Ernst
Lubitsch, The Shop Around the Corner, EUA, 1940
Ernst Lubitsch, Heaven Can Wait, EUA, 1943
Henry Van Cleve morre. Consciente da vida que levou,
vai direto conversar com satanás por uma vaga
no inferno. O diabo, extremamente gentil e cortês
– típico da ironia elegante de Lubitsch – dispõe-se
a ouvir a história do recém-chegado. E,
surpresa, conclui que seu lugar não é
embaixo, mas lá em cima. Como acontece sobretudo
a partir de Ninotchka (1939), está em
jogo, em O Diabo Disse Não – e também
em A Loja da Esquina –, a completa transformação
das expectativas do público quanto aos personagens
que, se a princípio se mostram superficiais,
arrogantes, mesquinhos ou mesmo odiosos, ao longo da
narrativa se relevam, ao contrário, frágeis,
sensíveis, esperançosos, românticos
e apaixonados.
O sexo e o dinheiro são as marcas estruturais
de uma sociedade burguesa frívola e afetada,
que olha apenas para o próprio umbigo e que Ernst
Lubitsch disseca nas famosas operetas com que se lança
no cinema norte-americano. Em clássicos como
A Viúva Alegre, Monte Carlo, Uma
Hora Contigo, Sócios no Amor e Ladrões
de Alcova, embora o amor exista, ele se encontra
enredado na teia de corrupção e de mesquinhez
que rege e aprisiona os personagens. A partir de Ninotchka,
contudo, o sentimental se une à ironia cortante
e o amor, anteriormente parte integrante, torna-se força
capaz de romper com a hipocrisia e com a falsidade que
dominam o meio social. "Garbo ri": a sisuda,
austera e ríspida agente soviética que,
pouco a pouco, cede aos encantos de Paris onde, à
noite, metade dos parisienses está fazendo amor
com a outra metade.
Em A Loja da Esquina e O Diabo Disse Não,
Lubitsch transforma a percepção que o
espectador possui dos personagens ao longo da narrativa.
Provavelmente a maior de todas as comédias românticas
– e a obra-prima suprema de Lubitsch –, A Loja da
Esquina, em duas seqüências-chave, estabelece
a empatia do público com o casal protagonista.
Na primeira, Klara Novak tateia o escaninho vazio, nos
correios, onde deveria estar a carta tão esperada
e que não chegou, para depois observa-lo com
os olhos mais tristes do mundo. Na segunda, o fenomenal
encontro no restaurante, a calada, profunda e dolorosa
indignação de Alfred Kralik ao ter sua
capacidade intelectual – que lhe permite escrever as
cartas, afinal – questionada pela mulher que ama e que
o ama, embora ela ainda não o saiba. Dessa forma,
começando pelo jogo de gato e rato, quando Klara
e Alfred se revelam um ao outro (e a quem os vê)
odiosos, irritantes, fúteis e vazios, o cineasta
progressivamente os humaniza, ao mostrar quão
solitários, infelizes, românticos e sonhadores
eles se apresentam sob as máscaras que usam para
se protegerem.
Em O Diabo Disse Não, é o próprio
herói quem se considera indigno de entrar no
céu, rumando direto ao inferno para pedir abrigo
a satanás. A entrevista com o diabo – já
que Henry Van Cleve não cometeu nenhum pecado
hediondo – proporciona a Lubitsch a chance de desvendar
o verdadeiro personagem, subvertendo a percepção
original: cheio de falhas, sim; mas dono de um grande
coração. Se Lubitsch constrói Henry,
desde a infância, como homem mimado, folgado,
aventureiro e mulherengo (as divertidas seqüências
a respeito da utilidade de besouros e de governantas
francesas) – em oposição ao primo Albert,
sério, estudioso, honesto e orgulho da família
–, é para minar a expectativa gerada no público
ao longo do filme. Apesar de manter durante os setenta
anos de existência as características de
bon vivant e de Don Juan que facilmente
o transformariam no vilão da história,
Henry Van Cleve acaba salvo ao seqüestrar a noiva
da agora advogado e ainda insuportável primo
Albert: o amor intenso e sincero, a paixão avassaladora
que sente pela esposa Martha redime o herói,
no acerto de contas após a morte, de todos os
pequenos desacertos mundanos realizados em vida.
Quando tudo mais falhar, diz satã a Henry, restará
Martha para interceder por ele lá em cima: o
romantismo também faz parte da magia do toque
de Lubitsch.
Paulo Ricardo de Almeida
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