MUNIQUE
Steven Spielberg, Munich, EUA, 2005

Sem meias palavras: Munique é a caixa preta do cinema de Steven Spielberg. Nele, impossível achar refúgio em algum tipo de visão confortável, em herói positivo, ou ao menos num sentimento que possa enternecer nossos corações mesmo que tudo vá mal (o que era o caso de AI, sobretudo: o filme terminava em tristeza absoluta, mas entregava a quem quisesse o sentimento do filho finalmente sendo recebido pelo simulacro de mãe). Dessa vez, não há nenhuma certeza, nenhuma ratificação e tampouco favorecimento a um dos lados ("e não vai ter happy end", adicionaria Tom Zé). Munique não é só mais um filme da "fase sombria" de Spielberg. Se podemos ver a carreira do diretor de ET e O Império do Sol como um olhar inocente diante da diversidade do mundo – um olhar inocente com um quê de melancolia porque falta um pai, porque a travessia tem que ser feita com uma figura paterna ausente –, Munique simplesmente vai ser o total contracampo de todos esses momentos: o filme mostrará o que papai fazia quando estava ausente, o filme vai nos mostrar o que papai fazia quando saiu em viagem de negócios. E a visão é sombria: estamos diante de um mundo que não tem mocinhos nem bandidos, em que o seu amigo de hoje pode ser seu algoz de amanhã, em que a forma de garantir a vida dos filhos pode ser a mesma forma de garantir sua morte.

Desde o começo, há algo que mostra muito perceptivelmente que houve uma mudança: desta vez, a ausente é a mãe, que abandona o filho num kibbutz, o que acaba ocasionando a identificação materna de Avner, o protagonista, com a mãe-Israel (é o que comenta um dos personagens). Num dos momentos mais fortes do filme, Golda Meir comenta com Avner, quando ele está prestes a decidir ser o homem que o estado israelense estabeleceu para executar onze homens palestinos de renome: "Você se parece muito com a sua mãe". A frase é ambígua, e podemos interpretá-la como quisermos: ele se parece muito com a mãe biológica (o que não faria muito sentido naquele momento) ou com a mãe-pátria? Avner não será só o porta-voz da retribuição israelense ao ataque palestino à delegação de Israel nas Olimpíadas de Munique: ele será também a consciência destroçada do senso-comum israelense que acompanha pela televisão os acontecimentos daquele famoso dia de setembro (no começo do filme), como também será a alegoria traumatizada de um país que perdeu sua potência e sua alegria de viver depois de uma troca de destruições que só existe como função de auto-alimentação e deixou de ter qualquer referência à busca por um equilíbrio, pela paz (ao final dele). Munique tentará então partir do ponto-de-vista de um israelense médio, patriota, pai de família que, ao assumir a posição do vingador, vai se dar conta de que as leis que regem o alto mundo das decisões internacionais são inteiramente diferentes e autônomas em relação às que regem a vida diária das famílias que vivem suas vidas diárias. E, talvez pior que isso: que a interface entre elas é recheada de segredos, falseamentos e mentiras. Avner não é apenas um mossad, mas alguém que renunciou ao serviço secreto por contrato, e ainda assim será um super-mossad, alguém que se entregará de corpo e alma, 24 horas por dias, sete dias na semana, a fazer o serviço secreto de Israel, abandonando casa, mulher e o futuro filho.

De certa forma, Munique faz o que Apocalipse Now fez só pela metade: afirma a natureza de espetáculo das intervenções estrangeiras. Se Coppola faz de seu filme uma grande Las Vegas adaptada ao Vietnã, tira todo o proveito em termos de entretenimento (cenas "impagáveis" das coelhinhas, do bombardeio com Wagner,etc.), Spielberg prefere ir ao cerne da questão, um cerne muito pouco confortável: desde o começo, fica claro que a missão de Avner não tem nenhum fim prático de dar fim ao terror, mas unicamente a função midiática de expor ao mundo a morte de homens palestinos notáveis (filmados, na verdade, como homens honrados, ou até como intelectuais, no caso do tradutor das 1001 Noites, aumentando ainda mais a sensação de gratuidade e vergonha de todo o projeto) e fazer um revide olho-por-olho do episódio de Munique. A progressão do filme será a tomada de consciência de Avner de que o circuito de assassinatos é algo que diz respeito unicamente a uma queda-de-braço entre grupos, e não a uma estratégia maior de proteção a um povo. Resultado: Avner, desertor (finalmente parecerá mais com a mãe biológica do que com a mãe-pátria), dará proteção à sua família no Brooklyn, numa comunidade judaica, e abdicará de suas funções de grande assassino mossad. Do alto poder de estado, ele passa ao baixo poder familiar; sai, assim, de um ciclo de destruição para um de construção (um filho, é sempre uma esperança).

Se a luz de Janusz Kaminsky sempre foi um pouco pegajosa em seus brancos estourados tendendo a redenção, em Munique ela soa trágica, quase quimérica, dado que o filme não apresenta em nenhum momento qualquer solução palpável para o fim da troca de gentilezas entre estado palestino e estado israelense. Ao contrário, o caráter sombrio do filme e os poucos instantes de "luz da salvação" tornam tudo ainda mais soturno, irrespirável até. Os únicos instantes em que o filme se deixa respirar são aqueles em que um pai muito apegado, Michael Lonsdale, brilha como um sol eterno que acasala todo o terreno habitável. Pouco importa que o trabalho dele seja fazer tráfico de informações entre diversos serviços secretos: lá é um bunker de segurança, uma espécie de Estado auto-suficiente, de família protegida, é o único momento em que o filme tem uma luz calorosa, solar. Fora disso, resta um imprevisível metálico do azul sem vida ou uma luminosidade sombria, um contraluz que amedronta, sinalizando o cotidiano de salve-se-quem-puder dos cinco assassinos mossad. O fato de que os próprios cinco integrantes do grupo contra-terrorista sejam acima de tudo cidadãos normais cria ainda mais intensidade moral em relação ao projeto da mãe-pátria: estamos diante de um pai que coloca filhos desprotegidos em perigo. Que, ao final, tudo caia num campo de indeterminação, que os caçadores se transformem em caçados segundo uma mesma lógica muito semelhante (e tornada como que natural pela lógica da narrativa, que segue como que um ciclo de causalidades em que a justificativa de tudo ultrapassa a moral), só faz do Estado algo que finge ser um grande-pai mas na verdade é o verdadeiro pai ausente, aquele que se comporta segundo as leis do fora-de-casa fazendo pouco caso do dentro-de-casa, e deixando seus filhos em perigo por se comportar como tal.

Natural que, como tomada radical de posição diante de como a lógica da política internacional se transformou numa lógica do espetáculo, o maior rei do espetáculo do cinema americano nos últimos vinte anos queira também criar comentários sobre as incursões imperialistas dos Estados Unidos no Oriente Médio. Para isso, basta que conversem Ephraim e Avner, tendo como horizonte as duas torres gêmeas. É simples: Avner viu que a lógica da contagem de corpos não vai dar em nada; Ephraim, fiel à política de Israel, mantém que é preciso continuar a fazer terrorismo contra os palestinos. Avner, recusando o convite (ou seja, sendo de opinião diferente), convida Ephraim a jantar em sua casa. Ephraim, de opinião diferente, mas intolerante, recusa. Avner construirá sua família, ainda que não tenha a certeza de que se transformará em alvo em breve. Ephraim, junto com a mãe-pátria, continuarão sua peregrinação por mais sangue inimigo. As Torres Gêmeas, ao longe, contemplam Ephraim-Bush em sua tentativa de unicamente resguardar seu terreno doa a quem doer, doa inclusive a seus filhos.

Munique não é um filme de defesa da posição de Israel, não é um filme que tenta misturar o ponto-de-vista israelense com o palestino, não é um filme que tenta fazer dos Estados Unidos uma espécie de juiz das negociações de paz (ao contrário, o filme é muito lúcido ao mostrar como tanto alemães quanto os americanos da CIA negociaram com o Setembro Negro e deram dinheiro ao grupo para não terem problemas com ele). É, como Intervenção Divina, do palestino Elia Suleiman, um filme que diz um "Chega!" veemente a tudo isso (embora o de Suleiman seja mais gracioso e, talvez, contenha mais momentos de cinema que Munique), sem identificar heróis e bandidos, colocando a todos num terreno indiferenciado dos apátridas, pois ter um país é considerar acima de tudo o bem-estar daqueles que habitam seu território. Como nunca antes, Spielberg mostra a seus espectadores o que é perder sua alma, o que é ser desviado de seu destino por intervenção de um poder externo. Ou mortos ou traumatizados, os assassinos-heróis de Israel não serão exemplos, mas testemunhas de um processo de despersonalização por terem sido retirados de suas vidas e passado a um mundo que, tal como filmado, parece pertencer intrinsecamente a um mundo que perdeu seu rumo, um mundo desgarrado. Spielberg ainda permanece, mesmo que ligeiramente, com um olhar ingênuo: ele jamais seria capaz de admitir a interdependência entre o seio familiar e o poder central nacional, da mesma forma que ainda abusa de alguns efeitinhos gratuitos de suspense – como a patética seqüência da menininha com o telefone –, mas, com todo o seu idealismo e suas fórmulas, Munique é facilmente um dos filmes mais poderosos da temporada, e o filme mais forte que Spielberg faz em vinte anos.

Ruy Gardnier

 

 





Um tipo de filiação...


...e outro tipo: a luz dá a preferência.