Sem
meias palavras: Munique é a caixa preta
do cinema de Steven Spielberg. Nele, impossível
achar refúgio em algum tipo de visão confortável,
em herói positivo, ou ao menos num sentimento
que possa enternecer nossos corações mesmo
que tudo vá mal (o que era o caso de AI,
sobretudo: o filme terminava em tristeza absoluta, mas
entregava a quem quisesse o sentimento do filho finalmente
sendo recebido pelo simulacro de mãe). Dessa
vez, não há nenhuma certeza, nenhuma ratificação
e tampouco favorecimento a um dos lados ("e não
vai ter happy end", adicionaria Tom Zé).
Munique não é só mais um
filme da "fase sombria" de Spielberg. Se podemos
ver a carreira do diretor de ET e O Império
do Sol como um olhar inocente diante da diversidade
do mundo um olhar inocente com um quê de
melancolia porque falta um pai, porque a travessia
tem que ser feita com uma figura paterna ausente
, Munique simplesmente vai ser o total
contracampo de todos esses momentos: o filme mostrará
o que papai fazia quando estava ausente, o filme vai
nos mostrar o que papai fazia quando saiu em viagem
de negócios. E a visão é sombria:
estamos diante de um mundo que não tem mocinhos
nem bandidos, em que o seu amigo de hoje pode ser seu
algoz de amanhã, em que a forma de garantir a
vida dos filhos pode ser a mesma forma de garantir sua
morte.
Desde o começo, há algo que mostra muito
perceptivelmente que houve uma mudança: desta
vez, a ausente é a mãe, que abandona o
filho num kibbutz, o que acaba ocasionando a
identificação materna de Avner, o protagonista,
com a mãe-Israel (é o que comenta um dos
personagens). Num dos momentos mais fortes do filme,
Golda Meir comenta com Avner, quando ele está
prestes a decidir ser o homem que o estado israelense
estabeleceu para executar onze homens palestinos de
renome: "Você se parece muito com a sua mãe".
A frase é ambígua, e podemos interpretá-la
como quisermos: ele se parece muito com a mãe
biológica (o que não faria muito sentido
naquele momento) ou com a mãe-pátria?
Avner não será só o porta-voz da
retribuição israelense ao ataque palestino
à delegação de Israel nas Olimpíadas
de Munique: ele será também a consciência
destroçada do senso-comum israelense que acompanha
pela televisão os acontecimentos daquele famoso
dia de setembro (no começo do filme), como também
será a alegoria traumatizada de um país
que perdeu sua potência e sua alegria de viver
depois de uma troca de destruições que
só existe como função de auto-alimentação
e deixou de ter qualquer referência à busca
por um equilíbrio, pela paz (ao final dele).
Munique tentará então partir do
ponto-de-vista de um israelense médio, patriota,
pai de família que, ao assumir a posição
do vingador, vai se dar conta de que as leis que regem
o alto mundo das decisões internacionais são
inteiramente diferentes e autônomas em relação
às que regem a vida diária das famílias
que vivem suas vidas diárias. E, talvez pior
que isso: que a interface entre elas é recheada
de segredos, falseamentos e mentiras. Avner não
é apenas um mossad, mas alguém
que renunciou ao serviço secreto por contrato,
e ainda assim será um super-mossad, alguém
que se entregará de corpo e alma, 24 horas por
dias, sete dias na semana, a fazer o serviço
secreto de Israel, abandonando casa, mulher e o futuro
filho.
De certa forma, Munique faz o que Apocalipse
Now fez só pela metade: afirma a natureza
de espetáculo das intervenções
estrangeiras. Se Coppola faz de seu filme uma grande
Las Vegas adaptada ao Vietnã, tira todo o proveito
em termos de entretenimento (cenas "impagáveis"
das coelhinhas, do bombardeio com Wagner,etc.), Spielberg
prefere ir ao cerne da questão, um cerne muito
pouco confortável: desde o começo, fica
claro que a missão de Avner não tem nenhum
fim prático de dar fim ao terror, mas unicamente
a função midiática de expor ao
mundo a morte de homens palestinos notáveis (filmados,
na verdade, como homens honrados, ou até como
intelectuais, no caso do tradutor das 1001 Noites,
aumentando ainda mais a sensação de gratuidade
e vergonha de todo o projeto) e fazer um revide olho-por-olho
do episódio de Munique. A progressão do
filme será a tomada de consciência de Avner
de que o circuito de assassinatos é algo que
diz respeito unicamente a uma queda-de-braço
entre grupos, e não a uma estratégia maior
de proteção a um povo. Resultado: Avner,
desertor (finalmente parecerá mais com a mãe
biológica do que com a mãe-pátria),
dará proteção à sua família
no Brooklyn, numa comunidade judaica, e abdicará
de suas funções de grande assassino mossad.
Do alto poder de estado, ele passa ao baixo poder familiar;
sai, assim, de um ciclo de destruição
para um de construção (um filho, é
sempre uma esperança).
Se a luz de Janusz Kaminsky sempre foi um pouco pegajosa
em seus brancos estourados tendendo a redenção,
em Munique ela soa trágica, quase quimérica,
dado que o filme não apresenta em nenhum momento
qualquer solução palpável para
o fim da troca de gentilezas entre estado palestino
e estado israelense. Ao contrário, o caráter
sombrio do filme e os poucos instantes de "luz
da salvação" tornam tudo ainda mais
soturno, irrespirável até. Os únicos
instantes em que o filme se deixa respirar são
aqueles em que um pai muito apegado, Michael Lonsdale,
brilha como um sol eterno que acasala todo o terreno
habitável. Pouco importa que o trabalho dele
seja fazer tráfico de informações
entre diversos serviços secretos: lá é
um bunker de segurança, uma espécie de
Estado auto-suficiente, de família protegida,
é o único momento em que o filme tem uma
luz calorosa, solar. Fora disso, resta um imprevisível
metálico do azul sem vida ou uma luminosidade
sombria, um contraluz que amedronta, sinalizando o cotidiano
de salve-se-quem-puder dos cinco assassinos mossad.
O fato de que os próprios cinco integrantes do
grupo contra-terrorista sejam acima de tudo cidadãos
normais cria ainda mais intensidade moral em relação
ao projeto da mãe-pátria: estamos diante
de um pai que coloca filhos desprotegidos em perigo.
Que, ao final, tudo caia num campo de indeterminação,
que os caçadores se transformem em caçados
segundo uma mesma lógica muito semelhante (e
tornada como que natural pela lógica da narrativa,
que segue como que um ciclo de causalidades em que a
justificativa de tudo ultrapassa a moral), só
faz do Estado algo que finge ser um grande-pai mas na
verdade é o verdadeiro pai ausente, aquele que
se comporta segundo as leis do fora-de-casa fazendo
pouco caso do dentro-de-casa, e deixando seus filhos
em perigo por se comportar como tal.
Natural que, como tomada radical de posição
diante de como a lógica da política internacional
se transformou numa lógica do espetáculo,
o maior rei do espetáculo do cinema americano
nos últimos vinte anos queira também criar
comentários sobre as incursões imperialistas
dos Estados Unidos no Oriente Médio. Para isso,
basta que conversem Ephraim e Avner, tendo como horizonte
as duas torres gêmeas. É simples: Avner
viu que a lógica da contagem de corpos não
vai dar em nada; Ephraim, fiel à política
de Israel, mantém que é preciso continuar
a fazer terrorismo contra os palestinos. Avner, recusando
o convite (ou seja, sendo de opinião diferente),
convida Ephraim a jantar em sua casa. Ephraim, de opinião
diferente, mas intolerante, recusa. Avner construirá
sua família, ainda que não tenha a certeza
de que se transformará em alvo em breve. Ephraim,
junto com a mãe-pátria, continuarão
sua peregrinação por mais sangue inimigo.
As Torres Gêmeas, ao longe, contemplam Ephraim-Bush
em sua tentativa de unicamente resguardar seu terreno
doa a quem doer, doa inclusive a seus filhos.
Munique não é um filme de defesa
da posição de Israel, não é
um filme que tenta misturar o ponto-de-vista israelense
com o palestino, não é um filme que tenta
fazer dos Estados Unidos uma espécie de juiz
das negociações de paz (ao contrário,
o filme é muito lúcido ao mostrar como
tanto alemães quanto os americanos da CIA negociaram
com o Setembro Negro e deram dinheiro ao grupo para
não terem problemas com ele). É, como
Intervenção Divina, do palestino
Elia Suleiman, um filme que diz um "Chega!"
veemente a tudo isso (embora o de Suleiman seja mais
gracioso e, talvez, contenha mais momentos de cinema
que Munique), sem identificar heróis e
bandidos, colocando a todos num terreno indiferenciado
dos apátridas, pois ter um país é
considerar acima de tudo o bem-estar daqueles que habitam
seu território. Como nunca antes, Spielberg mostra
a seus espectadores o que é perder sua alma,
o que é ser desviado de seu destino por intervenção
de um poder externo. Ou mortos ou traumatizados, os
assassinos-heróis de Israel não serão
exemplos, mas testemunhas de um processo de despersonalização
por terem sido retirados de suas vidas e passado a um
mundo que, tal como filmado, parece pertencer intrinsecamente
a um mundo que perdeu seu rumo, um mundo desgarrado.
Spielberg ainda permanece, mesmo que ligeiramente, com
um olhar ingênuo: ele jamais seria capaz de admitir
a interdependência entre o seio familiar e o poder
central nacional, da mesma forma que ainda abusa de
alguns efeitinhos gratuitos de suspense como
a patética seqüência da menininha
com o telefone , mas, com todo o seu idealismo
e suas fórmulas, Munique é facilmente
um dos filmes mais poderosos da temporada, e o filme
mais forte que Spielberg faz em vinte anos.
Ruy Gardnier
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