O SELVAGEM DA MOTOCICLETA
Francis Ford Coppola, Rumble Fish, EUA, 1983

O efeito de um primeiro contato com O Selvagem da Moticleta, aos 19 anos, foi de tal forma impactante que gerou sucessivas revisões com caráter de urgência, todas antes do filme sair em cartaz em São Paulo. O ano, se a memória não falha, era 1987. Francis Ford Coppola tinha uma grife já bem cotada (obtida com A Conversação, a saga O Poderoso Chefão, Apocalipse Now), com aura de artista sem limites, sem medo de aventuras, sem temor de ir ao Fundo do Coração, seu trabalho mais radical, para o bem ou para o mal, que o deixou com estigma de torrador de dinheiro em nome de uma imaginação sem freios. Mais em alguns filmes, menos em outros, os artifícios são evidenciados como forma de construir mundos assumidamente de ficção, calcados em narrativas de fabulação mítica. Coppola não está interessado em mimetizar o real, mas em reinventá-lo com as possibilidades audiovisuais. O Selvagem da Motocicleta é coerente com essa proposta de obra. E também sintonizado com seu momento histórico, o começo dos anos 80, quando, em alguns momentos do cinema, os artifícios pareciam sobrepor-se à vida criada na tela pelos próprios artifícios. É sobre esse limite que percorre as imagens de Coppola.

Mas voltemos aos 19 anos. O Selvagem da Motocicleta, naquela fase, exalava rebeldia juvenil filosófica, tanto em suas frases banhadas em reflexividade lírica, com tom de ceticismo cool, como em suas imagens a serviço de um clima chique. Havia impotência e potência em sua representação, que não escondia o jeitão de teatro montado fora do circuito mainstream, com as palavras escancarando sua porção literária, com as cenas elaboradas com certo peso cênico, sem a fragmentação das decupagens pelo interior das próprias cenas. Havia algo de performance urbana naquelas imagens, algo de um happening dark (um termo dos 80), de uma instalação em forma narrativa, com os seres humanos filmados como signos, mais que como gente, algo sempre bastante complicado de se fazer sem matar todo batimento cardíaco ao redor, sem pulverizar a vida em nome do estilo. Mas Copolla, dentro ou fora de Hollywood, com mais ou menos liberdade, mais em alguns filmes e menos em outros, é um esteta. E o risco do esteta é emoldurar, compor, visualizar, sem sentir a pulsação. Coppola, em O Selvagem da Motocicleta ao menos, sente. E pulsa.

Nem todos pensam e pensavam assim. O desencanto e o inconformismo da juventude exibida no quadro, segundo os detratores do filme em São Paulo, entre os quais o admirado crítico Edmar Pereira (mineiro de nascimento, mas baseado em São Paulo, no Jornal da Tarde), eram embalados em um espalhafatoso pacote de boutique programado para virar cult. Foram algumas as divergências verbais com Edmar Pereira poucos anos depois do filme ter saído de cartaz. Inexperiente como crítico diante do crítico veterano (veterano aos olhos de um iniciante), podia calar as convicções ou expô-las para torná-las compreensíveis. Opção dois. Edmar Pereira não queria dar o braço a torcer, assim como outros detratores do filme, para a possibilidade de essa atmosfera fake, artificiosa (como se dizia muito naquele momento), ser o cimento poético do filme e sua razão de existir, não sua asfixia.

Coppola está interessado em mitificar a experiência, os sentimentos, as dúvidas, as inseguranças, os significados e a própria representação de seus personagens, criando um micro-mundo derivado da década de 50, com sua dívida com os signos James Dean e Marlon Brando, mas a rigor situando o filme em um "não-tempo", ou melhor, em um "pós-tempo", no sentido de ser um tempo de transição, de degradação de uma ordem social (as gangues corroídas pelas drogas), que pode se adaptar a qualquer tempo histórico. E pode-se ainda prosseguir nessa idéia e afirmar o caráter de "não lugar" dos espaços representados, tendo em vista que, se os ambientes são tão mencionados e são razões de muitos conflitos, se eles são fundamentais para a metáfora dos "peixes de briga", o importante mesmo é a confusa interioridade dos personagens, que parecem surfar dentro de suas mentes e em suas ondas de percepção do mundo, deles no mundo.

Rumble Fish, o filme que fala de gangues, que mostra briga por espaços e pelo poder sobre os lugares, que mostra a insistência em ações coletivas (as gangues), que exibe os corpos em atitudes de agressão, a rigor, é um filme passado na cabeça e na sensibilidade de seus "símbolos" (Rusty James e Motorcycle Boy). Essa interioridade das motivações ditará algumas das escolhas sonoras (percepção de Motorcycle Boy), assim como algumas opções de imagem (as cores substituindo o preto e branco todo estilizado, primeiro pelos olhos de Motorcycle Boy, depois pelos de Rusty James). E essas percepções salientam tanto o desamparo daqueles jovens como a energia para lidar com esse desamparo (e ninguém estará viajando na maionese se pensar em Sartre, ao menos tangencialmente ao filme).

E por que o existencialismo? Porque o emparedamento ao qual o diretor parece estar condenando os personagens a maior parte do tempo, vendo-os como vítimas de suas configurações sociais (família, bairro, cidade, país, momento histórico, seja qual for), no fundo é apenas estratégia para se salientar o rumo libertário ao final, o de Rusty James, em cima da moto do irmão, chegando ao mar e livrando-se de seu mundo asfixiante (movimento quase copiado por Walter Salles em Abril Despedaçado, também um filme sobre a relação de dois irmãos com seus espaços caracterizados pela violência). O deslocamento é a libertação. A fixação, a asfixia. Toda a questão de O Selvagem da Motocicleta, se formos ao núcleo do enredo, está na suspensão do projeto comunitário, as gangues, e em sua substituição pelo pensar e agir sozinho. Motorcycle Boy recusa a liderança da turma porque mal sabe para qual lado ir. E incentiva o irmão mais novo a descobrir seu próprio percurso em vez apenas de seguir o dos outros (o dele, Motorcycle Boy, especialmente). O irmão mais velho é o sábio com deficiências de percepção que fazem dele um ser especial e desajustado em seu olhar para a vida. Rusty James, ao contrário, falando e agindo como alguém com raciocínio lento e gago, é o inocente inútil, sem uma visão singular. Terá de se emancipar.

Esse libelo pela consciência independente e individual, com posicionamento anti-drogas razoavelmente acentuado, persegue um projeto de singularidades em reação a uma cultura de massificações. Motorcycle Boy é uma lenda viva que deseja ser apenas um sujeito à deriva, sem responsabilidades por seus discípulos. Ele recusa o papel de mártir, de Cristo urbano, embora, na sucessão dos acontecimentos, caminhe para o martírio, mas um martírio esvaziado, já que seu momento, enquanto imagem-mito, já não se encaixa ao presente. Mas não seria esse desajuste, o desajuste da rebeldia e da luta pelos territórios, pela idéia de raiz, que está sendo lamentado? Motorcycle Boy não é o personagem-luto de uma juventude de museu? Rusty James, nesse sentido, não é um zumbi? O não-lugar e o não-tempo não seriam a representação desse limbo onde bonecos de cera de outro momento cultural insistem em perambular? Se sim, a libertação de Rusty James, na verdade, é uma adaptação, não uma conquista movida por princípios e projetos. Ele tem de ser uma cabeça individual, mais civilizada, porque a vida em grupo acabou, não porque seja pior. O mundo está à disposição de Rusty James quando ele chega com a moto em frente ao mar. Mas talvez ele quisesse era viver em seu bairro como no passado. Seja lá qual for esse passado. Mas o passado, aprenderá, vira narrativa, memória, mito. Rumble Fish era um filme aparentemente do passado do crítico. Dezenove anos sem vê-lo. A revisão permite a constatação de que o filme é o mesmo visto em 1987, mas a percepção, o olhar, o repertório e a experiência de quem o reviu é outra. Digamos que, por conta desses 19 anos, o filme, agora, ficou mais rico, com duas aproximações em convivência. Segue comigo!.


Cléber Eduardo

(DVD Universal)