A
multiplicidade cultural do Brasil já foi motivo
de inúmeras pesquisas antropológicas e
sociológicas. Rendeu também uma série
de projetos artísticos, seja no teatro, na dança,
nas artes plásticas e evidentemente no cinema.
A cultura nacional é bastante vasta e rica, dotada
de regionalismos, cada qual com sua especificidade.
De certa maneira, a indústria do entretenimento
apropria-se constantemente dessa ampla gama cultural,
incorporando elementos, ritos e tradições
na sua indumentária. Temos duas vias distintas
de possibilidades (ainda que estas possam se imbricar):
o painel e/ ou análise sócio-cultural
e o aproveitamento cultural na produção
artística. Recorrendo a um histórico na
produção cinematográfica brasileira
recente encontramos alguns filmes que atendem uma ou
outra destas diretrizes. Os documentários de
Eduardo Coutinho (O Fim e o Princípio
em especial) e O Prisioneiro da Grade de Ferro,
de Paulo Sacramento, podem ser vistos como projetos
de conhecimento e entendimento do panorama político-cultural
contemporâneo. Por outro lado O Auto da Compadecida,
de Guel Arraes e Central do Brasil, de Walter
Salles, apropriam-se de elementos da cultura como forma
(ou como base, no caso do primeiro) de incremento da
narrativa. Aqui é impossível não
citar Glauber Rocha, que talvez tenha sido quem mais
se utilizou das tradições populares na
construção narrativa de seus filmes (Deus
e o Diabo na Terra do Sol, O Dragão da Maldade
contra o Santo Guerreiro, etc.)
Devido a estas inúmeras incursões no território
brasileiro, criou-se uma certa banalização
de uma simbologia nacional, em especial quando há
excessiva preocupação em atender as minorias
(ou trazer a tona seus discursos). O cinema, como instrumento
de propagação de idéias, é
uma via fácil e rápida. Ora, parece bastante
simples trabalhar a representação no Brasil
a partir deste advento. Foquemos na mulher (e lancemos
um filme na semana de seu Dia Internacional). Pegamos
uma figura de Maceió, uma de Salvador, uma do
Rio de Janeiro, uma de São Paulo e finalmente
uma de Curitiba, criamos histórias enfeitadas
de conteúdo psico-sociológico, entremeamos
relatos documentais, e pronto: o Brasil está
retratado. Ou melhor, as Mulheres do Brasil. E assim
é o filme de Malu de Martino, que apropria-se
do argumento de cinco histórias independentes
(também escritas por mulheres) e faz um longa
calcado na presença de personagens’-tipos. E
se ainda existia a possibilidade de engano no que tange
a intenção do filme como representativo
de Brasil, seu slogan vem reiterar: "qualquer
semelhança, não é mera coincidência".
O filme se apóia nos mais inocentes clichês.
A mulher representativa de São Paulo é
separada do marido, tem 40 anos, e está a procura
de emprego, pois com a separação conjugal
sentiu necessidade de trabalhar. Na entrevista, ela,
toda enfeitada, disputa a vaga com uma garota jovem,
de All Star nos pés. Ela tem um amigo homossexual,
um vizinho (com quem se envolve) bem mais novo e um
filho pra criar. Temos então o drama urbano da
mulher paulista, recheado da dificuldade de reinserção
da figura da mulher no mundo moderno. Então a
solução é levar a personagem a
uma boate GLS, local de descoberta de um novo universo,
livre de preconceitos. Malu de Martino se esquiva da
possibilidade de aprofundamento em qualquer uma das
cinco histórias e mantém a superficialidade
talvez como estratégia de identificação.
Quando pensamos no conjunto do filme, não há
dificuldade de relacionarmos as cinco histórias,
pois a última delas retoma alguns plots das
demais, relacionando assim o papel feminino e a interação
intuitiva da mulher, que, cada qual a sua maneira, sofrem
dos mesmos dramas, e aspiram aos mesmos interesses.
O cinema brasileiro atual já apresentou alguns
filmes que de certo modo pretenderam dar conta de todo
o Brasil, ora fazendo um levantamento espacial (Deus
é Brasileiro, de Carlos Digues) ora fazendo
um levantamento artístico (Es tu Brasil,
de Murilo Salles). Ambos apresentam noções
vagas da constituição de nação
e subentendem que ali está concentrado todo o
demais território. A invenção das
tradições (parafraseando o historiador
inglês Eric Hobsbawm) se faz evidente nesta parcela
do cinema brasileiro, que parece zelar por um anacronismo
histórico e um deturpamento na visão política,
social ou cultural do Brasil contemporâneo. Em
Mulheres do Brasil isto está especialmente
presente na tentativa de afirmação de
tese e validade do discurso (embutido na ficção)
a partir da inserção de relatos documentais.
Resta saber o quanto o espectador (ou a espectadora,
como o filme pretende) se vê retratado no filme.
Raphael Mesquita
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