Seria
apenas óbvia, não fosse inevitável, a comparação de
Johnny e June com Ray, obra de Taylor
Hackford baseada na vida do famoso pianista, compositor
e cantor. Não por se tratarem de biografias de duas
das principais figuras da música popular americana da
segunda metade do século passado (uma revolucionando
a música country; outra revolucionando a música negra);
não por essas duas figuras terem histórias bastante
semelhantes de vida (criação dentro do ambiente rural
e conservador dos Estados Unidos, sentimento de culpa
por morte de irmão na infância, acúmulo de drogas na
maturidade, crise decorrente do vício, superação após
muita luta); nem mesmo por seus diretores possuírem,
também, uma carreira parecida dentro de Hollywood (pequenos
sucessos na indústria e a possibilidade de se afirmarem
dentro dela com uma obra de maior “importância”). Os
dois filmes poderiam ser, ainda assim, extremamente
diferentes, dependendo do olhar que cada um dirigisse
ao objeto estudado. O que os une, portanto, não é a
história que contam, mas, naturalmente, como a contam.
Nas duas obras, ocorre a tentativa (bem-sucedida, nesse
sentido) de transformar os ídolos, representantes de
uma rebeldia musical e comportamental, em figuras alinhadas
com um certo pensamento conservador dominante em algumas
esferas da cultura americana atualmente. Se dentro da
película de Taylor Hackford a moral dava-se a partir
de um questionamento psicológico, mesmo que de almanaque,
no novo filme de James Mangold a estrutura é ainda mais
radical. Os valores tradicionais são defendidos através
de uma perspectiva cristã tão poderosa que Johnny
e June não pode ser visto de outra perspectiva que
não a de um sermão religioso.
Para que isso possa ser compreendido é necessário analisar
a forma com que os dois tratam o acontecimento central
de seus roteiros (coincidentemente ou não, o mesmo),
isto é, a tragédia fraternal. Dentro de tanto Johnny
e June quanto Ray, é esta tragédia que, paradoxalmente,
impulsiona os talentos musicais dos protagonistas e
os carrega para o vício, condenável, das drogas. Dentro
de tanto Johnny e June quanto Ray, é esta
tragédia que assinala o fim do prólogo narrativo (e,
assim, da infância) e que paira, como um fantasma, por
todo o resto da vida adulta, determinando e alterando
seus acontecimentos. Dentro de tanto Johnny e June
quanto Ray, é a expiação da culpa por esta tragédia
que revoluciona a vida dos dois e marca o fim da narrativa
(há, no filme de Mangold, ainda, um breve epílogo, servindo
de confirmação da moral desenvolvida ao longo da obra).
Nos dois, porém, a mesma tragédia geradora de tantas
semelhanças na estrutura narrativa é vista de forma
sutilmente distinta. Em Ray, o artista sofre
basicamente por considerar-se o motivador da tragédia,
numa releitura banal e simplificada das teorias de Freud,
ou, em outras palavras, na não-assimilação delas. Em
Johnny e June, o sofrimento de Cash vai além.
Não apenas ele se vê como culpado da morte de seu irmão,
mas essa culpa, acima de tudo, transforma-o em um pecador.
E é a culpa, não da morte do irmão, mas de ir para o
inferno, que Cash precisa superar.
Neste sentido, o título em inglês é muito mais apropriado
para a obra do que o escolhido para a versão nacional.
Enquanto o original traz dentro dele a proposta do filme
– o caminho que Cash percorre até conseguir “andar na
linha” -, a tradução transforma e interpreta Johnny
e June em algo que o filme não é, uma love story.
No mínimo, porque a história em nenhum momento trata
de amor, mas de casamento, instância máxima de confirmação
da presença clerical na vida de um casal. Tanto Johnny
como June amam-se desde o início da segunda parte do
filme, mas não podem relacionar-se um com o outro devido
ao fato de, durante todo o resto dele, isso ser pecado.
Fosse porque, em certo momento, os dois estivessem casados,
fosse porque, principalmente, Johnny não era um homem
bem-visto aos olhos de Deus. É só quando abandona definitivamente
o vício das drogas e reconcilia-se com a igreja que
June aceita seu pedido, para viverem felizes para sempre,
pescando no lago e brincando com os filhos.
June, por sinal, exerce no filme não o papel de mulher
amada, mas de anjo redentor. Sua existência só justifica-se
em função de Cash. É ela que acompanha o cantor quando
ele precisa, que reclama quando ele bebe com os amigos,
que joga suas drogas fora quando elas parecem destruí-lo,
que o leva à igreja quando sua alma é salva e que avisa
a ele que Deus sempre dá uma segunda chance aos que
um dia adentraram uma vida de pecados. É nela que Cash
se inspira quando compõe a música-título do filme. Mesmo
dentro do mundo de perdição que é o do “rock’n roll”,
a pureza da personagem vivida por Reese sobressai-se
aos demais (sendo inclusive chamada de anjo por Jerry
Lee Lewis, e, em outro momento, sintomaticamente, pelo
próprio Cash). June, desta forma, é não uma personagem,
mas apenas a guia do caminho que Cash deve seguir para
que alcance Deus. E não há melhor modo de concluir o
caminho, obtendo a benção divina e confirmando-se como
um homem de bem, do que casando.
Para que tal trajeto seja percorrido sem percalços,
é necessário partir de uma premissa divina (o talento
deles ser relacionado a uma espécie de dom, cuja correlação
com a religião se dá em especial na seqüência em que
as mães de Johnny e June revelam que os dois aprenderam
a cantar, óbvio, com os hinos bíblicos) e determinista
(a idéia de que, perante esse talento natural, há uma
obrigação para com Deus que deve ser seguida); condenar
os elementos que forem contra a religião (as drogas,
as relações sexuais fora de casamento) ou pelo menos
relegá-los dentro das histórias pessoais a um segundo
plano (os vários casamentos de June, apenas passo fora
do caminho para a união eterna com Cash); omitir fatos
importantes da história dos dois (Cash ter novamente
se viciado por outro tempo, cometido adultério constantemente,
sido preso algumas outras vezes); reconciliar pais e
filhos sem nenhum desenvolvimento dentro do roteiro.
Ao transformar a história de Johnny Cash em um dogma
cristão, Mangold simplifica tudo que a persona complexa
e genial do artista poderia oferecer. Não se trata aqui
de ambicionar que o filme feito fosse outro, mas de
lamentar que o filme feito seja esse. Naturalmente,
a direção de Mangold não foge daquilo que o roteiro
propõe: planos óbvios e preguiçosos a maior parte do
tempo, dando ao visual da obra a perspectiva conservadora
e dogmatizante de que ela necessita. Investir em um
formato clássico, repleto de clichês, tanto no roteiro
quanto na direção – ou em qualquer outro aspecto técnico
do filme - é menos uma falta de pensamento cinematográfico
do que um alinhamento a uma postura ética conformista,
defensora dos valores religiosos e familiares dos Estados
Unidos da América. Uma questão moral, portanto.
Assim, é natural que o filme esqueça o aspecto físico
dos personagens para dar relevo a suas almas. Se, por
acaso, Cash vicia-se em anfetaminas, é não para superar
o cansaço de fazer 300 shows por ano, tendo de gravar
e compor ao mesmo tempo, mas unicamente porque seu espírito
torturado necessita de uma muleta; se – estranhamente
– June e Johnny acabam indo para a cama enquanto estão
casados, uma elipse omite o momento de sexo; se os dois
se desejam, é mais por uma questão de amor e amizade
do que pela necessidade e atração físicas. O filme não
omite os corpos da tela, apenas não se interessa por
eles. Esse desinteresse, porém, transforma o conteúdo
da imagem em algo frio, distante, morto. As almas não
têm como sobreviver se desconsiderarmos que, caso elas
existam, ainda assim estão presas a um receptáculo físico.
Há, porém, um passo fora da linha em Johnny e June,
e é este passo que transforma o que seria uma completa
negação em uma obra de algum interesse. Ao filmar cenas
musicais inteiras de Phoenix interpretando Cash (em
oposição ao que Hackford faz com Ray), Mangold parece
não atentar ao fato de que o artista verdadeiro se sobrepõe
e contradiz o artista inventado. As letras de Cash,
o modo de empunhar o violão como uma arma, a raiva contida
no olhar, e na face, e no corpo de Phoenix (em atuação
inspirada) a cada palavra cantada dão ao cantor um novo
rosto, mais sujo, mais rebelde, mais complexo. Não por
acaso, as duas melhores cenas do filme são quando, tanto
no estúdio de gravação quanto na prisão, Phoenix explode
os limites impostos ao personagem e se aproxima daquela
voz sofrida e irada que ouvimos nas gravações, quando
sua alma é também corpo, e ainda mais, porque já não
se pode definir. No momento em que Phoenix canta aos
presos de Folsom e sua postura revela-se não de pastor
(como se esperaria), mas de companheiro, é de se entristecer
que, após tantos anos de espera, o filme dedicado a
ele tenha tomado o rumo contrário.
Leonardo Levis
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