As
imagens em movimento trouxeram ao campo das artes –
entre tantas outras coisas magníficas – a possibilidade
de uma metamorfose ligada à duração, e que pode, nos
casos mais impressionantes, situar-se no interior de
um mesmo registro contínuo de espaço-tempo. A montagem
que foge do corte e se integra à plástica do plano,
como Bazin tanto defendia, tem lá sua parcela de metamorfismo.
“Proibir” a montagem implica trazer a metamorfose para
dentro do plano, ou seja, tirá-la da ordem abstrata
da relação entre cortes, entre elipses, entre raccords,
e entregá-la a uma noção de concretude que só se torna
evidente quando posta em ação ao longo do plano.
Luc Moullet também fará seu elogio a esse “fenômeno”
numa crônica em que exalta bastante a trivialidade com
que Haut, bas, fragile, de Jacques Rivette, de
um minuto para outro se transforma em filme musical
(“La métamorphose”, Cahiers du Cinéma nº 493). É verdade
que todo plano de cinema, em última análise, representa
uma metamorfose-em-trabalho: um plano nunca termina
como começou, mesmo o mais estático e breve, pois existe
lá a duração, o tempo se entregando sob a forma de percepção
– e, por conseguinte, transformando o objeto filmado.
A própria noção de plano, no cinema, implica de certa
forma forjar uma unidade para uma imagem que na verdade
contém uma infinidade de imagens, ou seja, de mutações
internas, de jogos de retração e expansão, de idas e
vindas. Mas existem os casos em que o filme quer sublinhar
esse aspecto de trânsito entre seus elementos, esse
contexto de formas mutantes, corpos mutantes, assim
como existem os casos em que as forças que se combinam
no interior da imagem – por intenção prévia ou não –
praticamente impõem esse sentido de metamorfose. A trucagem,
neste caso, está longe de ser uma necessidade. Tampouco
o movimento: basta haver um plano de cinema para haver
algo em transformação. E quando as imagens em movimento
tratam a metamorfose como tema, trazem-na para o centro
de suas preocupações, e o fazem com um mínimo de vigor,
os efeitos que surgem são perturbadores.
No mais clássico de seus clássicos dos anos 80, Um
Lobisomem Americano em Londres, John Landis obedeceu
à fórmula já defendida por Henri Michaux, especialista
em mutações: “instalar o tempo nas distâncias do
corpo”. Cada plano da extraordinária seqüência da
transformação em Um Lobisomem Americano em Londres
possui a duração da metamorfose a que corresponde.
Se uma orelha se estica, um breve plano-detalhe acompanha
sua remodelagem. Para os pêlos que crescem instantaneamente,
idem. As pernas se alongando são filmadas em plano médio,
enquanto o agigantamento do tronco exige um plano de
conjunto. Essa seqüência oferece, portanto, o mais inesquecível
exemplo de uma decupagem que usa o enquadramento como
escala geométrica, sendo que a medida em questão é muito
peculiar e intransferível: a medida de um corpo em mutação.
A duração e a escala do plano obedecem às transformações
que se inscrevem – temporalmente – no corpo do personagem.
À exceção da maquiagem, que se incrementa entre
um plano e outro no decorrer da seqüência (e soa como
a relíquia de uma Hollywood rapidamente ultrapassada
pela era digital), os efeitos especiais que marcam as
mutações das mãos, dos pés e de quase todo o resto do
corpo não precisam intervir nos planos do rosto, porque
nestes o sentido de metamorfose está impresso nas próprias
contorções dos músculos da face, no grito que indica
a dor da transformação do personagem. A expressividade
do ator fornece tudo de que o filme precisa para, naqueles
planos de rosto, estetizar a metamorfose, sem carência
de efeitos extras. O que aponta para um aspecto quase
mágico do cinema: principalmente se filmado em primeiro
plano, o rosto é já uma paisagem mutante – e muitas
vezes imprevisível.
Essa imprevisibilidade pode atingir um nível até mesmo
de ameaça: basta olhar os três fotogramas com o Maradona
vindo gritando em direção à câmera, quando marcou seu
gol contra a Grécia na Copa do Mundo de 1994. Ele, que
tinha ido àquela copa após um processo de “regeneração”
(são mais que conhecidos seus problemas com as drogas),
corre alucinado na direção da câmera de TV – acostumada
tanto a registrar sua arte quanto a perseguir seus “tropeços”
–, como a querer devorá-la. A aproximação e o desfecho
do grito são captados sem nenhum corte para uma outra
câmera, e sua força está nessa passividade do dispositivo,
que aceita a “raiva” de Maradona. Enquanto em Um
Lobisomem Americano em Londres o que constrói o
impacto estético da metamorfose é todo um trabalho artístico
(de casamento entre a composição dramática dos planos
e o aproveitamento criativo dos efeitos especiais),
na cena com o Maradona as condições favoráveis estão
justamente na banal onipresença televisiva. Foi a própria
vulgaridade da televisão, essa coisa de que as câmeras
estão sempre ali pro que der e vier, que permitiu aquele
triunfo do momentâneo e do impulsivo, que veio à tona
quando Maradona correu em direção à câmera mais próxima
para comemorar seu gol num despejo de energia vital
e ódio. O olhar de Maradona é lançado ao antecampo,
não propriamente à posição do cinegrafista, essa figura
– como em geral, no cinema – invisível e até – em se
tratando da televisão – impensável (quem produz as imagens
que recebemos em casa por antenas ou cabos vizinhos
às tubulações de gás, água, esgoto, telefone, eletricidade?),
mas antes à posição que uma câmera de TV encarna virtualmente.
O que há atrás da câmera a quem Maradona lança seu grito
incontrolável? O mundo, ou ao menos o planeta-TV.
A história é conhecida de todos: aquele grito lhe valeu
o teste antidoping no jogo seguinte, que deu positivo
e encerrou sua copa mais cedo. Mais do que qualquer
outra coisa, se Maradona recebeu uma punição foi pelo
olhar, pelo grito, pela fúria daquela explosão após
o gol contra a Grécia (logo contra os gregos, cuja mitologia
apreciava a metamorfose, e cuja arte sublinhava os movimentos
transitórios, desenvolvendo uma forma que expressava
a mudança, a passagem fluida de um “estado” do corpo
a outro). O craque argentino, grande ator expressionista
da história recente do futebol, sabia o poder de sua
expressão, e pagou pela violência extravasada naquele
registro. Tudo é profundamente dramático em Maradona:
a vitória, a derrota, as ascensões, as quedas. Sobretudo
as quedas. O rosto de Maradona naquela tarde – para
ele, particularmente gloriosa (glória passageira, com
dias contados, mas certamente a mais intensa e desmesurada
das glórias vividas naquela Copa do Mundo de 1994) –
equivaleu a toda a violência gráfica e emocional que
um filme de terror pode nos proporcionar. Um rosto que
nos cobrava muita coisa e ao mesmo tempo nada; que nos
mostrava superação e ao mesmo tempo o mais kamikaze
dos mergulhos; que nos atentava para vários traços de
uma personalidade controversa e ao mesmo tempo nos fazia
esquecer de tudo, de que havia um passado ou uma história
para aquele rosto (esquecer do homem para contemplar
o ícone – que nada pede além de presença). Violência
subterrânea que vem à superfície a partir de uma eclosão
brusca; rosto-paisagem gutural que mais ou menos antevê
seu próprio retorno ao limbo, tornando-se borrão um
pouco depois de tirar os olhos da câmera e um pouco
antes de abandonar o quadro. O vulto que impregna essa
imagem congelada justo na fração de segundo que corresponde
à sua expressão mais indefinida, mais desconcertante,
esse vulto é a fábula assustadora produzida por uma
câmera que foi pega desprevenida. Os platôs deleuzianos-guattarianos
nos avisam desde sempre: “o rosto é um conto de terror”.
E abandonar o terror do rosto de Maradona naquela imagem
parece impossível, pois ele a todos petrifica com seu
olhar arregalado e alucinado. Já John Landis nos oferece
– e a seu protagonista – uma saída bastante lúdica e
evocativa como proposta de imaginário: um corte para
a famosa lua cheia (também ela um rosto, como Méliès
demonstrou), a “Blue Moon” que era cantada enquanto
o personagem se transformava em lobisomem. Duas metamorfoses,
duas narrativas faciais, duas provas distintas do que
pode uma imagem em movimento.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
|