentos diegéticos
e narrativos. Mas Joe Wright parece pouco preocupado
em criar conflito nas relações de poder homem-mulher,
e desmistifica, a priori, a imagem de uma sociedade
dominada exclusivamente pelos homens. Este tratamento
pré-concebido reflete-se no filme com naturalidade e
fluidez, distanciando-se de choques e embates – sem,
no entanto, deixar de fixar a idéia da sociedade tradicional
e patriarcal. O não aprofundamento de certas questões
presentes no filme, como uma análise comportamental
das irmãs Bennet, ou ainda uma investigação mais intensa
na questão política e de troca de poder alimentada pelas
tradições inglesas, acaba traçando um panorama um tanto
superficial de uma época, o que não elimina a possibilidade
de um filme desmistificador e questionador.
Raphael Mesquita
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