JOHNNY E JUNE
James Mangold, Walk the Line, EUA, 2005

Seria apenas óbvia, não fosse inevitável, a comparação de Johnny e June com Ray, obra de Taylor Hackford baseada na vida do famoso pianista, compositor e cantor. Não por se tratarem de biografias de duas das principais figuras da música popular americana da segunda metade do século passado (uma revolucionando a música country; outra revolucionando a música negra); não por essas duas figuras terem histórias bastante semelhantes de vida (criação dentro do ambiente rural e conservador dos Estados Unidos, sentimento de culpa por morte de irmão na infância, acúmulo de drogas na maturidade, crise decorrente do vício, superação após muita luta); nem mesmo por seus diretores possuírem, também, uma carreira parecida dentro de Hollywood (pequenos sucessos na indústria e a possibilidade de se afirmarem dentro dela com uma obra de maior “importância”). Os dois filmes poderiam ser, ainda assim, extremamente diferentes, dependendo do olhar que cada um dirigisse ao objeto estudado. O que os une, portanto, não é a história que contam, mas, naturalmente, como a contam. Nas duas obras, ocorre a tentativa (bem-sucedida, nesse sentido) de transformar os ídolos, representantes de uma rebeldia musical e comportamental, em figuras alinhadas com um certo pensamento conservador dominante em algumas esferas da cultura americana atualmente. Se dentro da película de Taylor Hackford a moral dava-se a partir de um questionamento psicológico, mesmo que de almanaque, no novo filme de James Mangold a estrutura é ainda mais radical. Os valores tradicionais são defendidos através de uma perspectiva cristã tão poderosa que Johnny e June não pode ser visto de outra perspectiva que não a de um sermão religioso.

Para que isso possa ser compreendido é necessário analisar a forma com que os dois tratam o acontecimento central de seus roteiros (coincidentemente ou não, o mesmo), isto é, a tragédia fraternal. Dentro de tanto Johnny e June quanto Ray, é esta tragédia que, paradoxalmente, impulsiona os talentos musicais dos protagonistas e os carrega para o vício, condenável, das drogas. Dentro de tanto Johnny e June quanto Ray, é esta tragédia que assinala o fim do prólogo narrativo (e, assim, da infância) e que paira, como um fantasma, por todo o resto da vida adulta, determinando e alterando seus acontecimentos. Dentro de tanto Johnny e June quanto Ray, é a expiação da culpa por esta tragédia que revoluciona a vida dos dois e marca o fim da narrativa (há, no filme de Mangold, ainda, um breve epílogo, servindo de confirmação da moral desenvolvida ao longo da obra). Nos dois, porém, a mesma tragédia geradora de tantas semelhanças na estrutura narrativa é vista de forma sutilmente distinta. Em Ray, o artista sofre basicamente por considerar-se o motivador da tragédia, numa releitura banal e simplificada das teorias de Freud, ou, em outras palavras, na não-assimilação delas. Em Johnny e June, o sofrimento de Cash vai além. Não apenas ele se vê como culpado da morte de seu irmão, mas essa culpa, acima de tudo, transforma-o em um pecador. E é a culpa, não da morte do irmão, mas de ir para o inferno, que Cash precisa superar.

Neste sentido, o título em inglês é muito mais apropriado para a obra do que o escolhido para a versão nacional. Enquanto o original traz dentro dele a proposta do filme – o caminho que Cash percorre até conseguir “andar na linha” -, a tradução transforma e interpreta Johnny e June em algo que o filme não é, uma love story. No mínimo, porque a história em nenhum momento trata de amor, mas de casamento, instância máxima de confirmação da presença clerical na vida de um casal. Tanto Johnny como June amam-se desde o início da segunda parte do filme, mas não podem relacionar-se um com o outro devido ao fato de, durante todo o resto dele, isso ser pecado. Fosse porque, em certo momento, os dois estivessem casados, fosse porque, principalmente, Johnny não era um homem bem-visto aos olhos de Deus. É só quando abandona definitivamente o vício das drogas e reconcilia-se com a igreja que June aceita seu pedido, para viverem felizes para sempre, pescando no lago e brincando com os filhos.

June, por sinal, exerce no filme não o papel de mulher amada, mas de anjo redentor. Sua existência só justifica-se em função de Cash. É ela que acompanha o cantor quando ele precisa, que reclama quando ele bebe com os amigos, que joga suas drogas fora quando elas parecem destruí-lo, que o leva à igreja quando sua alma é salva e que avisa a ele que Deus sempre dá uma segunda chance aos que um dia adentraram uma vida de pecados. É nela que Cash se inspira quando compõe a música-título do filme. Mesmo dentro do mundo de perdição que é o do “rock’n roll”, a pureza da personagem vivida por Reese sobressai-se aos demais (sendo inclusive chamada de anjo por Jerry Lee Lewis, e, em outro momento, sintomaticamente, pelo próprio Cash). June, desta forma, é não uma personagem, mas apenas a guia do caminho que Cash deve seguir para que alcance Deus. E não há melhor modo de concluir o caminho, obtendo a benção divina e confirmando-se como um homem de bem, do que casando.

Para que tal trajeto seja percorrido sem percalços, é necessário partir de uma premissa divina (o talento deles ser relacionado a uma espécie de dom, cuja correlação com a religião se dá em especial na seqüência em que as mães de Johnny e June revelam que os dois aprenderam a cantar, óbvio, com os hinos bíblicos) e determinista (a idéia de que, perante esse talento natural, há uma obrigação para com Deus que deve ser seguida); condenar os elementos que forem contra a religião (as drogas, as relações sexuais fora de casamento) ou pelo menos relegá-los dentro das histórias pessoais a um segundo plano (os vários casamentos de June, apenas passo fora do caminho para a união eterna com Cash); omitir fatos importantes da história dos dois (Cash ter novamente se viciado por outro tempo, cometido adultério constantemente, sido preso algumas outras vezes); reconciliar pais e filhos sem nenhum desenvolvimento dentro do roteiro. Ao transformar a história de Johnny Cash em um dogma cristão, Mangold simplifica tudo que a persona complexa e genial do artista poderia oferecer. Não se trata aqui de ambicionar que o filme feito fosse outro, mas de lamentar que o filme feito seja esse. Naturalmente, a direção de Mangold não foge daquilo que o roteiro propõe: planos óbvios e preguiçosos a maior parte do tempo, dando ao visual da obra a perspectiva conservadora e dogmatizante de que ela necessita. Investir em um formato clássico, repleto de clichês, tanto no roteiro quanto na direção – ou em qualquer outro aspecto técnico do filme - é menos uma falta de pensamento cinematográfico do que um alinhamento a uma postura ética conformista, defensora dos valores religiosos e familiares dos Estados Unidos da América. Uma questão moral, portanto.

Assim, é natural que o filme esqueça o aspecto físico dos personagens para dar relevo a suas almas. Se, por acaso, Cash vicia-se em anfetaminas, é não para superar o cansaço de fazer 300 shows por ano, tendo de gravar e compor ao mesmo tempo, mas unicamente porque seu espírito torturado necessita de uma muleta; se – estranhamente – June e Johnny acabam indo para a cama enquanto estão casados, uma elipse omite o momento de sexo; se os dois se desejam, é mais por uma questão de amor e amizade do que pela necessidade e atração físicas. O filme não omite os corpos da tela, apenas não se interessa por eles. Esse desinteresse, porém, transforma o conteúdo da imagem em algo frio, distante, morto. As almas não têm como sobreviver se desconsiderarmos que, caso elas existam, ainda assim estão presas a um receptáculo físico.

Há, porém, um passo fora da linha em Johnny e June, e é este passo que transforma o que seria uma completa negação em uma obra de algum interesse. Ao filmar cenas musicais inteiras de Phoenix interpretando Cash (em oposição ao que Hackford faz com Ray), Mangold parece não atentar ao fato de que o artista verdadeiro se sobrepõe e contradiz o artista inventado. As letras de Cash, o modo de empunhar o violão como uma arma, a raiva contida no olhar, e na face, e no corpo de Phoenix (em atuação inspirada) a cada palavra cantada dão ao cantor um novo rosto, mais sujo, mais rebelde, mais complexo. Não por acaso, as duas melhores cenas do filme são quando, tanto no estúdio de gravação quanto na prisão, Phoenix explode os limites impostos ao personagem e se aproxima daquela voz sofrida e irada que ouvimos nas gravações, quando sua alma é também corpo, e ainda mais, porque já não se pode definir. No momento em que Phoenix canta aos presos de Folsom e sua postura revela-se não de pastor (como se esperaria), mas de companheiro, é de se entristecer que, após tantos anos de espera, o filme dedicado a ele tenha tomado o rumo contrário.


Leonardo Levis