O
efeito de um primeiro contato com O Selvagem da Moticleta,
aos 19 anos, foi de tal forma impactante que gerou sucessivas
revisões com caráter de urgência,
todas antes do filme sair em cartaz em São Paulo.
O ano, se a memória não falha, era 1987.
Francis Ford Coppola tinha uma grife já bem cotada
(obtida com A Conversação, a saga
O Poderoso Chefão, Apocalipse Now),
com aura de artista sem limites, sem medo de aventuras,
sem temor de ir ao Fundo do Coração,
seu trabalho mais radical, para o bem ou para o mal,
que o deixou com estigma de torrador de dinheiro em
nome de uma imaginação sem freios. Mais
em alguns filmes, menos em outros, os artifícios
são evidenciados como forma de construir mundos
assumidamente de ficção, calcados em narrativas
de fabulação mítica. Coppola não
está interessado em mimetizar o real, mas em
reinventá-lo com as possibilidades audiovisuais.
O Selvagem da Motocicleta é coerente com
essa proposta de obra. E também sintonizado com
seu momento histórico, o começo dos anos
80, quando, em alguns momentos do cinema, os artifícios
pareciam sobrepor-se à vida criada na tela pelos
próprios artifícios. É sobre esse
limite que percorre as imagens de Coppola.
Mas voltemos aos 19 anos. O Selvagem da Motocicleta,
naquela fase, exalava rebeldia juvenil filosófica,
tanto em suas frases banhadas em reflexividade lírica,
com tom de ceticismo cool, como em suas imagens
a serviço de um clima chique. Havia impotência
e potência em sua representação,
que não escondia o jeitão de teatro montado
fora do circuito mainstream, com as palavras
escancarando sua porção literária,
com as cenas elaboradas com certo peso cênico,
sem a fragmentação das decupagens pelo
interior das próprias cenas. Havia algo de performance
urbana naquelas imagens, algo de um happening dark
(um termo dos 80), de uma instalação em
forma narrativa, com os seres humanos filmados como
signos, mais que como gente, algo sempre bastante complicado
de se fazer sem matar todo batimento cardíaco
ao redor, sem pulverizar a vida em nome do estilo. Mas
Copolla, dentro ou fora de Hollywood, com mais ou menos
liberdade, mais em alguns filmes e menos em outros,
é um esteta. E o risco do esteta é emoldurar,
compor, visualizar, sem sentir a pulsação.
Coppola, em O Selvagem da Motocicleta ao menos,
sente. E pulsa.
Nem todos pensam e pensavam assim. O desencanto e o
inconformismo da juventude exibida no quadro, segundo
os detratores do filme em São Paulo, entre os
quais o admirado crítico Edmar Pereira (mineiro
de nascimento, mas baseado em São Paulo, no Jornal
da Tarde), eram embalados em um espalhafatoso pacote
de boutique programado para virar cult. Foram
algumas as divergências verbais com Edmar Pereira
poucos anos depois do filme ter saído de cartaz.
Inexperiente como crítico diante do crítico
veterano (veterano aos olhos de um iniciante), podia
calar as convicções ou expô-las
para torná-las compreensíveis. Opção
dois. Edmar Pereira não queria dar o braço
a torcer, assim como outros detratores do filme, para
a possibilidade de essa atmosfera fake, artificiosa
(como se dizia muito naquele momento), ser o cimento
poético do filme e sua razão de existir,
não sua asfixia.
Coppola está interessado em mitificar a experiência,
os sentimentos, as dúvidas, as inseguranças,
os significados e a própria representação
de seus personagens, criando um micro-mundo derivado
da década de 50, com sua dívida com os
signos James Dean e Marlon Brando, mas a rigor situando
o filme em um "não-tempo", ou melhor,
em um "pós-tempo", no sentido de ser
um tempo de transição, de degradação
de uma ordem social (as gangues corroídas pelas
drogas), que pode se adaptar a qualquer tempo histórico.
E pode-se ainda prosseguir nessa idéia e afirmar
o caráter de "não lugar" dos
espaços representados, tendo em vista que, se
os ambientes são tão mencionados e são
razões de muitos conflitos, se eles são
fundamentais para a metáfora dos "peixes
de briga", o importante mesmo é a confusa
interioridade dos personagens, que parecem surfar dentro
de suas mentes e em suas ondas de percepção
do mundo, deles no mundo.
Rumble Fish, o filme que fala de gangues, que
mostra briga por espaços e pelo poder sobre os
lugares, que mostra a insistência em ações
coletivas (as gangues), que exibe os corpos em atitudes
de agressão, a rigor, é um filme passado
na cabeça e na sensibilidade de seus "símbolos"
(Rusty James e Motorcycle Boy). Essa interioridade das
motivações ditará algumas das escolhas
sonoras (percepção de Motorcycle Boy),
assim como algumas opções de imagem (as
cores substituindo o preto e branco todo estilizado,
primeiro pelos olhos de Motorcycle Boy, depois pelos
de Rusty James). E essas percepções salientam
tanto o desamparo daqueles jovens como a energia para
lidar com esse desamparo (e ninguém estará
viajando na maionese se pensar em Sartre, ao menos tangencialmente
ao filme).
E por que o existencialismo? Porque o emparedamento
ao qual o diretor parece estar condenando os personagens
a maior parte do tempo, vendo-os como vítimas
de suas configurações sociais (família,
bairro, cidade, país, momento histórico,
seja qual for), no fundo é apenas estratégia
para se salientar o rumo libertário ao final,
o de Rusty James, em cima da moto do irmão, chegando
ao mar e livrando-se de seu mundo asfixiante (movimento
quase copiado por Walter Salles em Abril Despedaçado,
também um filme sobre a relação
de dois irmãos com seus espaços caracterizados
pela violência). O deslocamento é a libertação.
A fixação, a asfixia. Toda a questão
de O Selvagem da Motocicleta, se formos ao núcleo
do enredo, está na suspensão do projeto
comunitário, as gangues, e em sua substituição
pelo pensar e agir sozinho. Motorcycle Boy recusa a
liderança da turma porque mal sabe para qual
lado ir. E incentiva o irmão mais novo a descobrir
seu próprio percurso em vez apenas de seguir
o dos outros (o dele, Motorcycle Boy, especialmente).
O irmão mais velho é o sábio com
deficiências de percepção que fazem
dele um ser especial e desajustado em seu olhar para
a vida. Rusty James, ao contrário, falando e
agindo como alguém com raciocínio lento
e gago, é o inocente inútil, sem uma visão
singular. Terá de se emancipar.
Esse libelo pela consciência independente e individual,
com posicionamento anti-drogas razoavelmente acentuado,
persegue um projeto de singularidades em reação
a uma cultura de massificações. Motorcycle
Boy é uma lenda viva que deseja ser apenas um
sujeito à deriva, sem responsabilidades por seus
discípulos. Ele recusa o papel de mártir,
de Cristo urbano, embora, na sucessão dos acontecimentos,
caminhe para o martírio, mas um martírio
esvaziado, já que seu momento, enquanto imagem-mito,
já não se encaixa ao presente. Mas não
seria esse desajuste, o desajuste da rebeldia e da luta
pelos territórios, pela idéia de raiz,
que está sendo lamentado? Motorcycle Boy não
é o personagem-luto de uma juventude de museu?
Rusty James, nesse sentido, não é um zumbi?
O não-lugar e o não-tempo não seriam
a representação desse limbo onde bonecos
de cera de outro momento cultural insistem em perambular?
Se sim, a libertação de Rusty James, na
verdade, é uma adaptação, não
uma conquista movida por princípios e projetos.
Ele tem de ser uma cabeça individual, mais civilizada,
porque a vida em grupo acabou, não porque seja
pior. O mundo está à disposição
de Rusty James quando ele chega com a moto em frente
ao mar. Mas talvez ele quisesse era viver em seu bairro
como no passado. Seja lá qual for esse passado.
Mas o passado, aprenderá, vira narrativa, memória,
mito. Rumble Fish era um filme aparentemente
do passado do crítico. Dezenove anos sem vê-lo.
A revisão permite a constatação
de que o filme é o mesmo visto em 1987, mas a
percepção, o olhar, o repertório
e a experiência de quem o reviu é outra.
Digamos que, por conta desses 19 anos, o filme, agora,
ficou mais rico, com duas aproximações
em convivência. Segue comigo!.
Cléber Eduardo
(DVD Universal)
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